segunda-feira, 14 de setembro de 2020

SAUDADES DOS MEUS AMIGOS UBATUBENSES...........

 

Hoje é um Dia Especial em terras Ubatubenses.
Dia da Paz de Iperoig um "Tratado" ocorrido em 1563. Também se comemora à "Exaltação à Santa Cruz", nesse dia.
Um feriado Municipal ao qual muitos não sabem o porquê de sua existência.
Tirando a questão histórica do Primeiro Tratado de Paz das Américas, ocorrido entre os Colonizadores Portugueses e os TUPINAMBÁS , quero usar desse DIA para homenagear meus antigos amigos Caiçaras que partiram.




Seo Oliveira da Praia da Fortaleza, Seo Agricio do Sertão do Ubatumirim e Seo Genésio do Camburi.
Afinal todos eles frutos das diversas sepas dos designificativos povos que aqui à séculos habitam, valorizadores de suas histórias de vida, em vida fizeram da canoa Caiçara sua fonte de renda e sentido de vida.
E assim mantiveram viva a história dos Tupinambás hà tempos esquecida.

Textos e fotos de Charles Medeiros Via Facebok

NOTICIAS DE UMA CERTA CONFEDERAÇAO TAMOIO.........Primeira parte

 


                                             Fonte ....Imagem...........br.pinterest.com


Costa brasílica, 23 de abril de 1563. Os padres jesuítas Manoel da Nóbrega e José de Anchieta, tendo partido de São Vicente, núcleo colonial português, chegavam a Iperoig, núcleo de aldeias tupi situado nas imediações do que hoje é a cidade de Ubatuba, estado de São Paulo. Vinham em missão diplomática ao encontro de Caoquira, um dos chefes que integravam uma coalização de diversos grupos tupi - espalhados por um vasto território compreendido entre Bertioga e Cabo Frio - unidos em guerra contra os portugueses. Ficaram conhecidos como Tamoio, eram aliados dos franceses e inimigos dos Tupiniquim de São Vicente e dos Temiminó de Niterói, estes aliados dos portugueses. Representavam uma séria ameaça ao projeto colonial lusitano e, inclusive, colocavam em risco a sobrevivência de São Paulo de Piratininga, situada no planalto. O objetivo de Nóbrega e Anchieta era negociar a paz com Caoquira e os seus, pondo fim à assim chamada Guerra dos Tamoio. A missão dos jesuítas culminou, em Iperoig, num assim chamado acordo de paz, celebrado em setembro daquele ano, o qual não pôs fim à guerra, contudo: outros tantos Tamoio, sobretudo aqueles da região da Guanabara, mais ao norte, prosseguiram com ações hostis até serem violentamente vencidos.

Este episódio integra com lugar de honra as narrativas da história do Brasil, uma vez que diz respeito à expulsão dos invasores franceses da costa e às "duas fundações" (em 1560 e 1567) da cidade do Rio de Janeiro. A região da Guanabara vinha sendo frequentada por franceses aliados aos Tupi havia décadas, e só começaria a ser definitivamente incorporada à colônia portuguesa quando, em 1560, o governador-geral Mem de Sá destruiu o Forte Coligny, "capital" da França Antártica, projeto de colônia que durou apenas cinco anos. Ao longo dos anos que seguiram 1560, sonhando em recuperar a "sua" Guanabara, vários franceses que ali tinham permanecido entre seus aliados indígenas continuaram resistindo. Simão de Vasconcelos, autor da Crônica da Companhia de Jesus e responsável por grande parte das informações que temos acerca deste episódio, qualifica essa aliança entre ameríndios e franceses de "confederação", tendo à sua frente chefes poderosos como Cunhambebe e Aimbire. Algo próximo teria escrito Jean de Léry, em Histoire d'un voyage, quando se refere aos "franceses seus [dos Tupinambá] confederados" (Léry 1994[1578]:135). Essa intrigante experiência bélica perdurou até 1567, quando Estácio de Sá, sobrinho de Mem de Sá, com apoio do chefe temiminó Arariboia, derrotou na batalha de Uruçumirim a brigada franco-tupi, consolidando a fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Não seria exagerado afirmar que este episódio atua na historiografia nacional como um mito fundador. A Guerra dos Tamoio foi cantada pelo poeta romântico Gonçalves Magalhães no momento mesmo - meados do século XIX - em que o Brasil Imperial buscava para si uma identidade nacional. Como sugere Puntoni, em sua análise do contexto do romantismo oitocentista em que foi escrito o poema "A confederação dos Tamoyos", o nascimento da nação brasileira era atribuído ao sacrifício "heróico" dos índios. "Nobres selvagens cujas qualidades são constantemente louvadas, os Tamoyo de Magalhães ocupam o lugar de entrave moral ao livre curso da história nacional" (1996:125). Tal como os troianos fizeram despertar um sentimento grego, os Tupi inimigos faziam despertar um patriotismo "brasileiro". Sob a égide dessa ideologia nacionalista, os Tamoio eram representados como povos martirizados do passado que permitiam as glórias no presente, dizimados, afinal, pelo bem supremo da nação que já existia como pressuposto e como germe. Nota-se o caráter político do retrato oferecido por Magalhães. Ainda que inteiramente baseado nas cartas e nas crônicas jesuíticas para compor a sua peça literária, ele vai além da imagem veiculada pelos missionários quinhentistas, de indígenas "confederados" com os invasores calvinistas, para ressaltar um papel ativo desses mesmos indígenas na composição da tal confederação. O que leva a uma das perguntas que nos animam aqui: o que, exatamente, todas essas descrições chamam de confederação? O termo possui, em todas elas, o mesmo sentido?

