CAUSOS CAIÇARA de Julinho Mendes
RATAMBUFE “BOI DE CONCHAS”
Cipriano era um tropeiro do Bairro Alto de São Luiz do Paraitinga que comercializava em Ubatuba. Descia e subia a serra semanalmente, trazendo produtos como: queijo, farinha de milho, carne seca, carne de porco e também comercializava animais como cavalo, boi, galinha, pato, cabrito e porco. Dos produtos que levava, era a banana, peixe seco, sal e farinha de mandioca.
Um dia, de volta a sua fazenda, depois de uma exausta subida da serra, vindo de Ubatuba, encontrou solitário, um boizinho recém-nascido, tinha uma mancha escura em formato de concha bem no meio da testa e o rabo preto, o resto era todinho branco.
Ao ver Cipriano, o bichinho deu um mugido parecendo som de ratambufe.
-Opa! Falou Cipriano – Nasceu o que eu esperava o bezerro, filho do boi Marujo com a vaca Sereia. Que beleza. E esse mugido? -Tá parecendo o som do RATAMBUFE do Domingos Anagro, batendo em dia de carnaval.
- RATAMBUFE! -Isso mesmo, você vai se chamar Ratambufe!
Como sempre e como de fato fazia passou a conversar com o bichinho, naquela conversa que originou o dito popular: “conversa pra boi dormir”
- Ratambufe, você nasceu no dia 29 de junho, dia de São Pedro Pescador, não é? Vou levar você para conhecer o mar! -Você vai ver que beleza que é o mar! -Está ouvindo Ratambufe?
O recém-nascido bezerro, parecendo que entender, fitava a promessa do velho Cipriano...
Ratambufe foi crescendo e ouvindo as promessas de seu dono que iria lhe mostrar o mar. O que seria o mar? O que seria as gaivotas, as conchas, os peixes, os guaroçás,... que Cipriano sempre falava? Ratambufe cresceu ouvindo falar do mar e das coisas do mar... Para Ratambufe o mar seria o céu, o paraíso.
Quatro anos se passaram e era o mais lindo animal de Cipriano; era um boi forte, grande, inteligente e o que mais importava era seu peso, suas arrobas. Aquela história de mar, na verdade era conversa pra boi dormir. Cipriano, como bom comerciante que era, tinha na verdade outras intenções; desceria a serra com o boi, indo direto para o matadouro, venderia sua carne e ganharia um bom dinheiro.
O matadouro ficava no final da rua cel. Ernesto de Oliveira e final também da rua Alfredo de Araújo; centro de Ubatuba, no mais tardar, chegariam no local do abate por volta de meio dia.
Até com dor no coração, Cipriano praticamente despediu do boi. - É amanhã, Ratambufe! Amanhã você vai conhecer o mar! E assim aconteceu…
Madrugada seguinte, no mirante da serra, no descanso do Tuniquinho, pela primeira vez Ratambufe vê o mar. Lá de cima da serra avistou aquela imensidão de águas azuis, confundindo até com o céu.
-Tá vendo Ratambufe? Lá é o mar, lá estão os peixes, as conchas e as sereias, é lá que mora São Pedro pescador! Falava Cipriano ao seu animal.
Ratambufe parecia entender e, completamente hipnotizado não tirava os olhos daquela imensidão de águas azuis que brilhava com os raios do sol.
-Caaaalma Ratambufe, você vai ver o mar de perto! -Caaaalma! Fez, Cipriano, mais essa ultima promessa a seu boi.
A descida da serra foi tranquila, por entre grotas e cachoeiras, sob as sombras de manacás e becuíbas, ao som de arapongas e tangarás,... coisas que Ratambufe, em seus anos de vida, nunca tinha apreciado.
O animal parecia ansioso e fazia a tropa acelerar os passos.
-Caaaalma Ratambufe, está chegando, o Mar não vai fugir! Alertava Cipriano.
...Cipriano se arrependeu, e se arrependeu muito...
-Olha, Malvina! Eu vi, eu juro que vi!
-Você está ficando doido Lindolfo! Você bebeu? Onde já se viu um boi sair de dentro do mar!
-Você sabe que eu não bebo Malvina! Eu vi! Vi com esses olhos que a terra há de comer! Eu estava tocando minha viola em baixo da amendoeira do cruzeiro, quando apareceu aquele vulto branco vindo pelo mar. Eu pensava que era um barco, mas não era. O bicho veio ao som da minha viola, veio vindo, veio vindo e ficou diante de meus olhos, no lagamá. Eu vi Malvina, eu vi! O bicho era todinho branco, todinho COBERTO COM CONCHAS, tinha uma mancha preta na testa e o rabo preto. Brilhava com a ardentia, parecia um ser encantado, vinha acompanhado por tudo que era peixe do mar, botos e cavalos-marinhos! Foi a coisa mais bonita que eu já vi em toda minha vida, Malvina! Eu vi!
