sábado, 13 de junho de 2020

VELHOS CAIÇARAS..............





IMAGEM MERAMENTE ILUSTRATIVA .....ARQUIVO BLOG UBATUBENSE

"... pois são sempre aqueles poucos que buscam Deus que funcionam como o sal da sociedade" (Seyed Hossein Nasr)

Milan Kundera diz que: ..."Dom Quixote saiu de sua casa e não teve mais condições de reconhecer o mundo. Este, na ausência do Juiz supremo, surgiu subitamente numa terrível ambigüidade: a única Verdade divina se decompôs em centenas de verdades relativas que os homens dividiram entre si. Assim, o mundo dos Tempos Modernos nasceu..." (A Arte do Romance, Edit. Nova Fronteira) Por que citar aqui o escritor tcheco? Para me dirigir ao amigo Ezequiel dos Santos, que luta, lá pelas bandas da região sul de Ubatuba, o bom combate para manter viva a memória daquela cultura em que fomos forneados, e lhe dizer que seus textos, no jornal Maranduba News, sobre a Tia Maria Gorda e o Chico Romão, transportaram-me à infância, fizeram-me refletir sobre a cultura caiçara, sobre os velhos caiçaras e lembrar de minha vó materna.

Penso que uma palavra resume bem o que foi essa cultura: religiosidade. A religião católica tradicional, com sua riqueza de rituais e símbolos. Sem esquecer do sincretismo, da herança de negros e índios. Basta pesquisar as danças e outras manifestações que hoje fazem parte do folclore. Lembro-me de que, nas casas, fossem elas de alvenaria ou de pau-a-pique, os oratórios ocupavam um canto privilegiado da sala ou do quarto, todo enfeitado, cheio de imagens dos santos da devoção, a Virgem Maria, o crucifixo ao centro, a vela e um vasinho com pequenas flores colhidas no canteiro da casa. Na casa de vó Maria, o oratório era no quarto, e havia, dentre tantas, uma pequena imagem de um santo por quem tenho simpatia até hoje: São Benedito. Praticamente todo o folclore caiçara tem um fundo religioso, católico.

Aquele universo caiçara, de comunidades isoladas do resto do mundo, incrustadas em sertões e praias de difícil acesso, tinha um Juiz supremo, a Verdade, que permitia discernir o Bem do Mal, que estribava a existência e que permitia consolidar uma comunidade. Hospitalidade, generosidade também são palavras plenas de sentido quando me lembro das casas caiçaras em que fui recebido desde a infância até boa parte da juventude. Nas casas mais humildes sempre havia para a visita um café com farinha de milho ou com peixe seco assado nas brasas de um fogão à lenha. Naquele universo havia ordem e hierarquia. Os velhos eram estimados. Não havia necessidade de um código do idoso para que lhes reconhecessem a dignidade. Era prudente ouvi-los. Respeitava-se também a parteira, a benzedeira, o padre e a professorinha, espécies de autoridades naquelas praias e sertões.

Quando se perscruta o rosto de um velho caiçara, como o de Chico Romão, na foto publicada no Maranduba News, o que se lê? Há ali uma sabedoria esculpida na lida com a terra e o mar. Expressão de uma cultura resultante do enfrentamento e dominação da natureza, de um sentido para o sofrimento alicerçado na fé. Não quero de modo algum dizer que todos os velhos caiçaras que conheci eram repositórios de sabedoria, não, havia aqueles que cerziam e condimentavam a vida da comunidade com a alegria, com o humor dos causos, com o pitoresco de suas vidas: Zé Capão, Sidônio, Macuco, Dito Olinto, Pica-Pau, Santinho, Chico Sapo, Chico Alves, Lindolfo, dentre outros, foram alguns desses personagens.