Os Tamoio, que os portugueses viam como rebeldes confederados aos franceses, permanecem uma imagem profícua para o Brasil. Não apenas para pensar o nascimento da nação mas, recentemente, inclusive, para pensar os destinos dos povos indígenas atuais que, aos poucos, encontram formas de se representar como um "conjunto" e como um "movimento". Carregado deste aspecto metafórico - evento que se presta a pensar outros eventos - o episódio que acabamos de trazer à baila é pouco conhecido do ponto de vista historiográfico e, ainda menos, do ponto de vista etnológico. As dificuldades para reconstituí-lo e compreendê-lo são muitas. As fontes são escassas: dispomos apenas das cartas, informações e crônicas jesuíticas da década de 1560, marcadas por um forte viés ideológico. De saída, a descrição que elas oferecem para a aliança entre Tupi e franceses é carregada pelo sentimento de oposição aos calvinistas, exacerbado nas guerras de Religião, bem como pela imagem de ausência de organização por parte dos indígenas.

Dos próprios Tamoio não possuímos descrição alguma dos eventos que os tornaram famosos. Como os demais grupos tupi da costa, foram varridos do litoral para dar lugar à expansão da colonização portuguesa e, em meados do século XVII, já não havia notícia de grupos tupi ao longo da costa de que antes eram senhores. Seu depoimento está dissolvido no discurso de missionários e viajantes. Como poderíamos compreender o que para eles significariam tais alianças e oposições políticas, tais confederações? Esse aspecto lacunar do material empírico faz com que nosso trabalho de análise seja menos uma reconstituição de fatos do que um questionamento, uma interrogação sobre o que teriam sido essas experiências de aliança, guerra e/ou confederação, experiências que poderiam lançar luz não apenas sobre um capítulo da história colonial brasileira, mas - e este é o nosso foco - sobre os agenciamentos políticos indígenas e o seu papel em formações políticas diversas. Por meio de um esforço de imaginação antropológica, buscaremos recompor esse quebra-cabeças, tendo como peças tanto fontes primárias como secundárias, relidas à luz de etnografias de populações tupi-guarani atuais.1

Apesar de toda essa indeterminação, com base nos documentos disponíveis, um ponto pode ser afirmado desde já. A guerra dos Tamoio não consistiu num movimento "nativista", contra a colonização e pela retomada da terra e da liberdade dos índios. Não foi uma guerra de "índios" contra "europeus". As fontes descrevem claramente a guerra que estourou na região da Guanabara configurada como um duplo sistema de alianças, havendo "índios" e "europeus" de ambos os lados. De um lado, os chamados Tupiniquim (em São Vicente) e os Temiminó (ao norte da Guanabara) com seus aliados portugueses, de outro, os chamados Tamoio (ou Tupinambá) e seus aliados franceses.