-Olha Lindolfo, você bebeu ou a pimenta daquele pirão que você comeu no cerão não lhe fez bem! Onde já se viu uma história dessas, homem?! Você está ficando louco!!!
Não tinha como, fazer com que vovó Malvina acreditasse naquela historia... E vovô continuava...
-Olha Malvina! Coisa de um mês atrás, o compadre Zé Capão me veio com essa mesma história, de que viu sair do mar um boizinho coberto com conchas; não teve como eu acreditar, e ainda falei para o compadre que ele estava bêbado. Pois é Malvina, agora o bicho me apareceu! Acredite se você quiser!
-Não dá para acreditar, Lindolfo! Não dá!!!
-Puxe um pouco pela memória, Malvina! Você não lembra daquele caso que aconteceu com o Cipriano? Você lembra daquele boi branco que ele trouxe do Alto da serra, para matar no matadouro? Você não lembra o que aconteceu com aquele boi?
- Lógico que lembro Lindolfo, todo mundo lembra; o boi tomou a dianteira e foi para a praia, entrou no mar e morreu afogado!
- Foi justamente isso Malvina; ao chegar perto do mar o boi travou as pernas e ficou olhando para o horizonte do mar, de vez em quando balançava a cabeça, parecia que estava ouvindo um som, algum canto diferente; de repente o boi caminhou e entrou no mar, e o que se sabe é que o bicho nunca mais apareceu. Não se sabe se morreu ou se viveu, pois nunca acharam uma parte se quer do bicho: nem couro, nem pêlo, nem chifre! Conversei com o Cipriano, e ele me disse que vivia falando para o boi, da beleza que era o mar e de tudo que tinha no mar... Essa história de mar era papo de Cipriano... O boi sabia disso! Quando o bicho viu o mar e sentiu a maresia, ficou alucinado, deu uma loucura que o bicho desapareceu mar adentro; nunca mais apareceu. Pescadores do local falaram que foi um chamado de São Pedro, outros diziam que foi o canto das Sereias. Foi São Pedro Pescador! Foi o canto das Sereias!
Malvina agora mostrava interesse pelo fato e já fazia ligação das histórias.
-Será Lindolfo, que o boi que você viu aparecer, saindo do mar, é o boi do Cipriano que sumiu?
-Olha Malvina! Não só eu, mas também o compadre Zé Capão está achando!
-É Lindolfo! Veio-me agora uma lembrança. Eu lembro-me muito bem que, quando você, juntamente com seu irmão e demais amigos se reuniam na campina para fazerem suas serestas, nas noites de luar ou de garoa fina, os animais dos tropeiros (cavalos, bois, cabritos) que pastavam ao redor, vinham se aconchegar junto à cerca para ouvir as músicas tocadas pelos seresteiros, dando-lhes descanso e conforto.
-É Malvina, isso é fato comprovado! Eu tocava minha viola, no lagamá, debaixo da amendoeira, tô achando que ele veio pra ouvir minha viola, minha canção...
O BOI DE CONCHAS, foi uma aparição aos olhos de Zé Capão e de vovô Lindolfo. Para Zé Capão o boi aparecia quando assobiava, em suas pescarias de robalos, na boca da barra do rio Grande, e, para vovô Lindolfo, o boi aparecia toda vez que ele dedilhava sua viola aos pés da amendoeira da praia do Cruzeiro. Hoje quem toca, ou quem canta na beira da praia, pode ter a visão do BOI DE CONCHAS .
*Ratambufe: Instrumento tipicamente Ubatubano, inventado pelo caiçara Domingos Anagro, nos carnavais da década de quarenta. Instrumento meio de percussão, meio de fricção; constituído de um pau de madeira roliça, onde na parte superior prendem-se chocalhos de conchas. Amarrado ao pau, estica-se um arame que passava pela boca de uma lata pregada ao mesmo pau. O som era produzido por um reco-reco de bambu que era esfregado no arame. Esse instrumento produz um som parecendo berro de bezerro com rolar de conchas em beira de lagamá.
TEXTO DE JULIO CESAR MENDES OU JULINHO MENDES....CONTADOR DE CAUSOS CAIÇARAS... VIA FACEBOOK