domingo, 21 de abril de 2024

CAMINHO DA RUINDADE

 

Vô Estevan e o mano Guinho - Arquivo JRS

    Meu avô Estevan contava histórias. Nunca me esquecerei das tardes, apreciando o mar, eu e mais pessoas se postando ao lado dele para escutar as empolgantes narrativas. Criado pela casa dos outros devido a morte precoce dos pais, não sei dizer como ele aprendeu tanta coisa, tinha na memória tantas narrativas fantasiosas, de causos e fatos. Desconfio que eu herdei um pouco desse espírito dele. 

   Dos fatos históricos, sobretudo do território da Caçandoca, onde nasceu o querido vovô, mais tarde, escutando os moradores mais antigos, eu pude confirmar muitas passagens das narrativas dele. Histórias de negros eu escutei muitas. Hoje, relendo um documento de 1834, falarei a respeito do tráfico negreiro em Ubatuba, nas terras da Caçandoca e adjacências. Creio que ajudará muita gente a conhecer um pouco mais da nossa história, rever posicionamentos ideológicos, além de pretender fomentar o turismo cultural nesse município litorâneo. O ponto de partida é o Caminho da Ruindade, como os mais velhos a chamavam. Ela ainda faz a ligação entre o litoral e a Serra Acima! Originalmente ele partia do Saco das Bananas, atravessava o Sertão da Quina e chegava na Vargem Grande, no município vizinho de Natividade da Serra.  Era por esse caminho que se fazia a condução dos negros escravizados para a venda no "planalto" (Vale do Paraíba, Sul de Minas etc.), escapando das autoridades, principalmente a fiscalizadora e cobradora de taxas. (Lembremos que, em Ubatuba, a Casa de Barreira ficava onde atualmente está a estátua do Pescador, na rotatória de acesso à rodovia Oswaldo Cruz). Pelo mesmo caminho, na serra íngreme, passavam produtos e pessoas. Foi por ele que muitos caipiras vieram se juntar aos caiçaras, se miscigenaram e expandiram nossas raízes culturais, se enriqueceram mutuamente nos diversos bairros (Corcovado, Sertão da Quina, Maranduba...). Mas vamos ao documento. Trata-se do Conselho de Governo, uma espécie de Congresso Nacional da época, se dirigindo à Câmara Municipal:

Por mui circunstanciadas informações e documentos autênticos, a omissão do Juiz de Paz e Suplente dessa Vila no cumprimento de seus deveres e execução da Lei, sobre a introdução de escravos africanos que se tem realizado por diversos pontos do Distrito dessa Vila, no entretanto, que o dito Juiz asseverava ao Governo que nenhum indício havia de semelhante crime, aliás de notoriedade pública, e tanto que dois dos referidos escravos, evadindo-se do lugar em que se achavam retidos, foram apresentar-se a bordo da Escuna FLUMINENSE, que cruzava na costa por ordem do mesmo Governo e fizeram conhecer ao comandante que na Enseada do Bananal [Saco das Bananas] existia grande número deles (...). E sendo, portanto, ambos [Juiz e Suplente] na forma da Lei solidariamente responsáveis, o referido Conselho os suspendeu no exercício do cargo de Juiz de Paz para responderem em Juízo competente por uma tão criminosa omissão no cumprimento de seus deveres e observância da Lei.

    Portanto, Ubatuba foi sim um ponto dessa vergonhosa criação que é a escravização humana, dos africanos. Muitas das autoridades constituídas fizeram o que puderam para continuação dessa vergonhosa página da nossa História. Nos dias atuais vemos uma tendência reacionária muito forte na política brasileira atuando para retirar as conquistas trabalhistas, negar os direitos humanos, exterminar os povos originários, perseguir as minorias sociais etc. Tudo isto não é uma versão atual do Caminho da Ruindade?

Em tempo: o Caminho da Ruindade hoje é a Trilha do Campo que liga o Sertão da Quina à Vargem Grande. É de difícil acesso, mas continua lá. Tudo lindo por lá! 

Largo da Igreja dos Pretos

 

  Paisagem  Arte    de  Maria Eugenia

Eu estava de passagem, indo na direção da praia. Pretendia contemplar o mar e seguir ir até o Mercado de Peixes para comprar camarão e rever velhos conhecidos. Ouvi um alarido, fui me aproximando. Tambores falavam alto, pessoas dançavam vestidas em suas roupagens variadas, alegres. Sacerdotes estavam no meio daquilo tudo, muito simples, com pessoas bem animadas. Coisa bela! Era uma celebração confirmando a participação de crenças em união, sincretismo religioso num ato que recordava determinado aspecto da história do município de Ubatuba. Alguém próximo comentava a importância de tudo aquilo:  

"É para marcar, não deixar apagar a memória de que aqui os negros escravizados tiveram uma igreja católica quando não podiam frequentar o mesmo templo que os senhores brancos. Aqui, nesta praça era a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Ela foi demolida há muito tempo, tendo algumas de suas partes aproveitadas para a conclusão da Igreja Matriz, o local sagrado dos homens brancos logo ali. Esta celebração puxada pelo grupo de maracatu e pastoral católica é para reavivar, resgatar a história deste lugar”. 

    Achei o máximo. Passava da hora de não deixar apagada um importante fato da nossa história. A municipalidade bem que poderia formar uma junta de pesquisadores, escavar, deixar um espaço protegido para que as pessoas apreciassem possíveis vestígios que estão debaixo da estátua da Nossa Senhora da Paz de Iperoig, produzir um marco histórico, fazer constar no calendário cultural etc. É isso mesmo! Estou me referindo à praça que se localiza na zona central da cidade de Ubatuba, próxima do mar, do casarão da Fundart e da igreja matriz; local que já recebeu a denominação de Praça do Rosário, Praça Marechal Deodoro, Praça da Bandeira e, finalmente, Praça de Nossa Senhora da Paz de Iperoig.  Vamos fazer uma análise do discurso? Religião e politica estão de mãos dadas. Predominava, possivelmente, apenas a denominação de largo da igreja dos pretos. Depois da destruição do templo, a religião católica determinou a homenagem à prática devocional do rosário. Vencida a monarquia, os republicanos a batizaram com o nome do marechal. Em seguida, na onda do civismo, se voltaram ao símbolo da Pátria (tão vilipendiada nos dias atuais por aqueles que são a favor da entrega de nossas riquezas aos grupos estrangeiros, mas se dizem patriotas, destroem a capital federal, cultuam o sionismo, são contra a democracia, espalham mentiras para alienar mais gente etc.). Por fim, os senhores da terra outorgam a Nossa Senhora como interventora na submissão e destruição da etnia Tupinambá, sob a classificação de paz. Paz para quem? Certamente não é para os povos originários, nem para os descendentes dos africanos que foram tornados escravos. É isto: será que não está na hora de voltar a ser o Largo da Igreja dos Pretos?