(do livro "Aconteceu no Velho São Paulo, de Raimundo de Menezes, Coleção Saraiva, 1954)
Bem ásperos foram os primeiros tempos de São Paulo de Piratininga. Os Jesuítas sofreram os maiores sobressaltos. Viviam a todo momento receosos de mais um ataque dos índios. As notícias eram alarmantíssimas. Somente a fé e o ideal da catequese ainda os animava. Do contrário... Isto por aqui era de amargar! Uma vez (estávamos a 10 de julho de 1562), o povoado amanheceu em pé de guerra. Logo de madrugada, gritos lancinantes encheram os céus, ecoando, de quebrada em quebrada. Não houve quem não estremecesse de susto. Todos previram o que iria acontecer. Era mais um assalto dos temíveis tamoios, desta vez comandados por Jagoanharo, o valoroso chefe guerreiro. Entraram de surpresa, atacando antes do nascer do sol, numa investida brutal e violenta, colhendo portugueses e mamelucos, quando, despreocupadamente, dormiam. E foi uma carnificina medonha. O troar das inúbias [trombetas] de guerra tornava mais alucinante o ambiente da luta. Os tacapes vibravam tumultuosamente, derrubando gente a torto e a direito. As flechas navalhavam os ares, e um ulular febril brotava do choque terrível.
Os jesuítas, assim que se viram assediados, cercados por todos os lados, quase entregues à sanha dos silvícolas irados, trataram de pedir socorro ao seu amigo, o cacique Tibiriçá, ali pertinho, morando com sua gente, numa choupana humilde, exatamente onde hoje fica o largo de São Bento. Tibiriçá veio correndo com seus guerreiros. A escaramuça foi das que não se descreve. Colheu-os quando tentavam forçar a porta da igrejinha, onde estavam homiziadas as mulheres. (...) O primeiro que caiu, mortalmente ferido, foi o próprio Jagoanharo. E aquilo foi água na fervura. Os outros índios, vendo o chefe agonizando, desandaram a fugir. E a debandada generalizou-se. Não ficou nenhum para contar a história... Apenas os prisioneiros, e os prisioneiros eram numerosos. Quanto a estes, Tibiriçá, selvagem como os vencidos, embora já domesticado, portou-se como manda a lei da selva: julgou-os sumariamente. Trucidou-os, um por um. Aquilo não podia agradar, como não agradou. Do embate tremendo entre tamoios e guerreiros de Piratininga, naquele famoso dia 10 de julho, além da morte de Jagoanharo, resultaram ferimentos graves no chefe Tibiriçá. A notícia da derrota dos invasores correu mundo. Correu de taba em taba.
Confederação dos Tamoios
O que, porém, mais irritou os vencidos, foi o trucidamento sumário dos prisioneiros. Aquilo os tornou mais rancorosos ainda. Juraram vingança. Seria uma vingança que passaria para a história. Insuflados pelos franceses no Rio de Janeiro, que chegaram até a armá-los, os indíginas trataram de reunir-se numa confederação, que ficou conhecida como a Confederação dos Tamoios. Chefiavam-nos os velhos maiorais da tribo: Coaquira e Pindobuçu, valentes como nenhum outro, auxiliados por Aimbiré e Cunhambebe. Veio índio de todos os lados, de toda a parte. O intuito era um só: arrasar não só São Paulo de Piratininga, como também São Vicente e Santos. Não deixar pedra sobre pedra.
Conseguiram arregimentar mais de cem mil homens, muito bem armados, armados até os dentes, dispostos a tudo, ao que desse e viesse. Seria uma guerra de que se falaria para todo o sempre... E começaram as escaramuças, aqui e ali. Numa delas, o ferocíssimo Aimbiré caiu prisioneiro nas mãos dos lusitanos. Como era perigosíssimo, qual novo Sansão, acorrentaram-no fortemente e atiraram-no no porão de uma sumaca [barco de duas velas]. Pois bem, enrodilhado nos ferros, enroscado solidamente, ainda assim, rebentando as cadeias, logrou desvencilhar-se em meio da viagem e jogar-se ao mar. Na fuga espetacular, saiu nadando como um doido. E, nadando como um doido, foi ter à praia e percorreu taba por taba, núcleo por núcleo, espalhando a revolta, pregando a rebelião, disseminando a insurreição.
