Na beira da estrada (Arquivo JRS) |
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Por José Carlos Ruy – de São Paulo
Ao episódio do início da história brasileira, a grande guerra indígena contra a escravização pelo colonizador, foi atribuído pela historiografia um nome que talvez não seja adequado: Confederação dos Tamoio. Primeiro porque a palavra confederação traz ressonâncias políticas que correspondem à realidade europeia, de união entre entidades políticas da experiência dos países ocidentais, não existentes entre os indígenas brasileiros. Depois porque a palavra tamoio (em tupi tamyîa, ou tamuîa) não é o nome de um povo: significa “avô”, “antepassado”, podendo também indicar o mais velho da terra, o que chegou primeiro.
O escritor Aylton Quintiliano, que foi repórter, na década de 1950, no jornal “Imprensa Popular”, publicado pelo PCB, usou, como título de seu grande estudo sobre aquele episódio inaugural de nossa história, o nome mais correto de A Guerra dos Tamoios, que foi publicado em 1965 no contexto dos 400 anos de fundação da cidade do Rio de Janeiro.
É uma história que se refere à luta pela liberdade, contra a escravização.
Em meados do século XVI a vida na colônia passava por uma profunda mudança. Até então o colonizador português não se estabelecera de forma permanente na terra e praticava o escambo com a população originária. Trocavam machados de ferro, facas e outros instrumentos de metal, espelhos, anzóis e objetos semelhantes, por víveres (frutas, legumes) e principalmente por toras de ibirapitanga (pau-brasil), que era abundante na terra, e muito consumida na Europa como insumo na indústria têxtil. Os indígenas colhiam as toras na mata e as transportavam até os navios europeus.
Essa realidade começou a mudar por volta de 1530. O rei de Portugal dividiu o território em capitanias hereditárias, atribuídas a donos de dinheiro capazes de explorar de maneira autônoma o território. Começou então a montagem da economia latifundiária e escravista (inicialmente para a produção de açúcar) na Colônia, com base no trabalho escravo. Nova realidade que levou a revoltas indígenas em toda a Colônia.
Os portugueses eram poucos e, para conseguirem contingentes capazes, de defender a Colônia, haviam, nas décadas anteriores, estabelecido alianças com algumas nações indígenas. Como ocorreu em São Vicente, onde João Ramalho, que se tornou parceiro do governador Brás Cubas, havia se casado com uma filha da tribo dos Tupiniquim, e conseguiu muitos aliados. João Ramalho, com seu sogro Tibiriça, teve grande atuação no planalto de Piratininga (fundou a vila de Santo André da Borda do Campo, em 1553, e apoiou os jesuítas na fundação de São Paulo, em 1554), logo se tornou um grande caçador de escravos entre indígenas adversários. Atividade em que se juntou a Brás Cubas, outro grande caçador de escravos – de tal forma que a vila de Santos, fundada por ele em 1546, logo ganhou o apelido de “porto dos Escravos”, tamanho era o número dos cativos ali negociados.
João Ramalho e Brás Cubas atacaram uma aldeia Tupinambá, aprisionando várias pessoas, inclusive o líder da aldeia, Cairuçú, que morreu em cativeiro nas terras de Brás Cubas.
O escritor Aylton Quintiliano diz que, no funeral de Cairuçú, muitos cativos puderam fugir, inclusive seu filho Aimberê, que se tornou um dos chefes da guerra contra os escravizadores. Ele liderou a revolta e fuga do cativeiro, indo para terras da capitania do Rio de Janeiro, onde se entrincheirou em Uruçumirim (hoje Outeiro da Glória). Conseguiu juntar outras tribos e aliar-se a seus chefes, Pindobuçú, de Iperoig (atual Ubatuba); Koaquira, de Uyba-tyba (Ubatuba); Cunhambebe (pai), de Ariró (Angra dos Reis); e o povo Guayxará, de Taquarassu-tyba. Uniu gente das nações, Goitacá e Aimoré, e também outras no Vale do Paraíba, numa grande extensão do litoral, indo das atuais Iguape (SP) a Cabo Frio (RJ), entre 1554 e 1567.
De um lado, Tupinambá, ou Tamoio; do outro, Tupiniquim. Os primeiros aliados aos franceses de Villegaignon, calvinistas e portanto anticatólicos, que em 1555 tentou estabelecer na baia da Guanabara sua França Antártica, e que mantinha o escambo com os indígenas nas mesmas condições anteriormente praticadas pelos portugueses. Assim, os Tamoio aliaram-se a ele e chegaram mesmo a fornecer, como escravos, prisioneiros que se recusavam a aderir à sua guerra contra os portugueses. Até que, um dia, a brutalidade francesa levou-os a suspender essa ação. Villegagnon mandou despedaçar, na bôca de um canhão, prisioneiros que se recusavam a trabalhar. Desde então, diz Quintiliano, os Tamoio não entregaram mais seus prisioneiros aos franceses.
Do outro lado, os Tupiniquim, aliados aos portugueses, que se tornavam cada vez mais em caçadores de índios para a escravização.
Um episódio muito referido na guerra dos Tamoio é a famosa paz de Iperoig (hoje Ubatuba), de 1563, uma trégua que não durou muito, envolveu os jesuítas e é reveladora dos reais motivos da guerra. O episódio envolveu os padres Manoel da Nóbrega (como negociador) e José de Anchieta (como intérprete). Na trégua negociada os portugueses foram obrigados a libertar todos os indígenas que haviam escravizado.
Num certo momento, em que Nóbrega levou alguns chefes para negociar com os portugueses, Anchieta ficou de refém entre os tamoio, como garantia da vida e liberdade dos emissários. Diz-se que, nessa ocasião, Anchieta teria composto, escrevendo na areia da praia, seu célebre poema em latim, em homenagem à Virgem Maria, chamado “Poema da Virgem”.
A trégua não durou muito. Sentindo-se fortalecidos, os portugueses romperam o acordo e atacaram aldeias indígenas, matando e escravizando os sobreviventes. Os Tamoio se retiraram então para a baía de Guanabara onde, em 1567, chegaram reforços para o capitão mor Estácio de Sá (sobrinho do governador geral Mem de Sá), que havia fundado no local, em 1565, a cidade do Rio de Janeiro. Foi a etapa final da guerra. Os franceses foram expulsos; Aimberê morreu em combate (em Cabo Frio), e os tamoio e seus aliados foram obrigados a se refugiar em outros lugares distantes da baia da Guanabara.