O texto do Ezequiel também me fez recordar minha avó materna, Maria Amaro de Oliveira, sentadinha num banco de madeira, à beira do fogão de lenha, a acolher os netos na "barra da saia" - porque nós, os netos, na iminência de um castigo por alguma peraltice, corríamos para ela - e a contar histórias dos tempos dos bugres e dos escravos lá para os lados da Praia Dura. Vó Maria era comadre e madrinha de meio mundo e a todos recebia em sua casa. Foi nessa humilde casa, de porta sempre aberta para a rua, que tive meu primeiro contato com algumas manifestações que hoje fazem parte do folclore como a Dança de São Gonçalo e o Xiba. Era também naquela pequena sala que ela recebia a Folia do Divino, cujos integrantes nunca deixavam de visitá-la. Morreu com pouco mais de 100 anos. Tinha os olhinhos pequenos, mansos, usava sempre um vestuário de luto pelo marido, meu avô Bento Paulista, exercia, só com um aceno ou um lance de olhos, aquela autoridade matriarcal que as mulheres de hoje já não têm mais e em cada ruga de seu rosto esplendia essa sabedoria que se norteia na caridade e na fé.

"Pois é, o tempo tá virando!" - disse o Chico Romão à filha, antes de morrer. Pois não é que virou, Ezequiel. Um tempo terrível, um sudoeste bravo, que entrou com suas nuvens plúmbeas e que permaneceu sobre estas terras até hoje. Mas esse vento veio de longe, Ezequiel, dos confins do mundo, virando tudo de pernas pro ar, relativizando tudo, afastando o Juiz Supremo, entronizando idéias cujos frutos hoje estamos colhendo. O homem se colocou no centro do universo e reduziu a vida ao econômico e ao político, ao dinheiro, ao partido, à ideologia, à imanência, ao hedonismo.

Esse vento trouxe o fim da nossa cultura. Chegou por aqui pelos meados do século XX. Acabou com a tradição, com a hierarquia, com a ordem, com a família. Trouxe-nos os bezerros de ouro da modernidade para adorarmos. Deu-nos também a angústia generalizada. O sentido da terra reduziu-se ao valor monetário. A explosão imobiliária introduziu a onipotência do dinheiro. Simone Weil diz que "... o poder do dinheiro e a dominação econômica podem impor uma influência estrangeira a ponto de provocar a doença do desenraizamento"; que "o dinheiro destrói as raízes por onde vai penetrando, substituindo todos os motivos pelo desejo de ganhar"; que o dinheiro "vence sem dificuldades os outros motivos porque pede um esforço de atenção muito menor" e que nada é mais claro e simples que uma cifra. Veio também, nesse tempo, o ciclo do turismo e da construção civil, a imigração desenfreada com sua mão-de-obra barata; a energia elétrica, o telefone, a televisão, o contato com uma classe média paulistana infectada de modernidade, o tombamento da Serra do Mar e a Polícia Florestal; as novas seitas religiosas, a nova teologia da prosperidade, de igrejas compradas prontas e a relação mercantil com a fé. O caiçara experimentou de tudo e ficou com o que havia de pior. Hoje somos espécie em extinção, um reduzidíssimo cardume de tainhas posto numa lagoa artificial e rasa.


Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.


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1969, o ano que marcou as nossas vidas




Há 40 anos, no dia 19 de dezembro, às 09h30min, no Cine Iperoig, tinha início a solenidade de formatura dos alunos das classes matutina e noturna do então ginásio estadual "Capitão Deolindo de Oliveira Santos". O céu estava azul naquela manhã, varrido pela brisa marinha, e apoiava-se sobre as palmeiras imperiais da Praça da Matriz. As meninas esplendiam em seus uniformes - saias azuis pregueadas e blusas brancas. Lindas e delicadas borboletas esvoaçantes naquela manhã estival. Eu estava no meio daquela turma que esbanjava vitalidade e esperança. Tínhamos entre 16 e 18 anos de idade. Naquela manhã, compreendi o verdadeiro significado da amizade, do quanto amava aquela turma da classe do período matutino. O que eu não sabia era que começava ali naquela praça, naquela manhã de calmaria, depois de acabada a solenidade de entrega dos diplomas, a dolorosa estrada que me levaria a colecionar, vida afora, despedidas. Despedíamo-nos de uma das épocas mais afortunadas de nossas vidas. Hoje, quando reencontro alguém daquela turma, é unânime esse reconhecimento.