Como veremos, a questão dos etnônimos aplicados a esses grupos, falantes de línguas da família tupi-guarani e imersos num universo cultural compartilhado, como ocorre com os etnônimos de modo geral, é bastante complexa. Tanto os colonizadores quinhentistas quanto os modernos de hoje insistimos em nomear entes. No caso moderno, trata-se, além disso, de projetar um ideal de unidade política sobre povos que revelam outras modalidades de segmentação e liderança. Nosso imaginário político e a reflexão acumulada acerca das formas políticas ameríndias fazem com que a ideia de uma confederação entre populações avessas a formas estatais coloque imediatamente a questão da propriedade do termo para expressar o observado. Poderiam tais alianças ser pensadas como extensão ou desdobramento de formas ameríndias? Ou, seguindo grande parte dos documentos e das análises que afirmam a ingerência europeia como fonte dessas formações com ares de quase-estado (os Tupiniquim teriam sido organizados pelos portugueses, e os Tamoio, instigados pelos franceses), deveríamos ver aí contaminação ou ainda imposição de formas políticas europeias?

 

Notícias da costa tomada

As fontes que nos dão a conhecer a guerra ou confederação dos Tamoio são, em sua maioria, portuguesas; trata-se sobretudo de documentos produzidos pelos missionários da Companhia de Jesus, na forma de cartas, informações e crônicas. É graças às cartas de Anchieta e Nóbrega, nas décadas de 1550 e 1560, bem como aos escritos posteriores de Simão de Vasconcelos (1977 [1663] e 1943 [1672]) que temos acesso a boa parte das notícias desses terríveis inimigos, "contrários" aos portugueses, aliados aos franceses.

Não podemos esquecer, todavia, do valor das fontes francesas para compor essa paisagem. Os escritos de André Thevet, frei franciscano e cosmógrafo do rei de França, e de Jean de Léry, huguenote, são, nesse sentido, fundamentais.2 Ao lado deles, destaca-se o relato de Hans Staden, soldado alemão que também viveu - desta vez como cativo de guerra e não como agente colonial ou aliado político - entre os Tupi da costa. É bastante provável que o chefe Cunhambebe, retratado por Thevet e Staden, seja um desses chefes tamoio temidos pelos missionários portugueses, e por eles tidos como cabeça da "confederação". Tudo indica que Staden, Thevet, Nóbrega e Anchieta tenham estado na mesma região - Ubatuba - em um intervalo máximo de dez anos. Nóbrega e Anchieta, diferentemente dos outros cronistas, tomavam conhecimento da ameaça tamoio por intermédio de seus aliados Tupiniquim, muitos deles catecúmenos em São Vicente e em Piratininga. Decerto, é preciso incorporar todos esses aspectos e níveis no escrutínio das fontes que nos conduzem tortuosamente ao caso tamoio.

Numa célebre passagem, Nóbrega escrevia que os indígenas "estão papel branco para neles escrever à vontade", o seu problema maior sendo a falta de polícia - de política, leia-se - daí a obrigação de corrigi-los, conduzi-los ao caminho da civilização cristã ("Carta ao Rei D. João III, 14/09/1551", Nóbrega 1988:125). Sabe-se que foi ele um dos principais responsáveis pela investida final de Mem de Sá, tendo apressado a ação bélica contra os Tamoio - passíveis de serem combatidos em guerra justa - com o intuito de povoar a região da Guanabara.3 Anchieta narra os combates finais entre o exército de Estácio de Sá e as hostes franco-tupi, inscrevendo-os na guerra entre nações e religiões e tomando-os como solução inevitável para a conquista de almas. Insistia na urgência de "desarraigar dali a sinagoga dos contrários Calvinos, como porque ali é a melhor força dos Tamujas [Tamoios] e seria grande porta para a sua conversão: o Senhor que tem as chaves lhe abra presto, para que lhes entre o conhecimento de seu Criador e Redentor" ("Carta ao Geral Diogo Lainez, março de 1562", Anchieta 1933:237). Para os jesuítas, o mal maior eram os calvinistas, inimigos da fé católica, bastava expulsá-los para "abrir alguma porta para a palavra de Deus entrar nos Tamoios" (idem:253).