Muitos estudiosos tentam ver, na guerra dos Tamoio, uma manifestação nativista em defesa da terra. São conclusões frágeis – o Brasil ainda não existia, estava nascendo; e os tupinambá, que viviam na etapa do comunismo primitivo, não tinham ainda a noção de propriedade da terra, que era um bem comum, podendo ser usada por todos.
Mas entre eles era muito forte a noção de liberdade, e não aceitavam ser escravizados, e lutaram contra os scravizadores com as armas que tinham e da maneira que podiam. Nesse sentido, a guerra dos tamoio foi contra a escravização, pela liberdade.
Referências
Cunha, Manuela Carneiro da (org.). História dos
índios no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 2012.
Marchant, Alexander. Do escambo à escravidão – as relações econômicas de portugueses e índios na colonização do Brasil, 1500-1580. São Paulo, Cia Editora Nacional. 1980.
Monteiro, John. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo, Cia das Letras,1994.
Perrone-Moisés, Beatriz. e Sztutman, Renato. Notícias de uma certa confederação Tamoio. Mana, vol.16, nº 2, Rio de Janeiro, 2010. In : http://www.scielo.br/pdf/mana/v16n2/07.pdf, consultado em 05/09/2020.
Quintiliano, Aylton, A Guerra dos Tamoios. Rio de Janeiro, Reper Editora 1965
José Carlos Ruy, jornalista e historiador, é autor de Biografia da Nação – História e Luta de Classes.
As opiniões aqui expostas não representam necessariamente a opinião do Correio do Brasil
O respeitado mestre de capoeira Rogério - carinhosamente conhecido por Léco - morador da Praia do Perequê Açú, garante ter visto no último dia 5 de setembro um Boi todo coberto de conchas vindo das bandas da Barra Seca. Ele e outros colegas da ginga popular brasileira, presenciaram a aparição do nosso querido Boizinho Encantado, vindo enlevado pelo som das tradicionais cantigas da puxada de rede.
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No contexto dessa discussão, Fernandes (1989 [1948]) ilumina uma instituição política básica, descrita sobretudo por Jean de Léry: o Conselho dos Anciãos, baseado no princípio da gerontocracia. Homens mais velhos, maduros, pertencentes à categoria tujuaé,12 homens que já tinham matado alguns inimigos e que já possuíam filhos casados, reuniam-se no Conselho e tentavam estender sua influência por meio da oratória e da exibição dos feitos guerreiros. Fernandes (1970 [1952]) focaliza a figura dos morubixabas, chefes de guerra,13 selecionados entre esses tujuaé por um processo de "peneiramento": aquele que possuísse maior prestígio por ter matado mais inimigos - e obtido, por conseguinte, mais nomes e incisões no corpo - seria escolhido como chefe de casa ou de aldeia. As confederações tupi, como a Tamoio, seriam compreendidas por Fernandes como uma espécie de cristalização das alianças formadoras dos grandes bandos guerreiros, compostos por homens adultos de diferentes grupos locais ligados por obrigações recíprocas entre cognatos e afins. Ou seja, elas existiriam apenas em contextos bélicos; no caso, o de guerra permanente com os portugueses.
Quando Florestan Fernandes trata de responder por que, afinal, os Tamoio perderam a guerra, deságua num paradoxo. Para ele, como já salientado, os Tupi da costa eram capazes de se organizar politicamente, de coordenar suas diferenças. Por outro lado, ele constata que tais formas de organização não conseguiam perdurar, revelando de súbito sua própria inviabilidade. As alianças logo seriam desfeitas e, a despeito de proximidades culturais e linguísticas, critério suficiente, segundo ele, para se criar uma nação, não se alcançaria a construção de uma unidade propriamente dita. Aí residiria para ele a causa da derrota dos Tamoio, bem como a inexorabilidade de seu extermínio.
[A] importância histórica da [guerra dos Tamoios] provém de comprovar que as populações indígenas tinham capacidade de opor resistência organizada aos intuitos conquistadores dos brancos. Ela também revela a inconsistência do sistema organizatório tribal para atingir semelhante objetivo. Na ocasião, ainda que temporalmente, a desvantagem tecnológica dos indígenas podia ser amplamente compensada pela supremacia oriunda da preponderância demográfica e pela iniciativa de movimentos, combinada ao ataque simultâneo a diversas posições dos brancos, do litoral ao planalto. Tudo parecia indicar que os brancos seriam varridos da região [...]. No entanto, o êxito dos índios foi parcial e efêmero. As fontes de funcionamento eficiente da sociedade tribal impediram a formação do sistema de solidariedade supratribal, exigido pela situação. As alianças fragmentaram-se e a luta contra o invasor retornou ao antigo padrão dispersivo, que jogava os índios contra os índios, em benefício dos brancos. É que os laços de parentesco, que promoviam a unidade das tribos, engendravam rivalidades insuperáveis, mesmo em ocasiões de emergência no âmbito mais amplo da cooperação intertribal (1975:28).
A confederação dos Tamoio era possível, dada a capacidade de organização dos indígenas. E impossível, porque atravessada por mecanismos de fragmentação. Se o transportarmos para as discussões anteriores sobre a oscilação, por vezes simultânea, entre um movimento centrífugo e outro centrípeto, poderemos nos aproximar de uma compreensão mais razoável dos fatos. O modelo iroquês parece revelar um caráter centrípeto muito mais estável quando comparado com o tupi, no qual o processo de "despedaçamento" não cessa, como havia concluído Pierre Clastres (2004 [1980]). No entanto, como já salientado, essas diferenças podem dizer respeito menos à natureza do que ao grau, e a questão passa a envolver também o aspecto da temporalidade. Ao tomar como meramente negativos os mecanismos de fragmentação, Fernandes acaba por negligenciar um dado fundamental da vida social e política tupi, que é, como evidenciaram Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro (1985), a lógica da vingança, a necessidade de uma troca de mortes para a constituição tanto da pessoa como da socialidade tupi. Os Tupinambá eram "muito belicosos [e] todos os seus fundamentos [são] como farão guerra aos seus contrários", já dizia Gabriel Soares de Sousa (1971 [1587]:320). Se a inimizade é mesmo o princípio fundamental que nos permite pensar a produção das identidades sociais e das unidades políticas tupi, o paradoxo posto por Fernandes nos leva a indagar se os indígenas alguma vez desejaram essa unidade que o autor julga alcançável ainda que nunca alcançada.
