Quem aí já comeu cambucá levanta a mão! Como é? Que gosto tem? Como falar do cambucá se no mundo semelhante coisa não há? O cambucazeiro é árvore silvestre, nativa, esguia de porte, de tronco liso e a ramagem fica lá no bem alto onde frutificam. Lembro-me de que arrancávamos a estilingadas os cambucás dos três pés que havia na beira do rio Grande, perto do grupo escolar Dr. Esteves da Silva. Sim, usávamos o estilingue, uma espécie de videogame da minha infância. Todo moleque tinha um. Na mesma margem do rio Grande, no quintal da casa de dona Madalena, já falecida, a segunda mãe da criançada que estudava naquele grupo escolar, onde ela era funcionária, ainda há um velho cambucazeiro, talvez um parente daqueles outros três. O filho de dona Madalena, o Laci (mentiroooooso!), com quem compartilhei bons momentos da infância, prometeu-me uma muda há trocentos anos. Tô esperando. Pela demora, ele deve estar tentando algum tipo moderno de enxerto ou quem sabe esperando a vinda de algum técnico da EMBRAPA para resolver o caso. A boca fica cheia d’água quando se pega a falar do cambucá. Fruta igual não há. Mas não é só do cambucá que vive o pomar da minha memória, há outras coisas da infância caiçara, desse modo de ser praiano que, aos que têm menos de quarenta e não nasceram em Ubatuba, torna-se difícil descrever ou explicar. Quando alguém hoje em dia me fala emocionado em resgatar a cultura caiçara, fico com o pé atrás. Sempre me pergunto se esta palavra - resgatar - tem para esse alguém o sentido de tirar do esquecimento e se é clara a finalidade que motiva esse intento. Fico ensimesmado, duvidando de que esse lidar com o folclore não passe de mero hobby que, para alguns, acabe por servir de ganha pão em algum órgão público ou noutra organização. Não vejo como resgatar alguns desses bens da cultura caiçara se não se tiver por meta integrá-los à atividade econômica, atrelá-los ao turismo. Isso porque aos ubatubenses de hoje, a cultura caiçara não tem mais sentido, não lhes é vital. E sei também que tudo aquilo que for resgatado não será mais do que um espelho embaciado do que foi um dia. Hoje, uma apresentação de, por exemplo, um grupo de dançadores de xiba ou de São Gonçalo, mesmo que dentre eles haja um ou outro remanescente dessa cultura, acaba sendo algo deprimente. Pelo fato de serem pessoas pobres e de não haver nenhuma forma de recompensa material por essas apresentações, por esse "resgate". Nem mesmo têm a possibilidade de transmitirem essas tradições às novas gerações, porque estas vivem outra realidade social. Estão noutra. A cultura é a expressão viva do modo de ser de um povo, a expressão espiritual de uma comunidade. O caiçara era o amálgama dos modos de ser do português e do índio, alinhavados e bem costurados pelo catolicismo. O espaço vital, o contexto em que se realizou a cultura caiçara não existe mais. O município, ao longo de algumas décadas, foi submetido a um processo radical de aculturação devido ao turismo e às ondas de migrantes que aqui se espraiaram. Para complicar, ocorreu aqui, e creio que em tudo quanto é lugar do mundo, uma fabulosa proliferação de seitas religiosas sem nenhum vínculo com a tradição, despidas de rituais e de símbolos que fazem das grandes religiões essa incomensurável ponte entre o mundano e o divino. Há coisas da minha infância praiana que, assim como o sabor do cambucá, são inexplicáveis e quase incomunicáveis a quem não as vivenciou e que hoje não têm mais sentido. Falei acima da dança de São Gonçalo porque era comum, na exígua sala da casa de minha avó materna, presenciar essas manifestações do sincretismo religioso que, no passado, tão bem serviram à fé, à aproximação, à fraternidade entre os habitantes desta terra. Pois é, como o sabor do cambucá, que dá água na boca, há também outras coisas, modos de ser caiçara que ao bailarem na memória, acabam por encher os olhos d’água. Para finalizar, aproveitando o ensejo, ô Laci, mentirooooso! cadê a minha muda?! Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi. FONTE.............UBAWEB.COM |
terça-feira, 28 de julho de 2020
O cambucá e a cultura caiçara
Biblioteca, livros e leituras
