CAUSOS CAIÇARAS de Julinho Mendes
O MILAGRE DO CANTO dos GUETES
De mãos dadas caminhavam pela praia deserta. Ele, com calça de brim dobrada até as canelas, sem camisas e com chapéu de palha na cabeça. Nela, uma saia de rendas descia-lhe abaixo dos joelhos, descalça, usava um lenço florido na cabeça. Seus passos ziguezagueados nas areias, a cada onda o mar os guardavam. No voltar das ondas, numa luta contra a correnteza, as tatuíras brotavam das areias, e guaruçás feitos gemas de ovos corriam desesperadamente escondendo-se em seus buracos. De repente um toque nos cabelos, um agarro na cintura... Continuavam a caminhar ao soprar da brisa, ao calor do sol.
-Que peixe é esse? –Por que morreu? perguntou Helena.
-É um guete! -Morreu de tanto cantar! respondeu João.
-Peixe que canta ? admira-se Helena.
-Sim, tem peixe que canta!
Em passos lentos e cheios de gestos, João conta à Helena dos peixes que cantam...
Num indecifrável segmento geométrico, cruza-lhes o passeio uma linda borboleta amarela que se desfaz no horizonte do mar. “O mar que trouxe o guete, levou a borboleta” Poetizam... Param...
Um abraço
... Um longo beijo...Caminham mais um pouco... Agora, no sentido oposto, uma outra borboleta deixam-lhes zonzos. Também amarela, esta borboleta mistura-se aos frutos amarelos do abricoeiro na beira do jundú. Foi um convite; o abricoeiro saciam-lhes a fome... e na sombra gostosa do abricoeiro, saciaram-se de amor...
Dera luz a um menino. Nascera entre gemidos e remadas, marolas e respingos, no fundo da canoa “bailarina” em pleno mar revolto, na travessia da ilha Vitória para o continente.
Chamou-se Victório, um lindo menino de olhos azuis... Não se assustava com trovoadas, com os gritos dos tiribas e nem com o latir da sureca, a cachorra de estimação. Remédio não adiantava. Médico não resolvia. Victório era totalmente surdo.
No entralhar de sua rede João vagueia em pensamentos; lembra do milagre, nas histórias do canto do guete, que sua avó sempre contava; lembra de seu santo protetor “São Pedro Pescador”. João pensa em uma promessa...
A silhueta de João em sua canoa antepõe o alvorecer na linha do mar. Helena de joelhos no lagamá da praia, reza pela cura de Victório.
João apoita a canoa. O mar estava inteiramente parado, nem vento nem marolas, a corda da poita não estica, o silêncio é total... Num leve jogo de corpo, João dança, balança a canoa bailarina. Nos braços do pai, Victório dorme feito o próprio mar; suas mãozinhas ainda seguram a imagem de São Pedro Pescador. João reza e viaja em pensamentos... De repente, parecendo que de muito longe ou de muito fundo, vem por de baixo da canoa um melodioso canto que rompe o silêncio... “-Eles estão aí, os guetes estão cantando!!!” Victório acorda sorrindo. João sente o milagre acontecendo.
–Victóóóóório,Victóóóóório!! Num volver de cabeça, Victório ouve pela primeira vez, a voz da mãe, trazida pelo terralão da praia da ilha.
A imagem de São Pedro, devagarzinho submerge as águas do parcel dos guetes. João nunca mais joga suas redes e seus anzóis naquele parcel. “O parcel dos guetes”.
A gaiola do sabiá, do tié, do trinca-ferro, do bonito-terê, do arcaide, do coleira e do tiriba, o viveiro do macuco e até a velha espingarda mocha; serve de lenha na fogueira, na festa de São Pedro Pescador... A cada estalo da folha do abricoeiro e a cada estouro do bambu verde que explodia na fogueira, Victório se assustava no seio da mãe.
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