O mistério Tamoio
A armadilha das unidades
O problema não é apenas conceitualizar o termo confederação, é compreender o que poderia vir a ser Tamoio menos para os seus inimigos, que assim os batizaram, do que para eles mesmos. Tamoio ou Tamuja, como os chama Anchieta, é um cognato de tamo que, em muitas línguas tupi-guarani, significa "avô", "homem velho", e não raro também chefe, líder doméstico, espiritual e/ou político.14 Entre os Guarani atuais, como salienta Pissolato, tamoi significa, em princípio, "avô", mas costuma ser utilizado de modo mais amplo para se referir a "homens mais velhos, em particular líderes de grupo de parentesco ou xamãs prestigiosos. De modo geral, denota respeito para com aquele que é referido então como xeramoi (xe: marcador de 1ª pessoa, -amoi: 'avô')" (Pissolato 2007:45).15 Tamoi é também aquele que possui capacidade de liderança, que pode ou não ser estendida para além de uma parentela.
No caso dos Guarani atuais, tais capacidades estão muito ligadas ao conhecimento xamânico. Entre os antigos Tupi da costa (e talvez entre os antigos Guarani do Paraguai), se este conhecimento era ainda constitutivo do processo da liderança, não era possível dissociá-lo da dimensão mais fundamental, a guerra. Tanto em um caso como em outro, estamos diante de uma "forma de dominação gerontocrática", como descrita por Léry e interpretada por Fernandes. De certo modo, os Tamoio do século XVI nada mais seriam do que a extensão, ou melhor, a magnificação, da estrutura local do Conselho dos Anciãos, baseada na reunião de líderes de parentelas (tujuaé), para um âmbito supralocal abrangendo um vasto território.
A palavra Tamoio designaria, assim, não um etnônimo constituído ou em constituição, mas um coletivo de líderes ou chefes provenientes de diferentes grupos locais que se aliaram entre si e com os franceses, realizando uma possibilidade familiar de organização e de ação política. Mas antes de levar adiante esta proposição é preciso esmiuçar melhor os equívocos acerca da delimitação de uma identidade tamoio. Se para os portugueses eles eram Tamoio, para os franceses eram Tupinambá.16 Mas nem Tupinambá nem Tamoio são identidades substanciais; pelo contrário, só existem (como tudo) por oposição, por exemplo, aos Tupiniquim seus contrários, aliados dos portugueses.
Segundo a lógica moderna da ação política, os Tamoio deveriam representar-se como uma entidade una que se contrapunha a outra, a dos colonizadores portugueses, subordinados a uma Coroa, a um Estado-nação. O que se passava na guerra dos Tamoio dizia respeito, no entanto, a um cálculo político que envolve um número maior de termos e de níveis de relação. Os Tamoio definiam-se, antes, como inimigos mortais dos Tupiniquim (ao sul) e dos Temiminó (ao norte), aliados dos portugueses. Eles mesmos eram aliados dos franceses. A guerra descortinada apresentava, assim, um duplo caráter: de um lado, manifestava-se como recusa do tipo de relação que lhes propunham os portugueses,17 de outro, reproduzia o motor da vingança, em que o inimigo continuava a ser, por excelência, um Outro Tupi. Que guerra seria essa, aliás? Teria a ação tamoio configurações passíveis de serem distintas de outras guerras tupi costeiras em outros contextos?
A mesma relatividade manifestada no uso do termo Tamoio pode ser verificada a respeito de termos como Tupiniquim, Temiminó, Tupinaé, Carijó, entre tantos outros etnônimos que surgem de maneira flutuante nas páginas dos missionários, cronistas e viajantes dos séculos XVI e XVII em pontos diversos da costa brasileira. De certo modo, todos eles teimam em encontrar unidades sociopolíticas, tribos, etnias bem delimitadas e seus respectivos chefes provinciais, representantes políticos. No entanto, tudo o que têm é um processo de fissão e fusão constante, dado pelo jogo das vinganças e das alianças.
Staden evidencia que muitos nomes pelos quais os Tupi costeiros chamavam os seus inimigos eram, antes de tudo, qualidades de relações. Tabajara, por exemplo, significava "simplesmente inimigo" (Staden 1941 [1557]:54). Tabajara - ou tovajar, tabayara, tabagerre etc. como aparece em outras fontes - pode ser traduzido como "aquele que está adiante", o "meu contrário" e, em muitas ocasiões, utilizado para se referir ao cunhado, o que evoca a associação entre afinidade e inimizade (H. Clastres 1972; Viveiros de Castro 2002). Note-se, nesse sentido, que todos esses supostos etnônimos eram termos que expressavam relações de parentesco, de afinidade, de inimizade; seriam, antes, qualificativos de posição (Perrone-Moisés 2008:49). Tamoio, vale repetir, significava avô, velho. Temiminó, neto, descendente.
Todos esses Tupi da costa eram, afinal, os mesmos, na aplicação constante e consistente de princípios de diferenciação recíproca ao longo do tempo. Para seus contemporâneos europeus como para especialistas de séculos seguintes, colocaram o paradoxo: que unidade pode ser essa, cuja dinâmica inclui e exclui alternadamente grupos que, do ponto de vista moderno, tudo deveria unir? Iguais nos modos como constantemente se opunham, se juntavam, se separavam, unidos pela guerra, em suma, os Tupi costeiros sempre foram refratários a qualificações de tipo "tribo" ou "etnia". Tamoio é, em suma, um nome dado pelos colonizadores, que tanto insistem em nomear grupos e chefes (pois o poder político só se exerce sobre o poder político), para uma configuração possível de uma aliança para a guerra. Estamos diante de um problema discutido por Wagner (1974): como descrever coletivos que não se apresentam como grupos, tal como gostaríamos, ou seja, com limites bem demarcados? Wagner pensava a dificuldade a partir da Melanésia, mas a mesma questão se coloca aqui. Segundo Wagner, para evitar uma abordagem "grupo-cêntrica", na qual recaem tanto os estudos clássicos de antropologia política como os estudos mais contemporâneos de etnicidade, é preciso pensar em associações que não tencionam se constituir em corpos políticos propriamente ditos. É preciso pensar um vocabulário que dê conta de situações em que as relações não sejam facilmente capturadas pelos termos.