Certa ocasião, entrando na adolescência, ganhei um livro de presente: A volta ao mundo por dois garotos, de Henri de La Vaux e Arnald Galopin. Li-o todinho. Umas trocentas páginas. Foi o meu primeiro livro. Comecei e não consegui parar. Até então, era um devorador de gibis. Depois li o Cazuza, do Viriato Correia. Em seguida, tudo o que me foi possível ler do Monteiro Lobato. Em 1967, qual não foi a minha alegria de saber que a prefeitura havia criado - na administração do Ciccillo Matarazzo, através do decreto nº 52, em 06/07/1967 - e estava montando uma biblioteca, numa sala do prédio da Câmara Municipal, pertinho da casa de meus pais! Corri até lá. Havia livros espalhados por todo canto, e duas senhoras empenhadíssimas em cadastrá-los e organizá-los nas prateleiras: dona Jenny Bueno dos Santos Aguiar e dona Jorgina Rocha. Ofereci-me a ajudá-las. Um prazer indizível, tocar naqueles livros, sentir-lhes o cheiro, manuseá-los. Até hoje tenho essas mesmas sensações. Tornei-me rato da Ateneu Ubatubense. Minha ficha de usuário: nº 8. Outros adolescentes de então - como o webmaster da revista O Guaruçá, Luiz Moura -, também colaboraram na organização da nossa biblioteca. Lembro-me de dona Jenny nos corrigindo, ensinando como segurar e folhear um livro para que se evitasse estragos na encadernação. Tenho um enorme carinho pela Biblioteca Municipal Ateneu Ubatubense. Dei minha contribuição quando de sua criação, na minha adolescência e, mais tarde, quando assessor administrativo da Fundart (Fundação de Arte e Cultura de Ubatuba), na gestão da professora Silvia T. Issa, conseguimos ampliar o acervo em 5.000 volumes, além de adquirirmos mesas, cadeiras, estantes e pintarmos o prédio. Só não informatizamos porque faltou grana. A partir da inauguração, li um bocado de livros. A esmo, sem método, sem orientação. Porém, li os clássicos. A Ateneu Ubatubense tinha-os quase todos. Os nacionais e os portugueses. Machado de Assis seduziu-me. Até hoje, volta e meia, estamos em colóquios íntimos. Mas não é só literatura não. Na biblioteca municipal você encontra bons livros de filosofia, psicologia, história, sociologia etc. Tenho a impressão de que naqueles tempos lia-se mais livros do que hoje. Os professores de português, no ginásio, exigiam leitura e interpretação de autores nacionais e portugueses consagrados. Senão, levávamos pau. Alguns liam por prazer, outros, por medo. Tenho cá minhas dúvidas se um adolescente de agora seria capaz de ler e entender o Dom Casmurro, do Machado de Assis. Em 1968, na quarta série do ginásio, por exigência do professor de português - o saudoso Fernando Costa Carvalho -, fiz um trabalho escolar, manuscrito, sobre esse livro. Um calhamaço de papel pautado. Tirei dez. Fechei o segundo semestre e não precisei fazer exame dessa matéria no final do ano. Dom Casmurro é, até hoje, das obras do mulato de Cosme Velho, o meu preferido. Ler, ler, ler. Saber ler. Gostar de ler. Em simbologia, o livro é o símbolo do Universo: o Universo é um imenso livro. Afonso Romano de Sant’anna diz que quem lê está interpretando o mundo, que somos solicitados o tempo todo a ler o universo. Saint-Exupery, a respeito dessa leitura, do compromisso do saber com o ser, diz: "Vem alguém à minha propriedade e fala: ’lá é muito pobre. Só tem algumas pedras, algumas árvores e algumas cabras’. Ele não viu a minha propriedade. Aquilo era só o território. O principal estava invisível. O que faz a minha propriedade é aquilo que não se vê e que liga as pedras, as árvores e as cabras e me liga a tudo". Assim, a primeira leitura, a que só vê o território, tem um nível funcional, a leitura que faria, por exemplo, um agrimensor ou um advogado. Já a segunda, tem um nível significativo - é um diálogo, uma comunhão com as coisas. "No princípio era o Verbo" - são as primeiras palavras do Evangelho de São João. "O Verbo, o Logos, é, ao mesmo tempo - segundo René Guénon -, Pensamento e Palavra. Em si, Ele é o Intelecto divino, o ’lugar dos possíveis’. Em relação a nós, Ele se manifesta e se exprime pela Criação, na qual se realizam, na existência atual, alguns desses possíveis que, enquanto essências, estão contidas Nele desde toda a eternidade. A criação é obra do Verbo. Ela é também, por isso mesmo, sua manifestação, sua afirmação exterior. Por isso, o mundo é como uma linguagem divina àqueles que sabem compreendê-la". Nestes tempos de ideologias materialistas e coletivistas, de mediocrização e de estupidificação, saber ler e pensar por conta própria ainda é um excelente remédio para não se perder a individualidade, a autenticidade. Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi. FONTE...........SITE.......UBAWEB.COM |
