Esta aeronave fazia a linha aérea regular entre França e Argentina. Nos 11 mil quilômetros do percurso passava pela costa atlântica brasileira e teria descido em Santos, na base aérea da Praia Grande, não fosse pelas péssimas condições meteorológicas. Ao passar próximo a Ubatuba, fez retorno, baixou a altitude. sobrevoou a cidade e após avistar a torre da igreja matriz, decidiu pelo pouso nas areias da praia central. Uma parada técnica e providencial até a melhora das condições climáticas. No avião estavam dois franceses, um telegrafista chamado Chauchat e era pilotado por um certo “Antoine”, que naturalmente não falava português, assim como os de Ubatuba não sabiam francês. No máximo um “vous voulez quelque chose?”, dos rudimentos ginasianos.
Pouso do avião em 1933 na praia do Cruzeiro em Ubatuba,
Naquela época, Ubatuba estava reduzida a 110 casas, todas mais ou menos em ruínas e em dez anos, a cidade poderia acabar. Matava-se peixe a paus e apanhava-se milhares de tainhas cujos cardumes vinham dar à praia e eram enterrados como sobras. Quando o aviãozinho desceu, um grupo logo correu à praia do Cruzeiro e cercou a nave. Hélice parada, os tripulantes desceram, foram guiados por um agitado cortejo popular até a casa do radiotelegrafista da Aéropostale, Gilberto Nogueira Brandão. Antoine e Chauchat queriam ficar hospedados em sua casa, mas o telegrafista não tinha acomodação suficiente. A partir daí, Antoine e Chauchat foram considerados hóspedes oficiais da cidade, pelo então prefeito Deolindo de Oliveira Santos (aliás, tio do historiador “Seu” Filhinho) e levados para o Hotel Felipe, de pau-a-pique, porém de linhas coloniais, hoje já demolido.
Os ilustres visitantes viveram uma noite memorável, regadas por duas garrafas de um inesquecível vinho Sauternes, raro e caro até mesmo na França. Após o justo sono, os franceses, bem cedinho, no dia seguinte voltaram à praia, com o propósito de retirar do avião uma parte do combustível, ofertados à população, facilitando a decolagem. Os moradores chegaram com todo o tipo de vasilhame, de latas até penicos. Depois todos, com compreensível entusiasmo, testemunharam o pequeno avião – um Latecoère – correr pela praia, até que o aparelho adquirisse velocidade suficiente para decolar. “Tomou sul, após uma suave evolução sobre a baía de Ubatuba.” A cena jamais seria esquecida, incorporou-se ao folclore local. A crônica ubatubense registra ainda dois outros casos de ruidosas descidas de aviões em suas praias, mas nada que provocasse o mesmo frisson.
O tempo passou, e a obra “O Pequeno Príncipe” ficou famosa no mundo inteiro, escrita pelo francês, aviador, Antoine de Saint-Exupéry (1900 – 1944). Como os antigos sabiam que Saint Exupéry havia vivido por 2 anos em Buenos Aires e que tinha estado no Brasil algumas vezes, especialmente na região sul de nosso país, não tiveram dúvida, aquele Antoine foi imediatamente dado como Antoine de Saint-Exupéry, o famoso aviador e autor de “O Pequeno Príncipe”, livro que provocaria erupções de sensibilidade banal em vários cantos do mundo, incluindo as passarelas por onde desfilavam as candidatas a miss Brasil.
O sr. Washington de Oliveira, o “Filhinho”, que mais tarde ocuparia duas vezes a prefeitura da cidade e se tornaria seu principal historiador, foi também, sem qualquer má intenção, uma espécie de cultor e divulgador de um mito que Ubatuba teve como verdade durante 52 anos. O de que, após a visita do alemão Hans Staden mais de quatro séculos antes, a cidade recebera outro visitante internacionalmente célebre: Antoine de Saint-Exupéry.
Luiz Ernesto Kawall, Léon Antoine e Célia Regina
A lenda sendo desfeita por Luiz Ernesto Kawall
Tornada pública a partir de 1964 por uma série de reportagens do jornalista Ewaldo Dantas Ferreira, a inusitada visita de Saint-Exupéry passou quase imediatamente a ser pesquisada por Luiz Ernesto Kawall, que tornou-se, então, conhecedor da obra e da vida deste francês nascido em 1900 e cujo avião desapareceu sobre o mar do Mediterrâneo no dia 31 de julho de 1944, entre Grenoble e Annecy, depois de haver partido de um campo de pouso na Córsega. Soube-se depois que seu avião foi abatido pela artilharia alemã. “Não encontrei na obra do escritor nenhuma referência ao incidente em Ubatuba; suas maiores referências ao Brasil estão contidas no capítulo 13 de Voo Noturno, onde fala sobre as montanhas ‘recortadas com nitidez no céu brilhante’, das florestas ‘sobre as quais brilham incessantemente, sem lhes dar cor, os raios do luar’ e de ‘uma lua sem desgaste: uma fonte de luz’”.
Por depoimentos, sem nenhuma imagem, especula-se sobre a presença de Saint-Exupéry em Natal, na Praia Grande, em Itaipava, em Pelotas e Porto Alegre. Mas a descida em Ubatuba tornou-se um mito tão forte que envolveu, ou foi corroborado, até por uma especialista imbatível na biografia do escritor-piloto-aventureiro, a dominicana irmã Rosa Maria. Ela ficou nacionalmente conhecida ao responder sobre Saint-Exupéry no programa O Céu É o Limite, tendo depois disto escrito um livro sobre ele. No prefácio fazia referências a pousos forçados em Santos, Praia Grande e Ubatuba. Mas, Kawall explica, irmã Rosa Maria foi das primeiras a alertá-lo de que Ubatuba tinha poucas possibilidades de ter sido pelo menos uma vez incluída em seus roteiros.