Vasconcelos, em consonância com Anchieta, identifica o mal entre os franceses, que se aliam aos indígenas por estarem interessados em explorar o pau-brasil da região, e os tornam inimigos dos portugueses. Pautando-se nessa imagem do selvagem inocente e manipulado, o jesuíta afirma que Villegagnon, chefe dos franceses, valendo-se de estratégias de sedução, teria assentado "liga" com os Tamoio, essa "nação guerreira de natureza". "Com palavras e dádivas liberais se fez senhor dos corações de todos, feitos em um corpo contra os portugueses" (Vasconcelos 1943 [1672]:68).

"Liga" seria aqui sinônimo de "confederação", os Tamoio e sua "multidão de arcos" sendo "confederados" dos franceses. O problema, segundo Vasconcelos, era o fato de a confederação aumentar vertiginosamente, representando um enorme perigo para a missão jesuítica e para o projeto colonial, daí a inevitável guerra de retomada, o inevitável massacre. Note-se que, para Vasconcelos, a confederação tamoio é confederação de indígenas com franceses, ou melhor, de indígenas aliciados por franceses. Ele utiliza o termo para se referir também aos Tupi confederados dos portugueses, os Tupiniquim, o que sinaliza que o sentido quinhentista e seiscentista da palavra confederação talvez não se situe muito além da ideia de aliança. Veremos abaixo que o termo parece ter guardado a mesma imprecisão e, portanto, a mesma capacidade de significar qualquer forma de conjugação política.

De modo geral, nas fontes jesuíticas, a confederação dos Tamoio aparece como imposição de uma forma política francesa sobre uma ausência de "polícia". A definição dos Tamoio pela ausência de qualquer princípio de organização social e política - clássica versão do "sem fé, nem lei, nem rei" aplicado indistintamente aos "naturais" americanos - não resiste a investigações mais detalhadas. Neste caso, basta examinarmos as crônicas de Hans Staden, Jean de Léry e André Thevet, relendo-as à luz da literatura etnológica.

As crônicas destes viajantes referem-se à década de 1550, portanto, a um período anterior à derrocada da França Antártica e à intensificação da guerra dos Tamoio. Todos eles escrevem sobre os Tamoio, ou Tupinambá - como eram chamados nas fontes os Tupi da costa aliados dos franceses - pois viveram entre eles em contextos alheios aos aldeamentos jesuíticos. Ainda que comentem a aliança entre franceses e indígenas, Staden, Léry e Thevet não chegam a delinear a imagem de uma confederação propriamente organizada ou em vias de se organizar. Léry, como já assinalado, alude aos franceses como "confederados" dos Tupinambá, mas é só. Todos eles descrevem, cada qual a seu modo, personagens e formas políticas indígenas, como chefes ou "principais", anciãos, guerreiros eminentes, conselho de anciãos, expedições de guerra. Não é raro depararmos, ao longo destes textos, com o termo "província" para designar territórios compartilhados entre diversos grupos locais e seus chefes, mas este não parece ter exatamente o mesmo sentido político que "confederação", pois não denota um sistema de organização política propriamente dito, mas apenas uma delimitação territorial.4

Entre Léry e Thevet chega a haver um debate a propósito do poder entre os Tupi da costa. Léry alega que a gerontocracia - o termo é de Florestan Fernandes (1989 [1948]) - é a forma de dominação vigente entre eles. Não haveria, assim, figuras fortes e permanentes de chefes centralizadores, mas sim um espaço de decisão conjunta garantido a todos os homens maduros, ou seja, aqueles que participaram de muitas expedições guerreiras e mataram muitos inimigos, tendo obtido para si muitos nomes e marcas. Léry ilumina, nesse sentido, o Conselho dos Anciãos como lugar por excelência de decisão política, afastando a ideia, veiculada por Thevet, de que os chefes de guerra - referidos por todos eles como "morubixabas" ou "principais" - seriam verdadeiros "reis". Com efeito, Thevet destaca-se pelas suas hipérboles - descreve Cunhambebe como um homem enorme, exageradamente paramentado - o que revela um esforço de buscar analogias com o mundo europeu por meio de figuras do próprio imaginário europeu (Lestringant 1991).

