sábado, 6 de janeiro de 2024

TIÃO GIRÓ

 

    Quando criança, morando na praia do Perequê-mirim, vez ou outra eu escutava o meu pai falando do Tião Giró. Pescavam juntos de vez em quando, conviviam por ali, na vizinha praia da Enseada. Devem ter compartilhado muitos causos, mas a grande admiração de papai era pelo domínio da técnica da pescaria de cerco que o amigo detinha. Mais tarde conheci a filha e o filho do Tião Giró; pude encontrá-lo vez ou outra em minhas andanças. Ainda adolescente tive o prazer de conviver com uns parentes deles (Sidney e Sônia Giraud); fiquei sabendo que gente com esse sobrenome era descendente de franceses que migraram para Ubatuba no século XIX. Com Elder, o filho, meu companheiro de trabalho, fui conhecer o seu lugar de moradia, bem defronte da capela Santa Rita. “Ah! Querida Enseada! Ah! Querida capela onde eu e meu pai fizemos o forro há décadas!”.  Respirei aquele entorno, me recordei de outros momentos vividos por ali, sobretudo das canoas abarrotadas de pescados e dos rostos de tantas pessoas que conviveram conosco. Ontem, proseando com a Cristina Graça, ela deu notícias da tia (Zenaide) e do pai (Eduardinho): “Papai está com 92 anos. A tia Zenaide com 90. Certamente são os mais idosos do nosso  lugar”. Novamente pensei no Tião Giró, no nosso pessoal da Enseada.





      Tião Giró, nascido Sebastião Giraud Filho, em 1943, era filho de pescadores. O pai dele já trabalhava com a técnica dos cercos flutuantes trazida pelos japoneses por volta de 1920. Foi observando, trabalhando com o pai, que ele se tornou um especialista em cercos flutuantes. Aos 25 anos ele já era um mestre. Eu recomendo o texto OS ÚLTIMOS MESTRES REDEIROS DA ARTE DE PESCA DE CERCOS FLUTUANTES, dos pesquisadores Roberto William Von Seckendorff, Venâncio Guedes de Azevedo e Josef Karyj Martins.

    Fazer um cerco flutuante eficiente, garantir uma pescaria perfeita, não é fácil. Foram décadas de vivência que se encerraram agora, há três dias. “O pai do Hélder está muito mal, Zé”. Quem deu a notícia foi o meu  primo Zé Roberto. No dia seguinte havia falecido esse último mestre da técnica de pesca de cerco porque ninguém se importou em aprender com ele. Assim, aquele modelo assimilado dos migrantes nipônicos, onde era possível escolher os peixes maiores e soltar os menores para que crescessem tende a desaparecer, assim como desaparecerão os enfrentamentos no mar dos caiçaras de outros tempos. Também vai depender de nós a memória de Tião Giró, Acácio, Zeca Paru, João Quintino, Dito da Mata, Elídio, Dito Funhanhado, João Vitório e muito mais gente que fundeavam cercos e tresmalhos  pelas nossas costeiras, sobretudo no entorno da Ilha Anchieta.





   Ao receber a triste notícia, citei para o Zé Roberto aquela frase do pensador africano Hampaté Bah, do Mali: “Quando morre um africano idoso, é como que se queimasse uma biblioteca”. Isto vale para todos os povos, para todas as culturas, inclusive à cultura caiçara. Agora, mais um esteio dessa nossa cultura nos deixou. Aquela gente fotografada bem criança, na década de 1940, está se despedindo de nós. Quem registrou, quem deixará para a história um pouco dessas “bibliotecas” que seguem nos deixando?

   Que cada um de nós, cada ser caiçara do presente, possa se apropriar dessas memórias que nos trouxeram até aqui. Muita força aos filhos, parentes e amigos que conviveram com ele. Gratidão ao Tião Giró pelo exemplo de vida!


Em tempo: O menino da foto é o Otacílio, irmão do Tião Giró. Gratidão ao Peter pela observação.


FONTE  >    Blog    coisasdecaicara.blogspot.com

Por José Ronaldo

QUANDO A GENTE SE ENCONTRA

 

Na minha família, quando a gente se encontra, a prosa varia, mas sempre tem muitas risadas. Ontem, o almoço de Natal com a irmandade e familiares me fez recordar de tantos momentos ao longo desses anos desde a infância, quando os motivos eram diversos (raspar mandioca, juntar peixes na rede, prosear no jundu, escutar histórias, fazer cantoria nas casas etc.). Sentimos as ausências do Jairo e do Guinho (Wagner) por motivos particulares. Senti uma grande alegria pela sobrinhada que há tempos não via. Pena  que Estevan e Pedrinho não estavam. Também pensei na Mônica.

     Muitas mudanças são notórias ao longo da existência da nossa irmandade, sobretudo devido às ocupações dos espaços por turistas e migrantes pobres que para cá acorreram em busca de melhores condições de sobrevivência e de lazer, resultando em diminuição das áreas de cultivo  e em extinção das áreas, nas praias, destinadas aos ranchos das canoas e demais apetrechos de pesca. A juventude também perdeu muito! Sumiram os campos de futebol. Desapareceram os sombreados nos jundus onde ocorriam alegres encontros; muitos namoros tinham ali seu ponto de partida. Tudo isso me veio à mente lendo agora umas anotações deixadas pelo Olympio Corrêa. Eis o que está detalhado da metade da década de 1970:

 

        Entre os caiçaras, a mandioca é cultivada em larga escala e dedicada quase que exclusivamente ao beneficiamento, isto é, a ser transformada na sua respectiva farinha. Mesmo na praia, onde a pesca é uma atividade importante e as roças estão em decadência, sua população ainda fabrica a farinha para o gasto e, às vezes, para a venda. Todavia, é no sertão que esse beneficiamento constitui a principal fonte de renda. Os produtos derivados da mandioca são, além da farinha, a goma, a tapioca, o biju e o polvilho.

     Na alimentação caiçara, seja do sertão, das praias ou dos emigrados para a cidade, a farinha de mandioca constitui a metade dos demais  comestíveis. É comumente misturado ao feijão, ou misturado ao café. Quando juntada à banana amassada, torna-se paçoca, quando torrada com toucinho ou carne é farofa e, ainda, como pirão, quando cozida na água quente ou no caldo de peixe. As próprias criações, inclusive cães e gatos, têm na farinha seu principal sustento.

      A operação do beneficiamento da mandioca dura de um dia e meio a dois dias. A programação da quantidade da farinha de  mandioca a ser fabricada é feita no dia anterior ao forneamento. Conforme o número de membros da família, sua capacidade de trabalho e suas necessidades, o chefe da casa planeja de dois a três tipitis de massa, que renderão de dois a três alqueires de farinha.


  Nesta última parte até parece que o autor se referia ao vovô Zé Armiro, da praia da Fortaleza. Saiba que cada alqueire - medida antiga! - equivale a aproximadamente 25 litros ou 20 quilos. Metade dessa produção ficava para ser consumida por nós e a outra seguia para ser negociada no centro da cidade ou em qualquer mercado maior de alguma praia.