A miríade de etnônimos que invade as fontes é causa muitas vezes de mal-entendidos. Povos como os Guaianá, do planalto paulista, e Caetés, da foz do São Francisco, são referidos ora como Tupi, ora como Tapuia (Monteiro 2001). Com base nas fontes, o que podemos dizer é que Tupinambá é o nome dos aliados dos franceses, abrangendo, no século XVI, um território que vai de Bertioga a Cabo Frio, do Recôncavo baiano até a foz do São Francisco e, no século XVII, do Rio Grande do Norte ao Maranhão. Tupiniquim, de sua parte, é o nome dado aos aliados dos portugueses, compreendendo o planalto paulista e o litoral norte do atual estado do Rio de Janeiro, estendendo-se pelo Espírito Santo. Não se pode, ademais, negligenciar o papel fundamental das migrações na recomposição constante desses quadros. O que algumas fontes definem como unidades sociopolíticas - províncias, tribos - eram muitas vezes blocos migratórios constituídos por mecanismos de fusão e fissão, blocos espaço-temporais,18 diríamos. A tentativa de reduzir essas descontinuidades a unidades políticas, étnicas (ou tribais) ou culturais fixas advém certamente de uma exigência de sociedades que se organizam pela gramática do Estado.
Se não podemos reduzir os Tamoio a uma entidade étnica e política, tampouco podemos concebê-los em uma oposição estática em relação aos Tupiniquim (ou Temiminó, ou...). É preciso compreender todas essas oposições e todo o processo de diferenciação sob a lógica da vingança, esta que se aproxima de um regime de multiplicidade, visto que, se há unidades, estas existem contextualmente e são incessantemente gestadas para se entredevorar.19 A oposição é o fato primeiro, grupos há porque se opõem e na medida em que se opõem. Conforme mudam as oposições, mudam os grupos. A ocupação permanente do planalto paulista pelos portugueses provocava também cisões entre os próprios Tupiniquim, opondo os catecúmenos de Piratininga, reunidos pelos jesuítas, e os chamados Tupi do sertão, avessos ao movimento de aldeamento. Este evento aparentemente menor é crucial, como veremos, para entender o evento maior, a guerra e a confederação dos Tamoio.
Fazendo parentes e inimigos
Na capitania de São Vicente, os jesuítas ganhavam como grandes aliados os principais Caiuby e Tibiriçá, o último batizado Martim Afonso. Segundo Anchieta ("Carta ao Geral Diogo Lainez, março de 1563"), num período de graves epidemias e guerras intensas, Tibiriçá teria logo se deixado convencer pela mensagem cristã, passando a pregar aos seus, alegando que o Deus dos padres garantiria o seu sucesso diante dos inimigos. Assim, o principal teria juntado a sua gente, então repartida por três aldeias pequenas, e conduzido-a a Piratininga, onde havia sido erguido o colégio jesuíta. A criação de Piratininga, em 1554, produziu, contudo, uma grave ruptura entre os próprios Tupiniquim, fazendo irromper inimizades onde havia parentesco e aliança. Anchieta e Nóbrega oferecem relatos perplexos sobre a onda de revoltas que punham cerco ao povoado e, sobretudo, sobre a batalha travada entre parentes. Alguns destes relatos contam as desavenças entre Tibiriçá e seu irmão Araray, que passara para o lado dos "insurgentes" na luta pela expulsão dos portugueses. Araray tinha um sobrinho, Jagoanharo, que acabou sendo morto numa dessas investidas. Como evidencia Monteiro, entre 1560 e 1563, "os Tupiniquim, liderados por Piquerobi e Jagoanharo, respectivamente irmão e sobrinho de Tibiriçá, fizeram cerco à nova vila, ameaçando-a de extinção" (1994:39).20
A "guerra entre parentes" que ali tinha lugar evidenciava como a inimizade podia ser rapidamente produzida, inclusive dentro de um grupo de cognatos ou aliados próximos. Simão de Vasconcelos resume a perplexidade dos padres:
Era para ver pelejar às flechadas irmãos contra irmãos, primos contra primos, e filhos contra pais. Foram vários os sucessos da guerra: até que, por fim cansados, e desbaratados, se retiraram os contrários, com morte de muitos, e muitos mais feridos; e sem que morresse um só da nossa parte, posto que ficaram muitos flechados, aos quais acudiram os padres, curando-os; e fizeram todos ação de graças por tão grande sucesso. Entre os que morreram da parte do inimigo, foi um sobrinho de Martim Afonso Tibiriçá, chamado por sua valentia Jagoanharo, que vem a dizer, o Cão bravo, que capitaneava um troço: este sabendo que as mulheres se tinham recolhido em nossa igreja, e que ali havia de roubar, veio a dar combate nela pela parte da cerca da horta dos padres, que ele bem sabia: pagou porém o atrevimento; porque dali lhe atirou uma flecha um escravo, tão bem empregada, que deu com ele em terra, e a pouco espaço acabou a vida. Foi este sucesso grande parte de desmaiar o inimigo; porque considerando os nossos resolutos, e os seus feridos, e mortos muitos, ao segundo dia do cerco, e combate, destruindo o que puderam nos arredores, sobre a tarde deram a fugir com tanta pressa, que não esperava pai por filho. Saíram-lhes os nossos em alcance, e tomaram dois deles, que vendo-os abarbados com a morte, gritaram pelos padres, e alegaram catecúmenos seus: porém em balde; porque Martim Afonso Tibiriçá lhes quebrou a cabeça com a espada, dizendo que tal delito não era merecedor de perdão (1977 [1663]:77, itálicos nossos).
Os Tupiniquim contrários opunham aos habitantes de Piratininga um ódio fresco e voraz. "Seguindo o caminho da carne, afastando-se do caminho de Deus" (idem), declaravam guerra aos portugueses e recusavam a vida em núcleos coloniais. Com a extinção, por ordem de Mem de Sá, da vila de Santo André da Borda do Campo, Piratininga sofria um grande inchaço. Composta pelos aliados dos portugueses, via-se cercada de inimigos por todos os lados. Como concluía Vasconcelos, a gente de São Vicente que, logo após um lapso de paz, voltava a se entregar às delícias da guerra, deveria ser mesmo "cheia de contradição".
Diante desse quadro de tensão, da guerra entre parentes em Piratininga e das notícias de uma confederação de contrários com apoio dos invasores franceses, os padres Anchieta e Nóbrega partiam em missão de paz entre os Tamoio, dirigindo-se à região de Ubatuba. Retornamos, assim, ao episódio da "paz de Iperoig", com o qual abrimos este ensaio. O episódio parece bastante revelador da especificidade desse suposto grupo que nas fontes jesuíticas é chamado de Tamoio. Os habitantes de Iperoig, provavelmente um adensamento de dois ou três grupos locais vizinhos - que tinham como principais Caoquira, Pindobuçu e Cunhambeba - embora aliados aos revoltosos da Guanabara, deixavam-se seduzir pelos padres, uma vez que estes lhes prometiam libertar parentes que tinham sido submetidos a cativeiro em São Vicente e, sobretudo, porque os padres representavam uma possibilidade de vingança contra seus antigos e odiados inimigos, os Tupiniquim do sertão, que haviam se rebelado contra Piratininga. Teriam os Tamoio de Iperoig traído a "confederação" e a luta contra os portugueses?