O grande chefe de guerra Cunhambebe, referido por ele como Quoniambec, é retratado como um monarca detentor de jurisdição sobre todo um território, especialmente temido e mesmo venerado. Staden descreve este mesmo personagem, agora referido como Konian Bebe, como "um grande tirano", e se espanta diante da frieza com que ele parece executar e devorar seus inimigos. Mas Staden é menos incisivo que Thevet. Quando de seu primeiro encontro com Cunhambebe, ele afirma estar diante de alguém que tem a "aparência de um chefe", uma vez que se mostra inteira e excessivamente adornado. O cativo alemão costuma usar a palavra Häuptling (chefe) para designar tanto líderes residenciais - descrevendo aldeias com vários chefes - como este personagem temido e eminente que é Cunhambebe (Staden 1557). Note-se que, em relação a este último, Staden acrescenta um adjetivo que indica um grau mais elevado - "supremo", tal a solução de uma tradução brasileira - antes da palavra "chefe".5

O termo "principal", presente nas fontes, revela um espectro semântico tão amplo quanto parece ser o do Häuptling de Staden, incluindo chefes de maloca, chefes de grupo local ou aldeia, chefes de guerra com influência - poder? - sobre todo um conjunto de aldeias aliadas. Cunhambebe, em Ubatuba, e Aimbire, na Guanabara, poderiam ser classificados como chefes de guerra, e o que deve ser posto em questão é se eles possuíam algum poder político coercitivo (Clastres 2003), e se representavam alguma unidade. Pode-se também ver neles - com maior probabilidade - figuras da circunstância, tendo sido magnificados6 pelas alianças que lograram atrair e manter, o que não significa, no entanto, nem poder de decisão e coerção, nem representação de uma unidade política fixa. De todo modo, se o termo "principal" revela um alto grau de fluidez para quem supõe a política na figura da centralização, não seria incorreto afirmar que ele foi empregado de maneira sagaz pelos cronistas que, à sua maneira e quiçá a despeito de suas intenções, nomeavam o que viam diante de si: homens que aglutinam outros numa rede de prestígio, os primeiros da fila, os principais, em suma.

 

Qual confederação?

Imortalizada pela historiografia, a confederação dos Tamoio não foi a única a ser assim designada. Lê-se, por exemplo, que com a derrota na Guanabara, franceses e indígenas teriam fugido para a região de Cabo Frio, onde teriam se organizado mais uma vez, para serem massacrados alguns anos depois. No Maranhão, meio século mais tarde, o grande evento Tamoio como que se repete: aldeias tupi, aliadas aos franceses, opõem-se a aldeias tupi, aliadas dos portugueses. Identificam-se, em cada um desses blocos, líderes que se ampliam, se magnificam, inclusive (e sobretudo) mediante dádivas e casamentos com oficiais franceses. Florestan Fernandes aponta que, com a expulsão pelos portugueses dos franceses do Maranhão em 1615, houve tentativas de constituição de novas confederações envolvendo, além dos Tupinambá e dos franceses, povos Tapuia da região. Segundo Fernandes, essa confederação teria sido derrotada em março de 1619 pelos portugueses, resultando num enorme extermínio e em fugas em massa em direção à região amazônica e ao sertão. Conforme o autor, outro exemplo de confederação seria o de uma união entre diferentes grupos, tupi e tapuia, na região do rio São Francisco no final dos Quinhentos (Fernandes 1989 [1948]:41-ss). Embora empregue constantemente o termo confederação, o autor jamais precisa o seu sentido.

Como vemos, quando aplicado a realidades indígenas, o termo confederação tem sido usado, do século XVI aos dias de hoje, de maneira variável. Em linhas gerais, tem sido empregado para se referir ao passado indígena, que nos é acessível apenas por meios fragmentários. Suspeita-se, diante de fontes históricas e arqueológicas, que este passado tenha abrigado formas políticas "mais sofisticadas" do que as presentes. No entanto, poucos conseguiram desenvolver análises adequadas para dar conta dessa suposta sofisticação. A razão para a perda de "sofisticação" - ou "involução", termo decerto discutível - é no mais das vezes atribuída à Conquista.7 É preciso ir além dessa oposição entre um passado "complexo" e um presente "simplificado", na medida em que complexidade e simplicidade são termos que dizem respeito menos ao que seria a natureza das formas sociais e políticas em questão do que a uma escala predefinida de caráter transcultural.8 Poderíamos inclusive desconfiar que a palavra confederação atende, antes de tudo, a uma dificuldade de descrição, visto que coloca em pauta uma série de antinomias, dentre elas, sociedades "com" e "sem" Estado.

