sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

ESTRELA DA GUIA

 


Caminhos da Praia da Caçandoca - Região Norte  de Ubatuba SP

  Maria Galdino era filha de ex-escravos, na Caçandoca. Negra retinta, casou-se com Tolino, de igual origem. Otávio foi seu único filho. Era a capelã do lugar. Em todas as festas, que naquele tempo aconteciam nas casas, era ela quem puxava as rezas, tanto na nossa língua quanto no latim. São Pedro e São Paulo, Sagrado Coração de Jesus, Santo Antônio...em todas elas ela estava presente. Detalhe: todas as festas religiosas terminavam com danças que amanheciam o dia. "Era compensação da vida", segundo ela. No começo da década de 1990, Maria Galdino terminou seus últimos dias no asilo do Sertão da Quina. O mano Mingo foi quem fez um ótimo registro de suas falas para um trabalho acadêmico, de conclusão do curso de Geografia, na Universidade de São Paulo. Quem sabe um dia tenhamos um livro para que mais gente saiba dessa mulher caiçara de tanta importância. Quem sabe?

       "Meu pai era remador de canoa de voga. Estrela da guia era o nome da canoa maior da fazenda, com oito remadores e um mestre. Em cada banco iam sentados dois remadores, um de cada lado, com remos de mais de vinte palmos de tamanho. Trabalho duro, feito durante muito tempo pelos escravos, pelos pretos, a minha gente. Um mestre comandava eles. Aliviava só quando tinha vento, que se aproveitava a força dele na vela, pano que ficava mais no meio da canoa. Na proa era traquete, parecido aos dessas canoinhas de hoje. Havia uma cobertura, de pano de algodão, para abrandar o sol sobre os tripulantes e as coisas da embarcação. Papai conhecia desde Santos até lá para as bandas do Rio de Janeiro. Remava direto. De vez em quando passava um dia ou dois com a família, na Raposa, e contava das tormentas enfrentadas por eles, no mar.  De tudo vinha e ia por esses lugares. O senhor dele negociava cachaça, peixe seco, panela de barro, sal, peça de fazenda, farinha da terra, laranja, galinha... Naquele tempo, passava de vez em quando uma embarcação maior, o barco que diziam se mover a vapor, mas creio que só servia para quem tinha mais dinheiro". 


        Lá na costeira da praia da Raposa tem um pesqueiro: a Pedra do Tolino. Em outra ocasião eu falarei dela.


FONTE.......www.coisasdecaicara.blogspot.com

CONSERTADA PARA SOLTAR AS PERNAS

 

Praia do Pereque Mirim - Região  Centro -Sul de Ubatuba SP


O dia amanheceu nublado; até algumas gotas de chuva vieram assim que a escuridão se foi.  É novo ano (para os que seguem o calendário cristão).

     Isso de marcar o tempo é coisa antiga, dos povos antigos. Precisavam prestar atenção nas estrelas e no Sol, nas fases da Lua, nos comportamentos dos bichos, na brotação das plantas e em tantos outros fenômenos para terem mais sucesso nos desafios, nos empreendimentos e poderem festejar. Assim nasceram os calendários. Depois das chuvaradas, as cheias dos grandes rios traziam nutrientes à terra, cisco de montão, permitiam a agricultura e o surgimento das cidades com suas organizações. Pelas águas (mares e rios) se estabeleciam relações, vieram os contatos com povos diferentes, de saberes distintos e outros costumes.

   Na cultura caiçara, em Ubatuba e região, a praia era o lugar onde se estabeleciam relações com o mundo exterior. O trabalho e o lazer convergiam para este espaço. As novidades partiam e chegavam com as canoas, na força dos remos. Nas praias, sobretudo próximos dos ranchos das canoas, onde remendava rede e fazia manutenção dos apetrechos de pesca, a caiçarada fortalecia os laços sociais enquanto proseava, contava histórias, causos... tiravam pasquins, propunham adivinhações, combinavam pitirões, caçadas e festas.

   Com o passar do tempo, a sanha imobiliária modificou tudo. Os jundus foram ocupados pelas "casas dos tubarões". Depois, na década de 1970, surgiu a moda de acampar nas praias. Nem decretos municipais são capazes de controlar o fluxo nos feriados prolongados, final de ano e férias escolares. Neste momento, imagino famílias inteiras acumulando lixo (que serão deixados ali mesmo ou jogados no mato mais próximo), perturbando até a natureza com seu barulho infernal, em diversas praias, na areia mesmo. Continuam "comemorando" o novo ano. Faz parte da massificação cultural. 

  Atualmente, irreconhecível o espaço de sociabilidade de outros tempos,  a comunicação acontece pelo asfalto, televisão e internet. Uma nova geração de ubatubanos e de pessoas que adotaram a cultura caiçara está se recompondo no novo contexto, marcando o nosso calendário com eventos que são recuperados de outros tempos, onde a praia tinha um papel fundamental em tudo. Quantos encontros sobre musicalidade os fandangueiros realizaram no ano que se findou? Quantas oficinas de saberes tradicionais aconteceram? Quantas violas e rabecas essa geração de artistas produziu? Quantas imagens foram trocadas e divulgadas para resgatar traços importantes da nossa cultura? Apesar da pandemia, quantos momentos bons aconteceram no nosso território cultural? 

   Neste momento, olhando para um rótulo de uma bebida nossa, imagino as angústias do meu povo festeiro, do Dito do Antônio Clemente louco para dançar e poder gritar "amanheeeeeece".   Recorrendo à sensibilidade do Santiago Bernardes, exclamo: "Ah uma consertada para soltar as pernas e viola de  montão!".   
      Neste novo ano, apenas desejo que as nossas amizades se fortaleçam em torno da nossa cultura e do combate ao discurso de ódio que está corroendo o Brasil.