Para o especialista em áreas úmidas, Antonio Carlos Diegues (Ciências Sociais)
a cultura caiçara se define como um conjunto de valores.
A cultura caiçara é definida como um conjunto de valores, visões de mundo, práticas cognitivas e símbolos compartidos, que orientam os indivíduos em suas relações com a natureza e com os outros membros da sociedade e que se expressam também em produtos materiais (tipo moradia, embarcação, instrumentos de trabalho) e não materiais (linguagem, música, dança rituais religiosos). (DIEGUES, 2004, P. 22).
A praia era o centro das relações sociais do caiçara. Com isto podemos observar que o caiçara do Sertão mantinha um elo de ligação com o caiçara de beira de Praia, onde uma completa a outra, como expressa um trecho da música de Luis Perequê
“Beira de mar, beira de rio”
“Eu nasci no meio do mato
e quando não canto assovio
porque sou passarinho de beira de rio
beira de mar, beira de rio
beira de mar, beira de rio.
No espaço do braço da vida
eu traço meu rumo
lanço-me no mundo
Enfrento os meus desafios
e sou passarinho de beira de rio
beira de mar, beira de rio
ô de beira de mar, de beira de rio.
Conheço o segredo
da correnteza do rio da vida
nem penso, atravesso
não meço o esforço da lida
o peito aberto, coração no cio
e sou passarinho de beira de rio
beira de mar, beira de rio
beira de mar, de beira de rio”.
Luís Perequê. Nascido e criado na zona rural do município de Paraty, RJ. Luís Perequê captou e traduziu como ninguém as transformações sociais ocorridas com a construção da BR 101. Suas composições retratam em poesia a vida cotidiana dos moradores da região e as perceptíveis mudanças a partir desse ponto de vista.
Os caminhos regem o destino, a identidade e a união dos caiçaras, tanto pela água ou pela terra! “As trilhas e os caminhos mantiveram durante muitas décadas os laços da sociabilidade e solidariedade inter bairros (festas, balizados, casamentos, encontro musicais) entre caiçara do litoral norte paulista”. (SETTI, 1985, P.18).
Na música de Luis Perequê podemos observar que os caiçaras moradores em bairros distantes, mantinham contato periodicamente com os próprios bairros e centro da cidade. Conheciam-se uns aos outros, portanto a solidariedade entre eles e os organizadores das festas e convidados são bem visíveis, visto que as participações de todos, mesmo dos moradores mais distantes, acabavam por reunirem-se num ato de sociabilidade e solidariedade inter bairros.
Os caiçara sempre teve uma íntima ligação com a devoção, a existência de forças sobrenaturais, onde envolvem sua crença.
Não existiam obstáculos ao caiçara. “Por trilha, picada e beira de praia, a agente sempre mantinha contato com os vizinhos de praia ou lugarejo; levando notícia, ajudando no nascimento de uma criança, fazendo um remédio para aqueles com enfermidades. E quando se tratava de festas ou organizando uma visita a nossa senhora Aparecida, ninguém media esforço para andar léguas de distâncias para pegar um caminhão de lotação e todos iam cantando e louvando a nossa senhora. Viagem dura e cansativa e ainda tinha gente que saia do sertão, de tudo que era lugar, até com criança de colo e vinha até a Cocanha para embarcar no caminhão. [-Pessoas também de Maranduba, Sertão da Quina?]. Sim muitas delas da qual já se foram!”. (Dona Benedita Alexandre Socca, 82 anos. Depoimento realizado em 26 set. 2009). Morou muito tempo na praia da Mococa, entre Cocanha (Caraguatatuba) e Maranduba e Sertão da Quina (Ubatuba), também na cidade de Caraguatatuba e muitas outras praias. Hoje mora no centro da cidade de Ubatuba.
Foto: Acervo particular de Benedita Alexandre
Caminhão que transportava os caiçaras romeiros à Aparecida, Vale do Paraíba, uma das viagens onde nessa foto a senhora dona Benedita se encontra.
Foto tirada em 1947, proximidades da igreja velha de Nossa Senhora Aparecida, centro de Aparecida, SP.
Isso nos faz lembrar que em 1947 Maranduba ainda não estava interligado com a rodovia, sendo que como exemplo citado por dona Benedita, o encontro para a viagem à Aparecida era a praia da Cocanha. Ponto este ligado com precariedade, mas com condições de tráfego de veículos à Caraguatatuba.
As festas eram lugares para onde as pessoas levavam um de seus bens: a alegria ao vestir sua melhor roupa e ao ensaiar o melhor sorriso diante do espelho; o festeiro prepara-se para dar o melhor de si num espaço que sabe que é ideal para as troca de gentilezas, olhares, conversas e, sobretudo experiências. No dizer de Antonio Carlos Diegues 2005, p.58 “O caiçara é, por natureza, religioso, deixando transparecer essa característica, nas festividades religiosas”. Os divertimentos aconteciam por conta de uma fé religiosa. A festa ganhava uma importância toda especial, pois é um fator que uni e fortalece os vínculos da comunidade, esquecendo por um tempo a vida difícil de um caiçara.
As festas constroem a identidade de cada cidadão, conforme Rosângela Dias Ressurreição (2000, p.175) que para a memória coletiva, a festa apenas brinca com os sentidos e os sentimentos. “e não existe nada de mais gratuito e urgentemente humano do que exatamente isto. Dir-se-ia que a construção de uma identidade passa por experiências comunitárias, nas quais as festas se destacam”.