É já clássica a tese de Pierre Clastres da "sociedade contra o Estado", recusando a ideia de "sociedades sem Estado" e positivando a ação política ameríndia por seus mecanismos de conjuração do poder político - como o esvaziamento do lugar da chefia e o processo de fragmentação social movido pela guerra. Note-se que, se "contra" o Estado não é "sem", permanece a oposição em relação às sociedades "com" Estado, ou "pelo" Estado - que na América do Sul encontrar-se-iam nas Terras Altas. Tendo essa imagem em vista, Clastres jamais deixou de se espantar com as informações sobre os antigos Tupi da costa e os Guarani do Paraguai, uma vez que entre eles parecia ter-se delineado uma espécie de movimento de centralização política, seja pela emergência de imponentes chefes de guerra que passavam a gozar de influência supralocal, como Cunhambebe, Japiaçu e Aimbire, seja pela cristalização de arranjos territoriais, as tais chamadas "províncias". Clastres identificou entre os antigos Tupi e Guarani uma "tendência a construir um modelo de autoridade que ultrapassava muito o âmbito da aldeia em si" (2003:89), resultando em movimentos de centralização que, de sua parte, não implicavam o enfraquecimento das autoridades domésticas e locais, tais como os membros dos assim chamados Conselhos dos Anciãos. Em suma, Clastres vislumbrou uma "verdadeira expansão territorial e política, com exercício da autoridade de certos chefes sobre várias aldeias" (idem:90).

Clastres não chegou a aprofundar uma leitura crítica das fontes quinhentistas e seiscentistas; apenas constatou uma transformação em marcha que, segundo ele, teria se iniciado antes da presença dos colonizadores, provavelmente no século XV, movida, entre outros fatores, pelo excessivo crescimento demográfico.9 Baseado nas descrições de Léry, Thevet e Staden sobre investidas guerreiras e alianças políticas que envolviam milhares de homens, o autor sugere que "havia entre os Tupinambá [de meados do XVI] verdadeiras federações, agrupando de dez a vinte aldeias" (grifo nosso), o que o leva a concluir que

Os Tupi, particularmente os da costa brasileira, revelam uma nítida tendência à constituição de sistemas políticos amplos com chefias poderosas, cuja estrutura deveria ser analisada: de fato, ao estender-se, o campo de aplicação de uma autoridade central suscita conflitos agudos com os pequenos poderes locais; surge então a questão sobre a natureza das relações entre chefia principal e subchefias: por exemplo, entre o "Rei" Quonianbec e os reizinhos, "seus vassalos" (2003:91).

A ideia de que os Tupi da costa quinhentista viviam uma séria transformação, o que poderia tê-los conduzido ao desenvolvimento de algo como um "proto-Estado", acompanhou Clastres em muitas de suas reflexões.10 Se, de um lado, isto colocava em risco a oposição entre sociedades "pelo" Estado e sociedades "contra" o Estado, de outro, permitia desenvolver a tese, igualmente cara ao pensamento clastriano, de que o poder político não é um desconhecido entre os povos indígenas e tem suas maneiras de irromper.

Perseguindo as hipóteses de Pierre Clastres sobre a transformação política entre os antigos Tupi e Guarani, Hèlène Clastres (1975) analisa a emergência de chefes de guerra que, aos poucos, estendiam sua influência para todo um território. A tal "perigo" a sociedade tupi responderia, segundo a autora, com a intensificação de movimentos proféticos. Hélène Clastres situa a centralização política e a delimitação territorial, que salta das fontes sobre os antigos Tupi da costa e sobre os antigos Guarani, como elementos contingenciais, que acabam por ser neutralizados pelos mecanismos "contra o Estado", como as migrações proféticas em busca da terra sem mal.

