segunda-feira, 29 de julho de 2024

Aquela casa



             Quem faz casa na beira da estrada tem sina de acolhedor, pois quem viaja recorre sempre por um copo de água, uma informação ou simplesmente larga pelo chão o fardo num instante para prosear

           O dia amanhecia. Bem na frente daquela casa eu parei para esperar o Chico Lopes que se dirigiria ao pé da serra, ao sítio. Eu iria para conhecer a cachoeira das Pedras Brancas. Sentei ali, na beira da estrada; poucos carros passavam naquela momento. Abri a mochila e puxei de caderno, máquina fotográfica e caneta para registrar aquele momento. Deduzi que há tempo ninguém morava ali, nem zelava pela área como seria merecido. Notei o estilo e os materiais usados na obra: tudo moderno em outros tempos. Foi feita bonita, acolhedora... Sem cerca alguma para dizer que confiava nos passantes e não recusava acolhida. Uma janela antiga requadrada com esmero. Em meio à natureza, ela parecia querer também ser notada. Assim a humanidade foi trabalhando, modificando a natureza: pedra foi cortada para alicerce, barro virou tijolo e telha, árvore virou porta, janela, caibros, vigas, ripas... A casa se tornou proteção ao homem, à mulher e às crianças que se multiplicaram sobre mais espaços da natureza, da mata ao redor. O tempo passou, as pessoas se foram e os sentimentos de zelo pelo belo foi se apagando. Teve pintura? Agora não tem mais. Flores abundavam o terreiro? Agora é só terra seca e folhas secas ajuntadas pela ventania. O que eu faria? Reformava seguindo conforme a originalidade e a tornaria aquela casa novamente agradável, capaz de despertar contemplações de todo mundo que estivesse passando por ali. Depois de tudo pronto, de um jardim colorido, um banco seria permanente para boas prosas. Um cachorro, um gato e galinhas dariam movimento ao espaço. Pensava tudo isto quando o Chico chegou batendo em minhas costas. "Vamos?". Embalado na imaginação, prossegui: "Senta aí, compadre. toma um cafezinho que acabei de passar. E aproveita que a minha amada ainda dorme, mas aprontou ontem umas broinhas de milho que não tem como não gostar"Ele, vendo a casa e notando o caderno com coisas escritas, sentou ao meu lado. Me escutou e acrescentou a sua luminosidade ao meu olhar, àquela casa da beira do caminho de antigamente, onde muitas tropas passaram com suas cargas valiosas a enfrentar a dura subida e descida da Serra do Mar.


FONTE :

COISAS DE CAIÇARA: AQUELA CASA (coisasdecaicara.blogspot.com)

SEO MANÉ APOLINÁRIO

 

Amanhecer - Arquivo Clóvis 


Quando criança, nas ocasiões em que fui à cidade com o  vovô  Zé Armiro, eu ficava muito feliz. Além de tantas novidades, eu também ganhava guloseimas (que não imaginava vivendo na praia da Fortaleza, onde só tinha as vendas do Cáindo e do Jorge, além do tio Maneco Mesquita); via pessoas diferentes, casas com vidraças e bastante carros. Quase sempre a gente passava numa loja de tecidos. “A sua avó encomendou um corte de fazenda azul, de preferência tergal que não precisa passar e seca mais depressa. Vamos procurar na Casa Anchieta, depois na Macedônia ou na Dina. Haveremos de encontrar, em último caso, na alfaiataria do Isaías Mendes, ali perto do Bananinha”.    

 

    Eu sempre gostei de prestar atenção nas pessoas. Que paraíso são as cidades para isso! Na Ubatuba daquele tempo, por volta de 1970, vivia uma dessas pessoas singulares, amigo do vovô desde os tempos em que viveu em Santos. Era o Seo Mané Apolinário. Eles, nas primeiras décadas do século passado, ainda adolescentes, trabalharam juntos nos bananais daquela região, mais precisamente na localidade denominada de Itapema (hoje cidade de Vicente de Carvalho), na famosa Baixada Santista. Sim, a minha gente também precisou migrar em busca de melhores condições de vida! Nossos parentes viveram em outras terras “comendo o pão que o diabo amassou”, como dizem por aí.

 

   O Seo Mané sempre me chamou a atenção porque ele usava uma espécie de farda, com quepe e tudo. Quem o visse de longe podia confundir com um policial. Até apito ele trazia ao pescoço. Vovô dizia que ele andava assim porque era funcionário da prefeitura, trabalhava de vigia noturno. Naquele tempo eu não entendia bem porque precisava de gente para olhar, proteger as coisas nas noites, quando o certo era estar todos dormindo. “Mas ele é da polícia, vovô?”. “Não. Ele é guarda noturno. Só que gosta tanto da farda que não larga dela. Desde que a gente trabalhava juntos, naquele tempo lá em Santos, ele sonhava em andar fardado. Creio que, vendo tantos soldados se tecendo por lá, ele se encantou pelas vestimentas, quis ser parecido com os militares. Deu sorte. Depois de voltar para cá arranjou esse emprego de vigia noturno que, pelo visto, parece até precisar usar farda. Aí, então, juntou a fome com a vontade de comer. Veja como ele tá feliz. Agora só anda assim, fardado o tempo todo”.

 

    Passou o tempo, fui morar mais perto da cidade. As derradeiras imagens que eu guardo do Seo Mané Apolinário continuam com ele fardado, mas em cores desbotadas, costuras feitas à mão em algumas partes e quepe em ruínas, mas se mostrando orgulhoso como “militar”. Engraçado, né?

 

Postado por José Ronaldo

FONTE :  https://coisasdecaicara.blogspot.com/2024/07/seo-mane-apolinario.html