sábado, 12 de setembro de 2020

DESAFIOS DAS LETRAS...

 

Sinéia, professora caiçara boa de prosa (Arquivo JRS)



                Vovó Martinha, nascida na praia do Pulso, se queixava sempre por não ter aprendido a ler. “No meu tempo de criança não havia escola. Bem depois, quando as crianças foram nascendo é que, onde morava o Chico Romão, na boca-da-barra [rio Maranduba], começou a ter ensino. Um professor vinha da cidade [centro] e passava a semana toda, ficava hospedado com uma família dali mesmo”. Mais tarde, quando tinha quase todos os filhos casados, a vovó resolveu frequentar o MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização). Era tempo dos governos militares (1964 a 1985). No serão, com um caderno e um lápis na sacola, ela se dirigia ao miolo do bairro (Sapê), à casa da dona Maria Balio, uma guerreira do nosso povo. Era lá que as aulas aconteciam. Ela aprendeu as letras, soletrava cada uma delas com segurança, mas não alcançou aquele ponto mágico de uni-las e ter o significado completo. Não persistiu, deixou o curso. “Porque eu me cansava demais depois de um dia todo na labuta”. Outro caso para entender os desafios das letras é o depoimento do Antônio Alexandre, da praia do Puruba. Está em Os caiçaras contam:

                “Aprendi a escrever na terra. Tinha 18 anos. Pegava um pedaço de jornal e perguntava pra quem soubesse: Que letra é essa? A pessoa dizia e eu escrevia no chão. Daí em diante escrevi largamente. Escrevi de tudo. Fazia aquela garrancharia e depois arrumava. Rapaz!, o que eu mais gostava de fazer era estudar, mas aqui não tinha escola... Três meses de estudo pra mim teria sido como 200 anos!”.

                Vovó Martinha e Antônio do Puruba: dois saudosos caiçaras apenas para ficar como exemplos. A prosa boa deles me faz falta. Escutei-os bastante, mas gostaria de ter registrado tantas coisas a mais deles... Quantas boas histórias, quantas prosas prazerosas se foram, continuam se apagando, sem se tornarem letras arrumadas, sem se arranjarem em textos para deleites hoje e nas gerações vindouras?

                Para finalizar: Maria Balio era tia do Antônio. Era a "Tia Mariazinha" de quase todos que habitam em torno da capela da praia (Puruba). Nasceu bem ali, na praia da Justa, no norte do município, mas acompanhou o marido, funcionário do telégrafo, ao Sapê, no sul, onde viveu até os últimos dias de vida. Era mulher de encarar enormes desafios e de vencê-los.

DO   BLOG  COISA DE CAIÇARA    de  Jose Ronaldo

FARINHA DE MANDIOCA NO SERTÃO DO UBATUMIRIM....

 


MARIA BALIO, A PROFESSORA

 

Arte do Estevan, meu filho (Arquivo JRS)


            Ao relatar que o Antônio de Puruba aprendeu de uma forma bem peculiar (“Pegava um pedaço de jornal e perguntava pra  quem soubesse: Que letra é essa? A pessoa dizia e eu escrevia no chão. Daí em diante escrevi largamente...”), agora digo aqui uma experiência pessoal, o meu princípio de alfabetização: tudo começou no lagamar, na areia molhada da praia. Meu pai, quando íamos cedo na praia esperar os pescadores que vinham de visitar seus tresmalhos, riscava as letras com uma vareta e depois pedia que eu copiasse do jeito que estava. Assim me iniciei nas letras, no caderno bem grande da praia. Primeiro aprendi a escrever o meu nome inteiro. Gostava tanto que, ao ver um espaço limpo, quando voltava para nossa casa, logo pegava um pedaço de carvão para deixar as marcas da minha evolução. Paredes, chapas de madeira, cascas de árvores, pedras... Tudo ganhava rabiscos. Nunca levei bronca por isso.

            A Dona Maria Balio, mulher de muita fibra, dizia que assim que chegou ao Sapê, onde eu nasci, logo se interessou em ensinar às crianças da região. Por volta de 1952 já estava ministrando aulas no Sertão da Quina. Era um trabalho voluntário, gratuito. Além do aprendizado das crianças, também orientava as mães a respeito de cuidados gerais (saúde, higiene, vestimentas etc.), possibilitando aquilo que hoje seria chamado de empoderamento das mulheres. Nenhum papel era desperdiçado quando aparecia. “Eu juntava eles, com a minha máquina de costura, sob a forma de cadernos para usar nas aulas”. Mais tarde, em 1959, ela já estava num novo desafio, na praia Grande do Bonete: “Eu lá ensinava num rancho de canoa, no jundu. As crianças se espalhavam pelas canoas e na areia mesmo. Nem me lembro de quem providenciou lousa e giz. Para os alunos aquilo era um espetáculo maravilhoso. Precisava ver a satisfação deles conforme iam aprendendo! Só quando o tempo virava, com ventania e chuva, é que não tinha como dar aulas, tudo ficava respingado, molhava de verdade. Pouco tempo depois, o Adelino cedeu a sua sala para servir de escola. A casa dele era no canto de lá [esquerdo, depois da barra] da praia. Eu andava tudo isso a pé. Ficava se segunda até sábado cedo com eles. O fim de semana vinha para casa”. (Do Sapê até a Grande do Bonete, gente!).

Outra coisa desta mulher valente: promovia a festa de Natal. Conseguia angariar uns presentes com quem tinha mais dinheiro e distribuía para nos alegrar. Foi vereadora, juntamente com o seu filho Zé do Prado, num tempo em que era apenas um trabalho voluntário, de serviço ao município, sem nenhuma remuneração. Me recordo de um evento religioso no Largo do Sapê, no final de 1968, quando a banda da cidade, entre outras músicas, executou A Banda, de Chico Buarque. A apoteose foi quando um helicóptero sobrevoou o povo caiçara concentrado ali. Todos acenavam com um lenço branco para saudar a imagem de Nossa Senhora que diziam estar nele, nos abençoando. Muita gente chorava, mas eu não entendia a razão.  O que importava para mim era a festa, o povo reunido, o espaço lotado com a nossa gente. Que beleza!

Texto  de  Jose Ronaldo   Blog   www.coisadecaicara.blogspot.com