Eu fora o presidente da Comissão de Formatura. Havia conseguido o Cine Iperoig para a solenidade. Conseguira também, emprestado, o órgão da Igreja Presbiteriana para acompanhar o coral de alunos (ensaiado pelo professor e pastor José Calixto) na canção, com letra feita por mim para a ocasião, uma espécie de paródia da música italiana Torna Sorriento. Fizemos também, após e entrega dos diplomas, um coquetel, no restaurante do pai de uma das alunas, a amiga Ana Célia, e um baile no saudoso Grill, uma boate que havia na Avenida Iperoig.

Para arrecadar fundos, cuja coordenação ficara a cargo do Sergio (Shiguê), além das mensalidades dos alunos, fazíamos bailinhos aos sábados à noite, nas casas do Minoro, da Carmem e da Sueli. Cobrávamos ingressos e vendíamos refrigerantes e bebidas alcoólicas (hi-fi, cubalibre e cerveja). No pátio do ginásio (no prédio do atual colégio Olga Gil) tínhamos um balcão de madeirite em que vendíamos, na hora do recreio, cafezinho, sanduíches (pão com queijo ou com mortadela) e refrigerantes. Todos esses produtos eram doados pelo comércio local. Dava trabalho, mas era muito divertido. Havia no Capitão Deolindo, naquele ano de 1969, um clima alegre, um relacionamento de amizade respeitosa com o diretor do ginásio, o inesquecível professor Celestino Aranha, e com a maioria dos professores. Minha gratidão eterna a todos eles: Angela Pereira, Sylvia Ley, Wilma Alves, Cezar Aranha, Hercules Cembranelli, Joaquim Barbosa e o Fernando Carvalho.

Na solenidade, que tinha por paraninfo o professor Hercules, depois que a oradora, Carmem Lúcia, terminou seu discurso, começamos a canção de despedida e, quando a terminamos, havia lágrimas nos olhos da galera. Éramos jovens vivendo na mesma cidade provinciana, com uma população que não passava dos 10 mil habitantes. A maioria vinha estudando junto desde o primário; mas não era só estudar, não: íamos à praia, ao footing de paquera em volta da Praça da Matriz e na Avenida Iperoig, aos bailinhos, ao cinema, ao boliche, às praticas esportivas. Era uma turminha muito unida.

Encerrada a solenidade, saímos do cinema e despedimo-nos ali na praça, e ficou-me a impressão de que aquele lugar se tornara a beira de um cais. Alguns desses amigos, logo depois, partiram, foram embora, fazer o colegial em outras cidades, outros permaneceram por aqui mesmo, para fazer a Escola de Comércio, a atual "Tancredo Neves", recentemente inaugurada. É bom que se diga que a Escola de Comércio foi uma conquista de jovens ubatubanos, de uma geração anterior à minha, sem nenhum empenho por parte dos gestores públicos de plantão à época. Deixo essa história para o Ernely Fragoso contar.

O ano de 1969 fora muito conturbado no mundo inteiro. Havia a guerra fria, o Muro de Berlim (o mais expressivo monumento do socialismo real), os movimentos estudantis, as patrulhas ideológicas, os hippies, as ditaduras militares, de esquerda e de direita. O Brasil vivia sob regime militar, no entanto, por mais paradoxal que pudesse ser, havia uma tremenda ebulição cultural nos costumes, nas artes. Havia uma atmosfera de esperança. Havia segurança quanto ao futuro e nós faríamos as coisas acontecerem. Ubatuba era nossa. Ah, a juventude! Mas aqueles tempos produziram também os homens que viriam determinar (e continuam determinando) os rumos políticos do Brasil depois da anistia política. São a nossa intelligentsia, são também os nossos governantes desde o fim do regime militar, responsáveis pela vereda que tomou a nossa democracia e pela situação política atual.

No dia 19 de dezembro deste ano, cada qual à sua maneira, estaremos comemorando 40 anos de nossa formatura de ginásio e orando pelos que já não estão mais entre nós. Estaremos celebrando também os momentos inesquecíveis que vivemos intensamente, em segurança e esperança, a plenitude de nossa juventude. Há uma frase, do padre Antonio Vieira, que diz: "O bem ou é presente, ou passado, ou futuro: se é presente, causa gosto; se é passado, causa saudade; se é futuro, causa desejo." Aquele abraço aos amigos e, para sempre, obrigado!


Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi.

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