Memórias de um ubatubano
Cine Iperoig. Quando inaugurou, não me lembro direito a data, não pude entrar. Não pude assistir a soirée. Não tinha idade suficiente. Mas, na primeira matinée de domingo, eu estava lá, sentadinho nas primeiras fileiras defronte àquela tela enorme. Acho que foi Tarzan, o filme a que assistimos. Com o Johnny Weismüller? Ou seria com o Gordon Scott?... O velho cinema-teatro, na Praça Nóbrega, havia sido desativado. A televisão ainda não chegara a Ubatuba. Imagina a expectativa da garotada com a estréia do Cine Iperoig. Todos de banho tomado, arrumadinhos, com nossas melhores roupas domingueiras. Um evento... inesquecível. Do lado de fora, os carrinhos de pipoca, os vendedores de pirulito em tabuleiros, de amendoim torrado e de pinhão cozido. Na bilheteria, a Vilma Xavier. O Zé Diniz de porteiro. No saguão do cinema, uma bonbonnière chiquérrima. Tudo cheirando a novo, tudo bem asseado: as poltronas, as cortinas com listas coloridas em dégradée e os banheiros. Um luxo! Nas paredes laterais da sala de exibição, pinturas com motivos indígenas estilizados para fazer jus ao nome do cinema. Enquanto se aguardava o início da sessão, música ambiente. Músicas inesquecíveis. Uma de que me lembro neste instante: Lisboa Antiga, com a orquestra do Nelson Ridle. Dalvo, o gerente, tinha, para a época, um bom gosto danado. De repente, fechavam-se as cortinas da entrada, suspendia-se a música, apagavam-se as luzes e... O sujeito que operava o projetor, o cinematógrafo, era o inesquecível e insubstituível Dito Cambito. Figurinha carimbada, um personagem pitoresco que ficou na história não oficial de Ubatuba, justamente a história mais intensa, mais fecunda. O cinema e os gibis fizeram minha cabeça, meu imaginário. Não perdia uma matinée de domingo. Depois das sessões, aproveitávamos o restante do dia para encenar nas ruas e terrenos baldios o que víamos na tela. Improvisávamos revólveres e espingardas com raízes de ciosa, arcos e flechas de bambu e espadas de cabos de vassouras inservíveis. O Toninho Sidônio gostava de imitar os trejeitos do Randolph Scott e os do Audie Murphy. O jeito de andar, a rapidez em sacar o revólver (o de ciosa, é claro) – Mãos ao alto! E tome tiro para todo lado. Sorteava-se com pedrinhas para saber quem seria mocinho ou bandido naquelas aventuras sem roteirista. Escolhíamos um determinado lugar para servir de prisão. Depois a garotada se espalhava e começava a brincadeira. Naquela época, o sonho de cada moleque era ganhar de presente um revólver de brinquedo, parecido com aqueles dos cowboys. Quando ganhei o meu primeiro Colt, fiquei bacana do pedaço. Nada de querer ser bandido. Uma inveja danada dos amigos. Gozado, não me lembro de que alguém tivesse sido influenciado a ponto de ter se tornado um marginal, um bandido pelo uso, na infância, de revólveres e outras armas de brinquedo. Bons tempos aqueles em que as ruas eram extensões das casas e não havia tantos sociólogos e pedagogos querendo mudar o mundo como hoje em dia. Quando assisti, mais recentemente, ao Cinema Paradiso, senti-me na pele daquele menino, protagonista do filme. Na verdade, lembrei-me dele quando soube que demoliram o nosso Cine Iperoig – um símbolo para várias gerações de ubatubanos. Doeu. Mas é preciso resignar-se, mesmo porque os nossos ubatubanistas e mentores da caiçaraneidade não discordaram desse feito. Gostaria de lembrar Joaquim Nabuco, falando do espírito de aperfeiçoamento e de progresso: “... o que resulta é que as reformas, as modificações serão governadas por algumas regras elementares: conservar do existente tudo o que não seja obstáculo invencível ao melhoramento indispensável; outra, que o melhoramento justifique – e para justificar não basta só compensar – o sacrifício da tradição, ou mesmo do preconceito que o embarga; outra regra é respeitar o inútil que tenha o cunho de uma época, só demolir o prejudicial...” (in Minha Formação - Joaquim Nabuco) Nota do Editor: Eduardo Antonio de Souza Netto [1952 - 2012], caiçara, prosador (nas horas vácuas) de Ubatuba, para Ubatuba et orbi. FONTE..........SITE............UBAWEB.COM |