Permanecemos sem compreender ao certo o que são essas formas políticas por assim dizer potenciais, apontadas tanto nos escritos dos Clastres como em análises arqueológicas e históricas. Federações, confederações, cacicados, proto-Estados, territórios... Talvez o único elo capaz de unir estes termos, declarados menos ou mais próximos do Estado, seja a necessidade de descrever algo que não se deixa formular por nosso vocabulário político. A própria noção de "sociedade contra o Estado" pode parecer empobrecedora se não for entendida como máquina abstrata de conjuração do poder político. E a crítica aos modelos arqueológicos e etno-históricos pode se tornar estéril se não atinar para uma constante transformação das formas políticas ameríndias. Todos esses termos foram bastante aproveitados ao longo da história da antropologia sob um viés evolucionista - e ainda o são, se considerarmos certos trabalhos de arqueologia, ecologia cultural e etno-história - ou seja, como instrumentos para pensar a passagem histórica do "sem" ao "com" Estado, do pré-político ao político. Se levarmos a sério a "revolução copernicana" proposta por Clastres (2003 [1974]) - o descentramento da questão da antropologia política em relação à apreensão moderna do político - indo, aliás, além do próprio Clastres, teremos de reformular a questão, tentando redefinir nos termos indígenas o que poderiam significar essas formas e experiências.

Mas antes de prosseguirmos com o exame do material tupi, propomos visitar algumas definições da noção de "confederação". Se, no Dicionário Houaiss, a confederação dos Tamoio é utilizada como exemplo no verbete "confederação", vocábulo definido como "liga dentro de um país, em defesa de uma causa determinada", a mais famosa de todas as assim chamadas confederações ameríndias não é a tamoio, mas sim a Liga dos Iroqueses, estudada por Lewis Morgan em The league of the Ho-de-no-sau-nee or Iroquois (1922 [1851]). A formação que Morgan descreve e nomeia confederação parece estar entre as definições de "federação" e de "confederação" do Dicionário de política (Bobbio et alli 1992). Segundo uma acepção mais restrita, a primeira possuiria um "centro superior de decisão política [conformando um modelo centrípeto], ao passo que, na segunda, Estados associados manteriam sua soberania e independência [conformando um modelo centrífugo]" (Levi apud Bobbio et alli 1992:218-220).

Segundo o autor do verbete, se retirarmos o Estado desta definição, resulta que a confederação seja definida como associação entre unidades soberanas - ou seja, que não se submetem a um centro de decisões políticas - sendo assim uma realidade circunstancial. Nesse sentido, confederação apresentaria um campo semântico diverso do de cacicado e chefatura. Ora, a Liga dos Iroqueses, segundo Morgan, seria uma organização hierarquizada e centralizada na qual os poderes "executivo, legislativo e judiciário" se encontravam nas mãos do Conselho (também chamado de Congresso) dos Sachems, encarregado de tudo o que "dizia respeito ao bem-estar público" de todas as nações da Liga (1922 [1851]:58, 70, 71 et passim). Por outro lado, "no que diz respeito ao caráter local e doméstico, e muitas vezes político, as nações eram inteiramente independentes umas das outras" (idem:65). De modo que haveria na Liga Iroquesa tanto o movimento centrífugo, que no dicionário se associa à ideia de "confederação", quanto o movimento centrípeto, associado à ideia de "federação". Em outras palavras, ela seria ao mesmo tempo descentralizada e centralizada.

O autor do verbete em questão acrescenta a observação de que as confederações seriam formas políticas "instáveis", condenadas a dissolverem-se ou a se consolidarem como federações, e as associa a formas antigas, como as cidades-Estado da Grécia ou o Império Germânico. Aqui a comparação com a análise de Morgan é especialmente interessante.11 Pois Morgan parece concordar com isso quando conclui que a força da Liga dos Iroqueses estava no fato de não ser uma "mera confederação" (1922 [1851]:72). E o que a distinguia, segundo ele, era justamente a existência de centralização com manutenção de independência das "soberanias nacionais". Vale a pena citar na íntegra o seu comentário a respeito:

Numa mera confederação de nações indígenas, a tendência constante seria a ruptura, dadas as distâncias de localização e interesses e devido à fragilidade inerente a tal composição. No caso aqui considerado, visava-se algo mais duradouro do que a simples união de cinco nações na forma de uma aliança. Uma junção das soberanias nacionais num governo único era o que buscavam - e realizaram - tais estadistas da floresta. A Liga fez dos Ho-de'-no-sau-nee um povo, com um governo, um sistema de instituições, uma vontade executiva. Contudo, os poderes de governo não eram inteiramente centralizados, a ponto de provocar o desaparecimento das independências nacionais. Muito longe disso. A característica principal da Liga, como estrutura política, era a completa independência e individualidade das soberanias nacionais, no seio de um governo central e englobante, cujo aspecto exterior era tão sólido que dificilmente suas subdivisões poderiam ser descobertas nas transações gerais da Liga (1922[1851]:72-73).