Kawall, entre muitas outras pessoas, foi ouvir em Ubatuba, dona Isabel de Oliveira Santos, viúva do prefeito Deolindo, que considerou os acidentados franceses hóspedes oficiais. O raro vinho Sauternes servido a Antoine e seu companheiro foi possível por ser Deolindo “um comerciante que tinha em sua casa, vinhos de várias partes do mundo, especialmente franceses e portugueses, importava das casas de São Paulo e Rio de Janeiro…” Dona Isabel não se lembra bem dos aviadores no depoimento, tomado em agosto de 1973, mas conta que “eles devem ter se hospedado no Hotel Felipe, que ficava defronte da nossa casa, na Rua Maria Alves e era o melhor e mais antigo de Ubatuba”.
Pouso do avião em 1933 em Ubatuba
Entre as respostas, a de que “as fotos enviadas não são de Saint-Exupéry” e “Saint-Exupéry nunca teve acidente no Brasil”. E completava: “Achando muito simpática sua pesquisa sobre um episódio acontecido em Ubatuba, tenho grande prazer em completar as informações solicitadas. O avião que pousou naquela cidade em 1933 era pilotado pelo veterano comandante Leon Antoine, acompanhado pelo radiotelegrafista Chauchat.
Aquele aviador não se tratava de Saint-Exupéry, mas a notícia interessante foi que o mesmo era outro ícone da aviação francesa: Léon Antoine. Um dos grandes ases da aviação francesa em todos os tempos, com mais de 21 mil horas de voo, recordista mundial de voo livre com um tempo de oito horas e 20 minutos, detentor da Legião de Honra.
A pesquisa estava terminada, ou quase. Luiz Ernesto Kawall decidiu então que tudo só ficaria completo depois de um encontro com o próprio Léon Antoine, sobre quem Fleury informara estar vivendo no Brasil (que coincidência!), desde que se aposentara na Air France. Antoine, casado, pela segunda vez, com Célia Regina, uma brasileira, de fato morava num sítio em Barão de Javari, no interior fluminense – RJ. Em 1985, aos 84 anos, pai de dois filhos, cinco netos e dois bisnetos, adorava o Brasil e permanecia um admirador de bons vinhos. Reconheceu imediatamente as fotografias feitas em Ubatuba do seu avião Late 26. Já havia pilotado todos os tipos de avião, do primitivo Brequet-14 até o Super G Constellation. Seu relato sobre o episódio:
Nossa próxima parada seria Praia Grande, mas na altura de Ubatuba a cerração impediu o voo visual. Nós nos guiávamos por carta da Marinha do Brasil, sempre observando os faróis e os homens da empresa acendiam fogueiras nos pousos de Praia Grande, Florianópolis e Pelotas para nos orientar. Com a cerração fechando o visual, baixamos um pouco e avistamos a torre da igreja de Ubatuba. Fizemos um voo em círculo, escolhemos uma praia onde a vegetação era rala e decidimos descer. Fomos imediatamente cercados pelo povo, alguns nos olhávamos como se fôssemos extraterrestres.
Antoine, entre muitas lembranças, conta que na hora da partida o dono do Hotel Felipe lhes ofereceu a compra do estabelecimento, “por seis mil contos, em moeda da época. Deve ter sido por causa do meu nome, Léon Antoine, que mais tarde se passou a acreditar que Saint Exupéry teria dormido na cidade. Eu era mesmo parecido com ele. Não apenas nas feições, mas também pela altura. Só que ele andava mais curvado do que eu. Além disso, Saint-Exupéry nunca fez regularmente a linha para a América do Sul, mas como passou dois anos em Buenos Aires certamente andou por aqui. Não foi meu amigo íntimo, mas eu o conheci bem, era um pouco do mundo da lua. ” O piloto falou a Kawall de sua vontade de rever Ubatuba, o lugar do acidente e as pessoas que lhe prestaram tão fraternal assistência”.
Léon Antoine – Célia Regina e seu filhinho
Léon Antoine, após 52 anos, em 1985, retorna a Ubatuba. Revê os mesmos cenários muito mudados, impossibilitado de hospedar-se no colonial Hotel Felipe, que não existe mais, para abrigar-se sob as sofisticadas quatro estrelas do Palace Hotel. As testemunhas da época são também poucas. Mas lá estava ainda “Seu” Filhinho, o historiador, farmacêutico, ex-prefeito. O homem que ajudara cimentar um mito e que assistia à definitiva destruição do seu atraente mistério. Ubatuba, cujas areias receberam escritos de Anchieta, cujos indígenas foram introduzidos pelo padre Manoel da Nóbrega aos rudimentos do que o Ocidente chama de civilização, cujas paisagens extasiaram o alemão Hans Staden, teria de abrir mão de sua mais palpitante história contemporânea: o autor da obra O Pequeno Príncipe jamais passou uma noite no Hotel Felipe. Pronto, a lenda estava desfeita!
FONTE : Fonte de informações: Edição de textos e fotos após consulta a Luiz Ernesto Kawall, em julho de 2015, a partir de reportagem de Edmar Pereira, publicada no Jornal da Tarde em 11/1/1986 . https://ubatubense.blogspot.com/2016/09/leon-antoine-ou-antoine-de-saint.html
https://www.curiosidadesdeubatuba.com.br/antoine-de-saint-exupery/
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