Tão bravio quando Aimbiré era seu companheiro Cunhambebe. Em Cunhambebe, o ódio pelos portugueses ainda era bem maior. Um ódio de morte! (...) Se aqueles cem mil indíginas ferocíssimos, com sede de vingança, doidos por uma vindita, alcançassem contra o indefeso povoado de São Paulo de Piratininga, não sobraria coisa alguma... E era preciso evitar aquilo, custasse o que custasse. Foi quando os padres Manoel da Nóbrega e José de Anchieta, assustados e impressionados com o rumo que iam seguindo as coisas, tomaram uma deliberação muito séria, que iria resultar num dos mais significativos serviços prestados ao Brasil. Resolveram intervir. Mas, intervir, como? Apaziguar os ânimos. Entrar em entendimentos com os chefes das tribos. Era, todavia, perigosíssima a missão. Iriam arriscar a vida, expor-se a mil ameaças. Mas aqueles padres tinham a fibra de heróis.
A viagem à toca da fera
Nóbrega e Anchieta partiram de São Vicente, numa manhã histórica, a 18 de abril de 1563. Não houve quem não arreceasse do destino dos dois audazes jesuítas. Foi um espanto geral. Aquela conversa com o morubixabas tamoios não daria grande resultado, era o que todos pensavam. Propôs-se a conduzí-los, num dos barcos, o fidalgo aventureiro Francisco Adorno, natural de Gênova, e que aqui, em terras brasileiras, ficara rico da noite para o dia, à custa do tráfico de índios. Uma das maiores fortunas da época. Viajaram durante vários dias. Passaram por Bertioga, pela ilha de São Sebastião e, a 5 de maio de 1563, aportaram a Iperoig [Ubatuba]. Ali estava localizada a aldeia do chefe Coaquira. A princípio, foram recebidos agressivamente. Várias canoas, cheias de índios, armados de arco e flechas, cercaram-nos. Queriam liquidá-los. A situação era das mais graves, das que não se descrevem.
Foi quando Anchieta, com aquela calma que o caracterizava, começou a falar-lhes na sua língua. Falou-lhes longamente. Uma fala suave, doce, piedosa... Dirigiu-se, de preferência, aos maiorais Coaquira e Pindobuçu. Eles ouviram religiosamente. Começou a desanuviar-se o ambiente, como por encanto. Era mais um milagre do abaré, cuja fama correra mundo. Dali a pouco, Coaquira e Pindobuçu trocavam com Anchieta e Nóbrega o cachimbo da paz. Quase a metade da missão estava cumprida. Faltava convencer os demais chefes. Partiram, imediatamente, emissários, a fim de convidá-los para uma reunião. Aquilo durou dias, dias longos, que pareciam não terminar nunca mais. Todas as manhãs, os padres diziam missa num altar improvisado na praia, pregavam aos silvícolas, cativavam-lhes a confiança. E um mês já tinha rolado. E nada.
A mão que estanca o tacape
Um dia, porém, aconteceu um fato desconcertante, que veio quebrar a monotonia daquela pasmaceira. Quando menos se esperava, eis que apareceu, na fímbria do horizonte, uma canoa. E dentro da canoa, veio vindo, fogoso, o jovem Paranaguaçu, filho de Pindobuçu, que andava ausente, sem saber de nada. Paranaguaçu era um guapo rapaz, bonito, vistoso, forte como um touro, temido de todos pelas suas estroinices. Tinha um ódio de morte dos portugueses e dos padres. Toda aldeia se movimentou para recebê-los. Ele, de longe, avistou os jesuítas na praia, e ficou enfezado. Armou o seu arco e a primeira flecha cortou os espaços, vindo sibilar aos pés de Nóbrega, sem atingi-lo. Logo, outra zumbiu no ar, vindo morrer bem pertinho de Anchieta. Os tamoios gritavam atemorizados: fujam, abarés, fujam, depressa!