Para desafiar ainda mais nossas categorias classificatórias, na sociedade iroquesa, em que se poderia ver um germe de Estado, Morgan chama a atenção para um fato que caracteriza as sociedades "contra o Estado", tal como definidas por Clastres:

Toda a sua política (civil policy) era avessa à concentração do poder nas mãos de um único indivíduo, tendendo ao princípio oposto da divisão entre um certo número de iguais; a mesma política aplicavam à sua organização militar tanto quanto à organização civil (1922 [1851]:68).

Morgan apontava ainda para o fato de que, não tendo nem os Sachems poder real, a palavra que os designava significava "simplesmente" "conselheiro do povo" (1922 [1851]:66). E sugeria que os chefes iroqueses haviam surgido como uma necessidade, no contexto colonial, acabando por se tornar quase tão importantes quanto os Sachems. Algo próximo ao que lemos sobre os Tupinambá e os Tamoio, entre os quais a influência de chefes de guerra se sobrepunha em certos momentos ao Conselho dos Anciãos. Com os Tamoio, de todo modo, estamos longe do aparentemente bem estabelecido sistema de hierarquias e níveis sucessivos de inclusão da Liga Iroquesa que Morgan saúda como "uma bela e notável estrutura - o triunfo da lei indígena" (1922 [1851]:71).

Os Iroqueses possuíam instituições bastante sofisticadas para o comércio e para a paz, todas elas baseadas numa etiqueta diplomática. A oratória era fortemente associada à função tradicional da política externa, constituída por um sistema de delegados que representavam seus respectivos coletivos. Entre os iroqueses, mesmo o comércio só poderia ser realizado depois de uma série de discursos e festas que confirmavam a qualidade das relações, "porque o comércio supõe a aliança, e sua realização se conforma aos rituais, diplomáticos, de renovação desta" (Perrone-Moisés 1996:95). Se a comparação entre a realidade tamoio e a iroquesa revela seus limites, visto que os últimos contam com estruturas mais afiadas para promover a "paz" - ainda que esta seja similarmente concebida como um estado relativamente precário - é preciso ter em mente que a diferença posta é menos de natureza do que de grau. Afinal, como já ressaltado nas linhas acima, para além de uma suposta anomia política e aquém de uma projeção estatal, havia, entre os Tupi da costa, mecanismos centrípetos sutis que precisam ser mais bem esmiuçados e conceitualizados.

Quem melhor descreveu e analisou em termos positivos a organização política dos Tupi da costa foi certamente Florestan Fernandes, ainda que suas reflexões sobre esses povos, carregadas de funcionalismo, tenham emperrado em temas como a transformação social e a própria questão da "unidade" tupi, constituída que era pela guerra. Em "Os Tupi e a reação à Conquista" (1975), o autor volta ao episódio da confederação dos Tamoios para concluir que se trata ali de uma "reação ativa" à Conquista, o que significa conferir agência aos indígenas, contraposta a uma "reação passiva", baseada em movimentos de migração e fuga em direção ao sertão e à Amazônia. Note-se que a relação dos indígenas com o mundo colonial é, para este autor, sempre reativa; eles não compõem com ela. A abordagem de Fernandes sobre a guerra dos Tamoio redunda, ademais, num paradoxo. De um lado, ele assegura que os indígenas, embora imersos em ambiente bélico, tinham toda a possibilidade de se organizar política e militarmente, não padeciam de limitações nem tecnológicas nem organizacionais e estavam aptos a enfrentar os novos inimigos, os colonizadores portugueses (Fernandes 1989 [1948] e 1970 [1952]). De outro lado, no entanto, o autor sugere que os Tupinambá não lograram conduzir até o fim as alianças necessárias para a tal confederação, ou seja, revelaram-se incapazes de compor uma unidade maior, mesmo em se tratando de grupos todos muito próximos do ponto de vista cultural e linguístico.


Autores

Beatriz Perrone-Moisés; Renato Sztutman

Professores do Departamento de Antropologia da USP e pesquisadores do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo - NHII/USP. E-mails: <perrone@usp.brsz.renato@gmail.com>

 


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