De traições e trapaças
Depois de certa resistência e desconfiança, Nóbrega e Anchieta acabaram sendo acolhidos pelos principais de Iperoig. Os padres ergueram ali uma pequena capela e tentaram, com muito esforço, iniciar o seu trabalho de catequese. Durante o cativeiro, Anchieta recebia notícias dos feitos dos Tamoio no Rio de Janeiro e dos estragos causados em Piratininga. Enquanto isso, ele e Nóbrega eram frequentemente ameaçados de ser devorados, sobretudo quando da visita de principais da região da Guanabara, como o próprio Aimbire. Conforme a correspondência de Anchieta, que passou mais tempo do que Nóbrega em Iperoig,21 tudo indica que houvesse comunicação de fato entre as diversas aldeias tupinambá. O trânsito intenso de canoas e visitações de principais e guerreiros vindos da região da Guanabara, que hora ou outra metiam medo no refém, vinha atestar a vigência desta rede bélica, comercial e política - aliança, em suma. O jesuíta mostrava-se atônito diante dessas formas de organização política, em que todos e ninguém pareciam ter autoridade:
[...] é coisa certa que para ser um principal basta ter uma canoa [...] em que se ajuntem doze ou quinze mancebos, com que possa vir a roubar e saltear, de onde parece quão particular cuidado teve Nosso Senhor o tempo que entre eles estivemos de nos conservar a vida ("Carta a Diogo Lainez, janeiro de 1565", 1933:234-235).
Anchieta relata, além disso, de que maneira a guerra de vingança persistia ali, persistindo também o trânsito de cativos e os festins canibais.
Dos do Rio já tínhamos o desengano que não queriam pazes, porque tínhamos certas notícias que eu havia mui bem alcançado em Iperoig dos mesmos Índios que tinham cerca de 200 canoas juntas, com as quais determinavam com este título de pazes entrar em nossas vilas, que já muitos deles tinham mui bem miradas, e pôr tudo a fogo e a sangue, se pudessem, e ainda que isto não se soubera por outra via, suas obras o estavam pregoando, porque, ultra deles virem sempre com propósito e vontade de nos matar enquanto estivéssemos entre eles, em Iperoig, depois de eu vindo, estando cá muitos deles, vieram outros por duas vezes e saltearam, levaram e comeram alguns escravos, depois vinham umas 40 ou mais canoas, para começar a efetuar a sua vontade, mas não chegaram cá mais de dez ou onze, os quais logo descobriram que vinham com determinação de tomar um dos lugares do campo, de nossos discípulos (idem:235).
Num tal contexto de desengano quanto à possibilidade de paz, em se tratando de tão ferozes canibais, Anchieta vê a Iperoig de Caoquira, Pindobuçu e Cunhambeba como uma frágil ilha de constância num mar de inconstância. "Só os moradores dos lugares de Iperoig hão sido constantes até agora e alguns deles ainda estão entre nós outros; mas por fim farão o que a maior parte dos seus fizeram" (idem:236). Em seu cativeiro, ainda que em desesperança, o jesuíta consegue o apoio dos habitantes do local sob a condição de protegê-los contra os portugueses e ajudá-los na luta contra os Tupiniquim do sertão. Um tanto incertos quanto à palavra do padre, que prometia trégua, os indígenas permitiram que Anchieta retornasse a São Vicente e trouxesse, enfim, ajuda dos portugueses. Nesse desfecho, notam-se duas traições - ou melhor, uma "traição" e uma "trapaça", para utilizar uma distinção deleuziana:
O traidor é o personagem essencial do romance, o herói. Traidor do mundo das significações dominantes e da ordem estabelecida. É bem diferente do trapaceiro: o trapaceiro pretende se apropriar de propriedades fixas, ou conquistar um território, ou até mesmo instaurar uma nova ordem. O trapaceiro tem muito futuro, mas de modo algum devir. O padre, o adivinho é um trapaceiro, mas o experimentador, um traidor. O homem de Estado ou homem de corte é um trapaceiro, mas o homem de guerra (não marechal ou general), um traidor (Deleuze 1998 [1977]:55).22
A traição advinha dos habitantes de Iperoig para com os confederados Tamoio, pois que aceitavam se aliar aos padres com o desejo de voltarem a se enfrentar com os Tupiniquim do sertão, inimigos de longa data. Preferiam perpetuar a vingança, que se mantinha no cerne da constituição de coletivos e pessoas, a projetar uma forma política enrijecida. A trapaça advinha dos próprios padres, que prometiam apoiá-los, mas nada fizeram senão dar continuidade a um plano de ação em massa com o intuito de derrotar todos os contrários e sua aliança com os franceses e, assim, promover um bom futuro para a colônia. Os padres, bem se pode imaginar, jamais pensaram em se aliar com os habitantes de Iperoig contra os Tupiniquim contrários. Para eles, não se tratava, evidentemente, de perpetuar a lógica da inimizade ali vigente, mas de subjugar os inimigos da empresa portuguesa sob a lógica da unidade - uma só colônia, uma só fé.
Os habitantes de Iperoig aliavam-se aos padres tendo em vista o ódio que nutriam contra os Tupiniquim do sertão de São Vicente. Não por quererem unir-se contra quem quer que fosse, antes para perpetuar o opor-se que os fazia quem eram. As configurações das alianças mudavam no contexto da guerra e isto explicava por que os habitantes de Iperoig dispunham-se a negociar com os padres, opositores principais dos Tupiniquim de São Vicente. Se os padres pediam paz, os indígenas viam neles, contrariamente, um meio de continuar a fazer guerra, uma guerra em seus próprios termos, e não a guerra que se conformava sob a imposição de uma unidade confederada, de uma unidade étnica porque política, os Tamoio.
Anchieta e Nóbrega foram a Iperoig na ilusão de que, conquistando o apoio de duas ou três aldeias e de alguns principais, conseguiriam promover a paz de "todos" os assim chamados Tamoio. O que eles obtiveram de fato - e Anchieta parece tê-lo percebido - foi uma aliança sem adesão dos demais "insurgentes" da Guanabara. Afinal, Aimbire e os seus mantinham-se ativos em sua revolta contra os portugueses e em sua aliança com os franceses, assegurada, inclusive, por fortes laços matrimoniais. Este é um exemplo claro de que a lógica indígena das alianças, bastante avessa ao princípio de identidade e outros alicerces formais vigentes no Ocidente, não costumava contar com a fidelidade a uma unidade posta para durar, ou seja, era uma lógica que já pressupunha a possibilidade da traição, porque tem na transformação sua força motriz. Os habitantes de Iperoig traíam a "união" dos Tamoio porque sua máquina política tinha na fragmentação outro vetor crucial.