Mas os padres mantinham-se firmes, sem nada recear. Em dado momento, porém, Paranaguaçu avançou, resoluto, na direção deles, empunhando a clava, ameaçadoramente. Os dois jesuítas não tiveram outro jeito senão sair em disparada, praia afora, tropeçando aqui, caindo acolá, equilibrando-se como podiam, numa corrida incrível. Careciam atingir, o quanto antes, a cabana do velho chefe Pindobuçu, que ficava atrás do alto do monte. Faltava, ainda, um bom trecho. Atravessaram, com açodo, o riacho. Ficaram totalmente molhados. Galgaram vertiginosamente o morro, ouriçado de matos espinhosos e, finalmente, refugiaram-se sob a proteção da casa do pai do brutal guerreiro. Pindobuçu andava fora, porém. Logo mais, chegava no seu encalço o temível perseguidor. Encontrou os padres ajoelhados, rezando. Alçou o tacape e, quando ia vibrá-lo, eis que Anchieta ergueu seus olhos, azuis como o mar. Era uma súplica terna e suave... Foi quanto bastou. A mão de Paranaguaçu caiu e a fúria do índio murchou. Depois, ele contava o que acontecera:
- "Eu vinha a fazer isto e aquilo, mas quando entrei a ver os padres e lhes falei, caiu-me o coração e fiquei todo mudado e fraco; eu não os matei, que vinha tão furioso, já nenhum os há de matar, ainda que todos os que vierem, hão de vir com o mesmo propósito e vontade." Era mais um milagre de Anchieta. Vencera pela bondade.
Nasce um poema
Nóbrega percebeu que as pazes com os índios dependiam de mais algumas demarches. Necessitava dar um pulo até São Vicente, a fim de acertar alguns pormenores. Os belicosos selvagens concordaram. Concordaram, porém, com uma condição. Precisavam que alguém ficasse como garantia. Foi quando Anchieta se propôs a permanecer como refém. Iria enfrentar não pequenos riscos, sozinho, no meio daquela indiada desenfreada, na solidão da selva inóspita. Mas não se intimidou. Contava com o auxílio da Virgem. Ela lhe daria forças. E ficou. E começou a luta. Uma luta diferente, tremenda. A luta da carne. Ele mesmo nos conta:
- "Tem grande honra [os índios], quando vão alguns cristãos a suas casas, dar-lhes suas filhas e irmãs para que fiquem por seus genros e cunhados. Quiseram-nos fazer a mesma honra, oferecendo-nos suas filhas e repetindo-o muitas vezes. Mas como lhes déssemos a entender que não somente aquilo que era ofensa a Deus, aborrecia-nos, mas ainda que nem éramos casados, nem tínhamos mulheres, ficaram espantados, assim eles como elas, como éramos tão sofridos e continentes, e tinham-nos maior crédito e reverência." E mostrava-lhes os cilícios [cintos com pregos, para auto-tortura] com que se torturava e falava-lhes nos jejuns a que se entregava.
Enquanto isso, corria em Piratininga a notícia de que os índios haviam devorado os dois corajosos jesuítas. Os trabalhos do armistício, entretanto, prosseguiam lentamente, discutidos por Nóbrega com os maiorais dos Tamoios. E Anchieta, para encher o tempo e fugir às tentações, lembrou-se de compor, como um voto à Virgem, um poema em seu louvor. Mas como escrevê-lo? Não tinha nem papel nem pena. Recorreu ao seu bordão. E passou a rascunhá-lo na areia das praias, todas as manhãs. À noite, repetia, de cor, os versos, para gravá-los melhor, limava-os, corrigia-os, estilizava-os.
"Foi depoimento comum dos índios - informa-nos Simão de Vasconcelos [contemporâneo e biógrafo de Anchieta] - que viram, por vezes, nesta praia, uma avezinha graciosamente pintada, a qual, com um brando vôo, andava como fazendo festa, enquanto José ia compondo e escrevendo, e lhe saltava, brincando, ora nos ombros, ora na cabeça, ou para mostrar a José o cuidado que o céu tinha deles, ou para mostrar aos índios o como haviam de respeitá-lo. E assim compôs ele, de memória, cada dia um pouco, o poema imortal "De Beata Virgine Dei Matre Maria", o tão decantado "Poema da Virgem", constituído em 4.172 versos, que perfazem o total de 2.086 dísticos [frases].
Finalmente, só em setembro, Anchieta lograva ser posto em liberdade. O armistício fora assentado. Concordaram os portugueses com as propostas dos índios, graças aos esforços dos dois valentes jesuítas. E voltou a reinar a paz nas terras de Piratininga. Anchieta, no verdor dos seus 29 anos, retornava ao Colégio de São Paulo, após quantos dissabores. Seu embarque foi um triunfo. Os tamoios choravam com saudade do bom padre-mestre. Vencera-os pela fé e pela bondade. É que a fé e a bondade removem montanhas... Tinham, assim, os dois padres, realizado uma das maiores obras em favor da São Paulo que nascia...