Muitos anos atrás, quando as estradas ainda não ligavam com facilidade o litoral ao Vale do Paraíba, os caiçaras de Ubatuba mantinham viva uma prática curiosa e marcante: levar o futebol para além das praias, atravessando as trilhas da Serra do Mar para desafiar os times formados nos bairros serranos. O trajeto era longo e extenuante — feito a pé, em jornadas que podiam durar horas, subindo ladeiras, cruzando riachos e matas fechadas até alcançar localidades como Natividade da Serra e o bairro de Palmeiras, já no alto da serra.
Esses encontros não eram apenas esportivos, mas também momentos de troca cultural. Os caiçaras traziam consigo o jeito alegre e descontraído de jogar, marcado pela ginga e pela improvisação; já os moradores do Vale, os chamados “caipiras” da serra, tinham um estilo mais direto e competitivo, inspirado nas tradições de jogos em campos de terra batida. O futebol tornava-se, assim, uma ponte entre dois mundos: o do litoral, moldado pelo mar, e o da serra, moldado pelo interior.
Há registros orais que contam um detalhe revelador da hospitalidade serrana: quando os times caiçaras chegavam exaustos das longas caminhadas, antes mesmo da bola rolar, eram recebidos com cuidado. Os moradores organizavam bancos e cadeiras ao redor do campo, e as mulheres da comunidade aqueciam água em tachos ou panelas grandes. Ali, colocavam os pés dos jogadores recém-chegados em bacias de água morna, para aliviar o cansaço e a dor das trilhas. Era um gesto simples, mas carregado de significado — mostrava respeito, acolhimento e o valor dado àquele encontro, que ia muito além da disputa esportiva.
Somente depois desse ritual de descanso e recuperação é que a partida começava. De um lado, os caiçaras do litoral; do outro, os caipiras do Vale do Paraíba. Os jogos eram duros, cheios de rivalidade, mas também de alegria, risadas e histórias que se estendiam nas rodas de conversa após o apito final. Muitas vezes, terminavam com comida compartilhada, música e até promessas de revanche na próxima visita, seja no alto da serra ou de volta nas areias e campinhos de Ubatuba.
Esse costume mostra como o futebol, já naquela época, funcionava como um elo cultural. Mais do que um esporte, ele era uma forma de integração, capaz de aproximar diferentes comunidades e transformar a dureza da caminhada pela Serra do Mar em memória coletiva — feita de suor, esforço, amizade e hospitalidade.
FONTE : Guinho Caiçara Santos
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