quinta-feira, 13 de agosto de 2020

ARCIDÃO, O PINGUIM.....

 


 Há coisa de quarenta anos era comum, no cotidiano caiçara, aproveitar ao máximo a natureza que nos rodeava e a convivência com as pessoas. Todos se conheciam, queriam ficar  juntos sempre. Nos finais das tardes, já nos serões, nas praias, os jovens jogavam futebol ou peteca. Aproveitavam a calmaria, paqueravam, partilhavam histórias. Os mais velhos, na linha do jundu, pelos ranchos de canoas, proseavam sobre o cotidiano antes de se dirigirem para o jantar. Outros chegavam de armar tresmalhos e puxavam as embarcações às áreas protegidas. Poucos passeavam na linha do lagamar: se molhavam até as canelas, um relaxamento ainda seguido à risca por alguns caiçaras e que vem de outros tempos.
                A minha prima Neide era uma dessas pessoas que praticava esse relaxamento. Nunca a vi falhar um serão, mesmo que chovesse. Andava olhando perto e longe; enxergava a linha do horizonte, todas as cores, mas também via cada concha, os buracos dos bichos da praia e os seres que eram novidades. Até um pinguim adotou.
                A simpática ave, trazida por alguma corrente do sul, recebeu o nome de “Arcidão”. Foi uma homenagem ao soldado do mesmo nome que, por alguns anos, sentou praça em Ubatuba . Muitos anos mais tarde, por intermédio do saudoso Ney Martins, eu soube que esse valoroso homem, após a aposentadoria, tornara-se mestre de congada em Jacarei, a sua terra natal. Já a ave se apegou tanto à Neide que, até o quarto era compartilhado: dormia num aconchegante tapete embaixo da cama. Durante o dia, aonde ia a moça, pra lá se dirigia andando de forma muito engraçada o “Arcidão”. Nunca se separavam, exceto quando a Neide precisou ficar fora um mês por conta do curso de enfermagem. A ave entrou em tristeza profunda, não se alimentava mais. A solução foi embarcar numa canoa e soltá-lo bem longe, pois ninguém aguentava vê-lo sofrer. Eu nunca tinha visto sentimento tão forte entre um animal e a comunidade da praia da Fortaleza. Duro foi sofrer depois com o sofrimento da Neide.

SAUDADE SERVE PARA........

 


                Como os causos que contou,
                Era todo paladar
                Como o pirão que provou,
                Era todo caiçara
                Como o povo que amou,
                Era todo coração

                Em 7/12/2007, quando o dia amanhecia, João de Souza, “o caiçara do pé rachado” nos deixou. É a ele que a poesia do Domingos faz referência.
                Foi um duro golpe, sobretudo pela nossa amizade, pelos causos contagiantes e pelo ser caiçara que ele era. Infelizmente muitos sequer têm noção de quem ele era, onde morou... Imagine então conhecer os seus causos - os que ele teve oportunidade de escrever!
                Desconfio que o causo de hoje ele não escreveu. Dele eu escutei quando fazia um serviço de pedreiro no Camping do Velho Rita. Os personagens são: Sebastião Rita, o pai do nosso saudoso João, e, João de Paula, o caiçara hippie. Eram primos. Os dois estiveram trabalhando na construção de um muro, mas o serviço se arrastava porque era hábito dos dois as escapulidas para “uma bicadinha” no Bar do Barriquinha, na beira do campo de futebol  do Itaguá.
                Num dia bem cedo os dois prepararam uma grande quantidade de concreto para enchimento das colunas. Misturaram tudo. Antes das oito horas da manhã a massa já estava no ponto. Ao perceberem que estavam adiantados, resolveram “molhar a goela” na “fruteira do bairro”. Em pé, afundada na massa, deixaram a enxada para mostrar que logo estariam de volta. Porém, isso não aconteceu.
                De gole em gole, acompanhado de torresmo frito, passaram toda a manhã e viraram a tarde. Depois foram tirar uma soneca no rancho de canoa do velho Tibúrcio Mesquita. Anoiteceu. Já passava a Voz do Brasil quando Sebastião Rita chegou em casa. Todos estavam preocupados! Na mesma noite o tempo desabou: se seguiram quatro dias de chuva forte. Ninguém colocava nem o nariz para fora de casa. O terreiro era um lago porque o rio Acarau transbordou. Só depois de cinco dias, quando o tempo deu um recarmão, pareceu se firmar no sol, é que viram o monumento: do monte de concreto totalmente endurecido saía o cabo da enxada. Resultado: perdeu-se tudo, inclusive a ferramenta. Por fim, completou o João de Souza:
                “Acho que foi desse jeito que surgiu a história da espada na pedra, lá na Inglaterra! Só que aqui não teve nenhum Arthur forçudo. Sobrou para o Chico Preto malhar com marreta e ponteiro um dia inteiro!”.