Foto: Casamento no Bairro Sertão Quina, 1970: Acervo particular
As duas festas mais importantes para o caiçara são a Festa do Divino Espírito Santo e a Festa de São Pedro. Onde toda a comunidade, todos os Bairros estão em uma forte ligação de fé e alegria.
A mais tradicional e festejada era e é a Festa do Divino Espírito Santo manifestação cultural de origem portuguesa, é cultuada no país inteiro e em especial nas comunidades caiçaras. Essas celebrações acontecem cinquenta dias após a Páscoa, comemorando o dia de Pentecostes, quando o Espírito Santo desceu do céu sobre os apóstolos de Cristo. Para os caiçaras são de extrema importância a devoção, pois eles acreditam no natural e sobre natural. Meses antes da festa é a vez dos foliões, (celebração itinerante) que percorrem todo o Município e adjacências, levando a bandeira do divino em casa, e pré determinavam uma casa escolhida da comunidade, onde todos ali se reúnem para passar a noite em orações e devoções, acompanhadas com uma cantiga peculiar dos foliões. Acompanhado de muita comida e alegria. “Se o Divino ficasse oito dias aqui no bairro, oito dias ninguém ia pra roça: o tempo era todo para adorar e acompanhar o Divino. E em toda casa que as pessoas da folia pararam, a comida era farta. Quando a noite chegava, os foliões cantavam e agradeciam o jantar. As bandeiras eram então recolhidas para o quarto do casal, e na sala todo mundo emendava a dançar o chiba. Quando o Divino ia embora, sofríamos com o distanciamento do Espírito Santo, que tinha deixado uma mensagem tão boa para todos os moradores”. Benedita de Oliveira Santos, 74 anos. Depoimento contido no livro: Os Caiçaras Contam (ROVAI & FRENETTE, 2000, P. 35).
Festa de São Pedro é outra festa de extrema importância aos caiçaras, por relacionarem o santo São Pedro o pescador (o padroeiro dos pescadores), ligação direta ás suas esperanças na farta pescaria e segurança nas águas. Comemorado no Município de Ubatuba no dia 29 de Junho. Reúnem toda a comunidade caiçara e principalmente aqueles envolvidos com o pescado. Com procissões de barcos e canoas, missa ao ar livre, competições de corrida de canoas e os festejos com músicas, barracas típicas com comida a base de peixe (tainha assada, pirão com banana verde, azul marinho etc.).
Receita: Azul Marinho. “Peixe cozido com banana nanica verde. Descasca-se a banana verde (em água corrente para não pretejar) e reserve. Em uma panela coloca-se a cebola, os cheiros verdes (salsa, coentro, alfavaca, etc.), adiciona-se a banana reservada e deixa-a cozinhar até que ela fique quase mole. Depois adiciona-se o peixe (aumentando a quantidade de água caso tenha pouco caldo) tampa-se e deixa-se cozinhar até que o peixe esteja cozido.
Complemento: Do caldo desse preparo faz-se o delicioso “pirão” que é preparado da seguinte forma: Derrama-se o caldo fervente em uma vasilha onde já se tenha posto uma certa quantidade de farinha de mandioca. Mexe-se e acrescenta-se algumas bananas cozidas amassando-as e formando com a farinha e o caldo uma massa uniforme”. Tibinha, caiçara nata do Sertão da Quina, receita de seus avós caiçaras. Depoimento no dia 07 out. 2009.
Danças: a principal dança dos caiçaras em todas as festas era chiba (uma versão caiçara do fandango e influência clara das danças indígenas guaranis, da região), uma dança sapateada em que os pares dançam separados. É animada apenas por uma viola ou violão, machete (uma espécie de cavaquinho mais rústico), pandeiro e rabeca. Traje comum, os homens usam tamancos. Cantado, tocado e dançado em grupo. Os pares são formados por homens e mulheres, que se colocam frente a frente se olhando, uns ao lado dos outros. Além do bater de pés, há também o movimento de arrastá-los, ao compasso da música executada. O ritmo da toada é binário e marcado com palmas dos figurantes. O ponto alto, mais sugestivo e mais impressionante da dança é representado pelo sapateado. O matraquear das dezenas de tamancos ferindo o solo produz ruídos ensurdecedores e atordoantes. As mulheres não sapateiam (não usam tamancos). Bailam em passos curtos e cadenciados por entre os dançadores.
Assim descrevem com detalhes a dança: “A gente fazia o chiba em casa de assoalho. Era aquele bate-pé, e o barulho da dança rufava pelo mundo afora” Silvaro Rita da Conceição, 78 anos. “O tamanco para dançar o chiba era feito de madeiras fortes, porque dá o estalo e não estoura. Pau de laranjeira, de limão, sucuduim e pequiá (…) Muito chiba era dançado em casa de assoalho; mas tinha de chão batido também, mas estalava também porque era chão seco, o próprio tamanco puxava o chão. Era tudo batido de acordo com o batido das violas”. Orlando Antonio de Oliveira, 77 anos. Depoimentos contidos no livro: Os Caiçaras Contam (ROVAI & FRENETTE, 2000, P. 36).
A ciranda era outra dança muito comum entres os caiçaras, assim como a dança de roda.