José Vieira sente saudade do tempo em que usava calças curtas e tinha medo de assombração. Aos 80 anos, ele se lembra dos familiares que velavam os mortos na mesa da sala. Os corpos eram revestidos com lençol branco e espalhavam-se velas ao redor da mesa. Durante o velório, os mais velhos contavam histórias de assombração para as crianças.Fantasmas fazem parte da memória coletiva das famílias cujos antepassados foram escravos. O traço cultural aparece nos relatos de Vieira, mais conhecido como Zé Pedro, um dos líderes mais ativos da comunidade remanescente de quilombo que vive na fazenda Picinguaba, na região norte de Ubatuba, próximo à divisa com o Estado do Rio de Janeiro.Perto do km 12 da rodovia Rio-Santos (BR-101), uma estrada de terra batida leva ao núcleo central da comunidade. Lá, encontra-se uma capela dedicada a São Pedro, um telecentro, uma sede e a 'Casa da Farinha', galpão destinado à produção de farinha de mandioca.Ao redor, casas construídas pelos quilombolas abrigam pelo menos 49 famílias e 156 pessoas. Outras sete famílias moram fora da área de 100 hectares destinada à comunidade, que vive a expectativa de ter suas terras homologadas pelo governo estadual.Segundo José Roberto Andrion, coordenador regional da Fundação Itesp (Instituto de Terras do Estado de São Paulo), o laudo antropológico necessário para o reconhecimento das terras quilombolas na Fazenda Picinguaba já está pronto e a demarcação da área próxima de ser realizada.TERRA - Conseguir a posse das terras onde mora há 52 anos é tudo o que Zé Pedro sonha. Por mais de 20 anos, ele batalhou pelo reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo. Chegou a sofrer de depressão por causa da burocracia, mas venceu as dificuldades e hoje estampa um largo sorriso no rosto."Estamos vivendo um bom momento, mas temos muito ainda o que conquistar. Nossa sobrevivência depende de nosso esforço", disse Zé Pedro, que vive em Picinguaba com a maior parte dos seus 11 filhos, 43 netos e nove bisnetos.Os bisavôs dele foram escravos em uma fazenda em Cunha, cidade onde Zé Pedro viveu até os 13 anos. Mudou-se para o Litoral Norte atrás de trabalho, fixando-se com a família na região de Picinguaba.Lá nasceram todos os filhos, como Maria Inês Vieira, 34 anos, e Natalina Vieira, 41 anos. Ambas ajudam o pai na fabricação de farinha de mandioca, hoje a principal fonte de renda da comunidade.Cada família ganha cerca de R$ 300 com a produção de 150 quilos de farinha por dia. O trabalho é penoso e afasta os mais jovens, que preferem pescar."Os jovens não querem saber de fazer farinha, que é um costume antigo da nossa comunidade. Não sei até quando manteremos essa cultura", lamentou Zé Pedro, que busca um sucessor para a liderança da comunidade.Para manter as tradições, ele projeta ampliar o uso da fábrica de farinha, agregando um engenho e um alambique. Quer fazer melado, rapadura, pé-de-moleque e cachaça. Tudo movido por uma imensa roda d'água de 800 quilos.Zé Pedro e os demais quilombolas esperam também autorização da Fundação Florestal para definir zonas agricultáveis dentro da Fazenda Picinguaba, considerada área de reserva. "Quero plantar mandioca, que hoje compramos de Minas Gerais."Ao lado da mulher, Maria Nadir dos Remédios, 75 anos, ele serve café caiçara feito com cana de açúcar aos turistas que visitam a comunidade.A natureza exuberante do local já atraiu visitantes como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e a mulher, Ruth Cardoso, e o senador Eduardo Suplicy (PT)."Todos viraram meus amigos", disse Zé Pedro. De fantasmas, hoje ele só quer a lembrança.
(Fonte: ValeParaibano)