O exemplo aponta para a ficção implícita na noção de Tamoio. Eficaz em muitos momentos, ela não pode se justificar por si só. A traição dos habitantes de Iperoig oferecia mais um exemplo da inconstância epistêmica e política que Viveiros de Castro tão bem notou entre os antigos Tupi da costa:
Aparentemente pouco inclinados a qualquer oposição segmentar, os Tupi vendiam as almas aos europeus para continuar mantendo sua guerra corporal contra outros Tupi. Isso nos ajuda a entender por que os índios não transigiam com o imperativo da vingança; para eles a religião, própria ou alheia, estava subordinada a fins guerreiros: em lugar de terem guerras de religião, como as que vicejavam na Europa do século, praticavam uma religião da guerra (2002:212).
Nesse sentido, é preciso separar os Tamoio como ficção necessária para o colonialismo - e para a reação contra ele - de um conjunto de coletivos como o dos habitantes de Iperoig, que procuravam, antes de tudo, continuar guerreando. Assim, se há reação à Conquista, um projeto de resistência - e certamente há - esta não pode ser separada do que era a forma mais plena de existência: a relação com o inimigo, o "átomo da vingança" (Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 1985), a segmentaridade "não-segmentar" ou "rizomática" porque independente de unidades preestabelecidas como clãs, linhagens etc., e porque flexível, aberta a traições e fugas, e que descreve um movimento pendular entre momentos de concentração e dispersão.23 Tudo isso pressupunha a presença de inimigos, não quaisquer, mas aqueles que se dispunham a aceitar as regras de seu jogo.
Os habitantes de Iperoig aceitaram a paz proposta pelos padres para continuar com a sua guerra, os padres aproveitavam-se da guerra dos índios para estabelecer a sua paz, ou seja, por meio da declaração de uma guerra justa capaz de banir os povos contrários e, junto com eles, os franceses insurgentes. A trapaça dos padres consistia no fato de que não era a aliança com os habitantes de Iperoig que eles buscavam, mas o compromisso de extermínio da oposição dos Tamoio, que colocava em risco a integridade e o futuro da colônia portuguesa. Os Tupi faziam guerra "para haver futuro" (Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 1985), os jesuítas queriam guerra também para haver futuro, mas um futuro em que a guerra tupi não tinha lugar.
Considerações finais
Diante de tantas inconstâncias e traições, o que se pode afirmar, finalmente, sobre todos esses eventos?
A imagem da confederação dos Tamoio, tal como foi veiculada na historiografia brasileira, é impregnada de figuras da unidade: a "tribo" ou "liga" tamoio, unida em sua reação à Conquista, à colonização, e seus heróis guerreiros, como Aimbire, suposto chefe supremo, símbolo necessário da integridade de um povo. Uma variação desta narrativa, que corta os séculos, pode ser encontrada hoje no discurso indigenista católico que incita o despertar de uma nova consciência da indianidade, capaz de conduzir a um projeto de ação política. Tudo se passa, novamente, como se a ação política indígena necessitasse de um critério de unidade para existir, como se ela não pudesse se definir, justamente, por outros termos. Ou melhor, outras relações, como as suas linhas de fuga, as suas traições, o próprio da vingança.
A confederação dos Tamoio, figura da multiplicidade, acaba por ser reinventada como vanguarda do movimento indígena organizado do século XX, como primeira reivindicação pelos direitos e pela posse da terra. Fazemos referência, mais especificamente, a um caderno produzido em 1984 pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), intitulado Confederação dos Tamoios: a união que nasceu do sofrimento. Aqui a leitura da história dos Tamoios prossegue na chave cristã presente nos textos jesuíticos e no poema de Gonçalves Magalhães, uma vez que se trata de pensar a criação da unidade por meio de um ato sacrificial. Os Tamoio são recuperados como emblema da reação nativa organizada contra a dominação colonial. Propõe-se, assim, um paralelo entre o caso quinhentista e as assembleias e as organizações pan-indígenas da atualidade. Em ambos os casos, os diferentes povos tomam consciência, diante da ameaça do mundo não-indígena, de sua condição comum, o que lhes permitiria constituir unidades mais fortes.
Mais uma vez, a ideia de reação à Conquista e, por conseguinte, de uma necessidade urgente de uma forma política una parece nublar os mecanismos próprios da ação política indígena. É possível extrair das fontes e dos estudos incompletos e plenos de projeções alguma positividade da organização tupi, contanto que a "forma Estado", que orienta as suas descrições, seja subtraída. Tendemos, com efeito, a projetar na confederação ou guerra dos Tamoio a figura de uma aliança militar e jurídica de tipo moderno e, assim, vislumbrar nela a união política entre unidades discretas, independentes, estáveis, devidamente representadas. Mas as coisas não pareciam funcionar bem assim entre os antigos Tupi, pouco afeitos a essa imagística da unidade e da hierarquia como englobamento e supressão dos contrários.
Se a tantos pareceu haver um problema político de organização e de representatividade entre esses povos, este não residiria na impossibilidade de compor uma unidade supralocal ou territorial coesa, que se poderia qualificar como tribo, etnia ou nação, mas sim na destreza em descompor quaisquer unidades por meio das linhas de fuga e das traições acima descritas. Temos em vista aqui a ideia da incompletude ontológica, na qual existir é devir, mais especificamente devir-inimigo, como bem notou Viveiros de Castro (2002). Devir-contrário a serviço não da unidade, mas da multiplicidade; não da extensão, mas da intensidade. Ora, podemos pensar essa incompletude, que é multiplicidade, num sentido ao mesmo tempo ontológico e sociopolítico. Os Tamoio não são uma unidade, pois contêm em si a multiplicidade, essa possibilidade de uma explosão de diferenças, mesmo entre pessoas próximas. No mundo Tamoio, qualquer unidade, local ou supralocal, não importa, conteria em si o seu contrário, ou melhor, traria sempre em si o movimento necessário em direção ao seu oposto, assumindo em seu caráter necessariamente efêmero uma recusa do Uno, da identidade, da fixidez. Toda unidade apresentada, bem como sua representatividade, consistiria numa realidade momentânea já tendendo a uma traição inevitável.
Recusa do Uno. Isto nos conduz de volta aos escritos de Pierre Clastres. Mas de uma forma heterodoxa. Pois quando Clastres se referia aos antigos Tupi da costa, entrevia um movimento sem volta. A partir das evidências de transformação das formas políticas "contra o Estado" - grupos locais dispersos e autônomos, chefes de paz impotentes - em formas "mais complexas" - fortes alianças supralocais, chefes de guerra e profetas capazes de mobilizar uma grande população - Clastres supunha um processo de desnaturação, um malencontro definitivo, tal como imaginado por La Boétie. O que propomos, diferentemente de Clastres, é que a confederação dos Tamoio não constituía um movimento em direção a um cacicado, um proto-Estado, enfim, uma formação do tipo Estado. Sinalizava, antes, a possibilidade de transformações reversíveis, que não podem ser compreendidas como meras reações à Conquista e que dizem respeito a mecanismos pendulares próprios da ação política indígena, esta que teima em subordinar o contorno das formas a forças heterogêneas.
Relendo A sociedade contra o Estado pelo viés do "dualismo em eterno desequilíbrio", tal como desvelado por Lévi-Strauss (1991), seríamos levados a concluir que os antigos Tupi da costa, ameríndios que são, evitavam a fixação, quer no polo da dispersão, quer no da unificação, mantendo-se num vai e vem pendular entre um e outro. A unificação era uma possibilidade concreta, repetidamente realizada e sempre fadada ao desmantelamento, constituindo-se apenas como vertigem com que a dispersão, resposta mesma dessa recusa, teria de conviver. Sempre quase unidade, interrompida por dispersão que tampouco chega a termo. Relendo Clastres através da metáfora da "máquina de guerra" de Deleuze e Guattari (1980), diríamos que em toda linha de fuga, em toda dissolução, reside a possibilidade de uma nova composição de coletivos, de uma nova segmentação, de uma reterritorialização.
A sugestão de Clastres de que os Tamoio confederados talvez estivessem a caminho de uma aglutinação que eventualmente uniria os antigos Tupi da costa numa unidade política não parece totalmente descabida. Não é possível, decerto, saber o que teria acontecido se os Tamoio não tivessem sido derrotados pelos portugueses e, assim, varridos da costa sudestina. É possível que tudo voltasse a ser como antes, que os grupos voltassem ao seu estado de dispersão e que novas inimizades estourassem entre os aliados, tais como aquelas que estouraram entre os Tupiniquim de São Vicente. É possível, por outro lado, que esse conjunto de alianças encontrasse uma forma mais estável, algo como a replicação de um estado de paz no interior de uma rede multicomunitária, o que pressupõe a emergência de chefias supralocais mais fortes e mais representativas. Nada disso seria impossível. E nada disso haveria de ser totalmente irreversível. Os antigos Tupi eram decerto capazes de se organizar politicamente e, inclusive, de encontrar soluções circunstanciais para o dilema da representação. No entanto, se eram fiéis a algo, era à recusa de abrir mão de uma multiplicidade e do devir-Outro, devir-inimigo, pois residia ali o nexo de sua existência, o que implicava assumir qualquer unidade e identidade - objeto da representação política - como estado passageiro, algo que não deve durar.
As fontes históricas e arqueológicas que versaram sobre as terras baixas da América do Sul estão repletas de referências a grandes formações sociopolíticas ameríndias, denominadas confederações, cacicados, chefaturas e até mesmo impérios. O que une todas é o fato de terem invariavelmente se dissolvido, não raro num lapso de poucas décadas após as primeiras descrições. Têm cabido aos americanistas o desafio de explicar esses desaparecimentos; as causas avançadas são variáveis: desastre ecológico ou esse outro desastre que foi da invasão europeia, ou ainda eventos igualmente imprevisíveis mas de menor escala, como rompimentos de alianças em função de casamentos malfadados. Seria absurdo afirmar que fatores como esses não influenciam de modo algum as transformações em curso. Mas reduzi-las a uma causalidade totalmente externa e sempre imprevista é, mais uma vez, esvaziar a ação política indígena de algo próprio, desconsiderar seus movimentos internos. Ou talvez continuar supondo que somente eventos alheios ao que seria um movimento "natural" desses coletivos poderiam dar conta de aparentes "desvios" de rota.
Uma explicação bastante antiga talvez se aproxime mais daquilo que fundamenta todas essas histórias. Diz-se, por vezes, que os indígenas simplesmente não se mantêm unidos. De fato, suas uniões, bem como suas desuniões, são perenemente inconstantes. Não em decorrência de uma incapacidade - que justificaria medidas como a tutela e o assistencialismo - mas graças à sua capacidade de gerar modos outros de agenciamentos, modos outros de subjetivação, modos outros de compor e dissolver coletivos, de fazer e transformar gentes.
Notas
* Para Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro. Este artigo é uma versão ampliada da comunicação "Tamoio: from rebels to confederates", apresentada no V Encontro da Society for the Anthropology of Lowland South America - Salsa, ocorrido em junho de 2008, em Oxford. Agradecemos a André Drago Ferreira Andrade pela leitura cuidadosa de uma versão anterior deste texto, e também aos integrantes do Projeto Temático "Redes Ameríndias" (FAPESP 05/57134-2; coord. Beatriz Perrone-Moisés), aos quais pudemos apresentar os argumentos centrais aqui presentes, por seus comentários e sugestões.
1 Para uma revisão do material histórico tupi a partir de etnografias sobre povos contemporâneos, ver especialmente Viveiros de Castro (1986, 2002). Ver também Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro (1985) e Fausto (1992, 2001).
2 Em relação à França Antártica e às fontes francesas do século XVI acerca do Brasil, ver Lestringant (1990, 1991, 1994, 2005).
3 "Parece muito necessário povoar-se o Rio de Janeiro e fazer-se nele outra cidade como a da Bahia, porque com ela ficará tudo guardado, assim esta capitania de Sam Vicente como a do Spírito Santo que agora estão bem fracas, e os franceses lançados de todo fora e os índios se poderem melhor sojeitar" ("Carta ao Cardeal Infante D. Henrique de Portugal", 01/06/1560, Nóbrega 1988:227). Sobre a definição dessa guerra justa no século XVI, ver Perrone-Moisés (2003) e Eisenberg (2000).
4 Note-se que, pouco mais de meio século depois, os padres capuchinhos Claude d'Abbeville e Yves d'Évreux, engajados na construção da França Equinocial, no Maranhão, voltariam a descrever estas formas e personagens, agora para conceber um modo de colonização capaz de reconhecer nos indígenas alguma positividade política, o que permitiria selar não uma relação de total sujeição, mas uma espécie de acordo diplomático entre as "nações". À diferença dos missionários portugueses do século XVI, esses missionários capuchinhos franceses não parecem operar com um conceito de negatividade política para lidar com os indígenas. Não obstante, em suas propostas de paz estavam incluídas a eliminação de práticas como a antropofagia e o xamanismo, práticas que não podem ser dissociadas da política tupi (Perrone-Moisés 1996).
5 "Obesrten Häuptling" é como Staden qualifica Cunhambebe (Staden 1941 [1557]:85).
6 A ideia de "magnitude" remete à reflexão de Roy Wagner (1991) sobre os great-men melanésios à luz da imagem da "pessoa fractal". Um desenvolvimento deste argumento, tendo em vista os casos tupi, pode ser encontrado em Sztutman (2005).
7 Esta é, por exemplo, a tese discutida por Anna Roosevelt (1993, 1994) em sua "nova síntese" sobre a Amazônia, tendo em vista descobertas arqueológicas importantes na região da várzea do Amazonas, mais precisamente Santarém e Marajó. Roosevelt não se refere a confederações, mas sim a chefaturas (chiefdoms). Sobre o problema da "complexidade" política na Amazônia, ver, entre outros, Whitehead (1994) e Heckenberger (2005). Para uma revisão do conceito de chefatura (chiefdom), ver Earle (1987). Não há espaço aqui para adentrar este importante debate em curso nos estudos americanistas.
8 As escalas de "complexidade" política envolvidas nas análises dos achados arqueológicos das últimas décadas são comentadas com mais vagar em Fausto (2000), Sztutman (2005) e Perrone-Moisés (2006). Para uma crítica do argumento de Roosevelt em relação às chefaturas de Santarém, ver Gomes (2007).
9 Que é o critério fundamental, aliás, no estabelecimento de uma linha necessária de evolução das formas políticas. Mas não propriamente para Clastres, que insistia na necessidade de investigar a questão demográfica a partir das próprias armações políticas indígenas.
10 Para uma reflexão sobre este problema em Pierre Clastres, ver Sztutman (2009).
11 Em sua obra mais conhecida, Ancient society (1877), Morgan analisa a confederação iroquesa em conjunto com outras formas políticas, como as ligas entre cidades-estado gregas e astecas.
12 Fernandes se vale aqui das informações de Yves d'Evreux quanto aos nomes das categorias de idade entre os Tupinambá. Os tujuaé estariam entre os participantes exclusivos dos conselhos e das sessões de fumo coletivo (Soares de Sousa 1971 [1587]).
13 Mencionado por praticamente todas as fontes, o termo morubixaba - grafado, aliás, de diferentes formas, dentre elas, mburuvicha - abrange um campo semântico amplo. Ele pode ser empregado para fazer referência ao grande guerreiro, ao chefe de guerra, aos chefes locais e supralocais, ou mesmo a qualquer homem de prestígio. Segundo Dominique Tilkin Gallois (comunicação pessoal), o termo morubixaba parece ter a mesma raiz que o termo wajãpi rovijã (ruvijã ou ruvixa), donde "mo" é um causativo, dando a entender "aquele que se faz chefe". Entre os Wajãpi, rovijã (ou jovijã) é uma categoria ampla que diz respeito aos velhos, "àqueles que sabem". Para uma apreciação mais abrangente e aprofundada do termo entre vários grupos de língua tupi, ver Viveiros de Castro (1986:300-320).
14 Não queremos dizer com isso que a associação entre o termo tamo e a posição de liderança seja necessária.
15 No Vocabulário tupi-português de Lemos Barbosa amia é "avô" (1967:27). Ver F. Grenand (1989:431), artigo tãm, significando "grand-père", "ancêtre".
16 E eram Tupinambá também para os Tupiniquim, por quem eram ainda conhecidos como Tabayara (ver Staden 1941 [1557]:54).
17 E não de toda e qualquer relação com europeus, vale lembrar, pois não se tratava, como afirmamos acima, de uma guerra de "índios" contra "europeus".
18 Ver Sztutman (2005:272-282).
19 "Uma multiplicidade não se define pelos seus elementos, nem por um centro de unificação ou de compreensão. Ela se define pelo número de suas dimensões; ela não se divide, não perde nem ganha dimensão alguma sem mudar de natureza. Como as variações de suas dimensões lhes são imanentes, dá no mesmo dizer que cada multiplicidade já é composta de termos heterogêneos em simbiose, ou que ela não pára de se transformar em outras multiplicidades de enfiada, segundo seus limiares e portas" (Deleuze & Guattari 1997 [1980]:33; grifos dos autores).
20 Como escreve Simão de Vasconcelos, os Tupi do sertão eram "confederados nossos, que já andavam meio arruinados, como esta ocasião acabaram de se declarar por contrários, e iam cada vez mais reforçando-se com o poder de outras aldeias circunvizinhas, que estavam neutras, e muitos outros, que de nós fugiam por descontentes, e buscavam a eles por melhor partido" (1977 [1663]:74-75).
21 Alguns meses depois, Nóbrega partia para São Vicente para buscar novas pazes e Anchieta permanecia como refém, sob ameaças constantes de devoração, sobretudo da parte de alguns pajés e mulheres, que não aceitavam o fato de ele se recusar a tomá-las como esposas. A presença de Anchieta em Iperoig causava oscilações entre os indígenas: de um lado, via-se nele uma forte capacidade xamânica - dada a sua capacidade de batismo, ou seja, cura e, ao mesmo tempo, comunicação com o sobrenatural - de outro, ele causava perplexidade em todos ao se negar a integrar as redes de relações locais.
22 O traidor seria uma figura do devir, da metamorfose, visto que recusa potências fixas e projetos de futuro (e passado) entregando-se ao evento, ao passo que o trapaceiro estaria sempre em compromisso com as formas fixas e instituídas da identidade. Se o traidor traça linhas de fuga, o trapaceiro promove enrijecimentos.
23 Para uma discussão aprofundada em torno da noção de segmentaridade "rizomática", inspirada em autores como Gilles Deleuze e Félix Guattari, ver Goldman (2001).
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Recebido em 28 de outubro de 2009
Aprovado em 09 de abril de 2010
FONTE ORIGINAL....https://www.scielo.br/
Autores
Beatriz Perrone-Moisés; Renato Sztutman
Professores do Departamento de Antropologia da USP e pesquisadores do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo - NHII/USP. E-mails: <perrone@usp.br; sz.renato@gmail.com>
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