CAUSOS CAIÇARA de Julinho Mendes via facebook
A corda já estava enrodilhada na proa da “orgulhosa”, juntamente com a poita de pedra. Junto ao banco da frente, o bicheiro garranchado. No balaio os anzóis de esperas e as linhas de escoras. Num outro balaio, meia dúzia de guaiás, uns carapicus já de olhos brancos e ainda umas lulas de três anteontem.
O que restava da lua cheia, estava encravando por detrás da serra. Era hora de sair; se não parasse chegaria no parcel da ilha do Mar Virado um pouco antes de surgir o sol, hora em que as garoupas estariam alvoroçadas. O mar estava manso, porém encrespado, devido o terralão que soprava mar a fora.
Pegou os rolos, desceu a canoa, fez o sinal da cruz e “encanoou”... A canoa fazia bigode, devido a força no remo e o vento soprado na popa. Passando a ponta da espia, o mar espelhou e o clarão escarlate do sol, querendo romper o horizonte, já era visível. Ubaranas triscavam a tona d’água, numa correria apavorada. –É anchova! Vou largar o corrico! Pensou o velho pescador. Ferrou um anzol na cabeça de uma lula e soltou trinta braças de linha. Continuou a remar, agora mais devagar... A linha vinha esticada seguindo a canoa... De repente bambeou; meteu o braço e nada, só veio a cabeça da lula. -Filha da mãe, perdi! Largou outra isca e esperou... Nada. Observou mais próximo à costeira o refolhado das ubaranas; direcionou pra lá silencioso... Viu um riscar de água atrás da isca; não demorou a linha esticou... Meteu a boca; parecia que era dela. Meteu o braço. A bicha sentiu. Tava ferrada e correu de esguelha, saltou, afundou, fazia força, afrouxava ... Tava bem ferrada. Tenteando, tenteando, veio puxando... Era uma grandona, pra mais de doze quilos. Já na borda, meteu o bicheiro na boca da bicha; era uma anchova da cara preta, uma das grandes. –É macuco no borná! Vou escalá prá comer com batata doce! Pensou o velho pescador.
A “orgulhosa” seguiu o destino da garoupa. A linha de corrico seguiu arrasto, mas nada arriscou a tentação. –Talvez fosse uma só ou tinham se espantado com a luta da outra. Tá bom! Pensou.
No parcel da pedra funda, junto a ilha, arriou a poita. Gaivotas, alcatrazes e tesourões faziam círculos lá pras bandas da Anchieta; seria peixe miúdo: sardinhas ou manjubas. Com toda certeza, as anchovas também estariam lá.
Iscou duas linhas: numa um guaiá, noutra um carapicu. Uma linha em cada mão...
No largo do Cedro tava lá uma canoa; podia ser Mané Bento ou Cândido Mesquita, pescando espada, ou talvez ferrando corvina.
A linha mexeu na esquerda, a concentração se fez maior. Era coisa pequena: tiézinho, morceguinho. Concentrado na esquerda, a direita esticou; não deu confiança, meteu a boca e correu pra toca. –Filha da mãe, bobeei, deixei entocar! Era das boas. Tava entocada. –É isso que dá pescar com duas linhadas! Falou, agora em voz alta, pr’aquele mar sem fim ouvir. –Não tem nada, você vai sair! Esticou a linha e amarrou no banco da canoa; a orgulhosa travou: Na proa a corda da poita e na popa a linha com a garoupa entocada.
A linha da esquerda, agora tava na direita e continuava a mexer, passando em seguida a se movimentar e a puxar a linha devagar. –Ou é lagosta ou é polvo!!! Deixou levar... Andou umas duas braças de linha. –Vamos ver o que é! Puxou. O bicho fez resistência, mas veio...Tava pesado. Era coisa grande. –Lagosta não é! Fez força... Chegou na borda e viu. Era polvo, e daquele tamanho nunca tinha visto; pesava mais de quinze quilos. Puxou pra dentro da canoa e foi logo virando o bicho dos avessos, pra não ficar incomodando e fugir. –Você vai ver o refogado com batata e cará que a Malvina vai fazer de você!!!
O sol já tava a três dedos do horizonte. Largou novamente a linha, agora com uma trouxa de lula no anzol. Ali ficou... Olhava a linha reta do horizonte, subia a cabeça na linha do alto da serra, observava as grandezas de Deus. Próximo ao pico do Corcovado passeava uma nuvem com cara de cachorro que logo se desfez, transformando num funil. Na ilha, o canto de um curió dava melodia ao chiado do quebra-mar na costeira.
A bitela ainda estava lá, não desentocava nem com o rangido da caixa de fósforos esfregado na linha, nem com a pressão da maré no casco da canoa. –Se fosse o Candido Mesquita com o filho, ela já tava no balaio! O João é triste; mergulha e tira o bicho à unha! –Não tem nada não, ela se cansa e sai, é só ter paciência! Pensou.
Agora o sol estava a um palmo acima, era oito horas. –Tá enjoada; não tá querendo lula. Vou trocar de isca! Tirou a lula e colocou um guaiá; o bicho se esperneou com a fisgada na carapaça. Foi pro fundo... A linha selou...
Aquela nuvem agora, tava parecendo um pilão deitado, retorcido que nem cabo de arrastão feito de imbé. Caminhava devagar pro norte. Sinal de tempo bom.
A linha deu uma mexida. Talvez seria o guaiá se retorcendo de dor. Pra todo efeito, ficou esperto e pôs sentido... Não demorou o bicho meteu a boca com vontade, parecia que era dela. Ferrou e segurou. Tentou entocar, mas foi em vão. Os braços de Zé Rozendo foram mais fortes; foi criado no pirão, fortalecido na enxada e no remo. Veio vindo, parecia um cacho de banana. Aboiou, tava com o bucho pra fora da boca de tanto fazer força. O bicheiro entrou-lhe pelas guelras... Ia desferrando o anzol, quando sentiu a outra linha afrouxar-se. Num golpe rápido segurou na linha; quase se alagou, chegou até entrar água pelas bordas. Essa foi mais fácil de puxar, estava cansada e era um pouco menor. Aprontou de novo o bicheiro... Sacudiu, fez salseiro... Não adiantava, tava no “sá preso”. Olhou no balaio, tava lá: duas garoupas de aproximadamente sete, oito quilos cada, uma anchovona e o polvo virado dos avessos, parecendo bola de capotão meio mucha.
O sol já lhe ardia os ombros; recolheu a poita, engodou o pesqueiro com o resto das iscas que sobrou e veio embora. Na cadência das remadas, a “orgulhosa” navegava firme e retilínea... Na ponta de espia, avistou o velho guapuruvú, imponente sobre a mata; daria uma canoa e seria sua, já tinha até nome: “Altivo”. Seria sua, assim como a “orgulhosa”; só tava esperando o inverno.
O canto sul do Bonete foi se desvendando... enfrente ao velho rancho observou um movimento de gente... Foi chegando... fez um “agarra-mar” e a canoa lixou o fundo na areia da praia... Uma turma de japoneses se aproximou da canoa para ver a pescaria de Zé Rozendo; era o Tanaka que se aprontava para pescar de lancha em alto mar, juntamente com alguns amigos japoneses. Ao conhecer Zé Rozendo, Tanaka faz uma graça com o velho pescador; pega as garoupas, levanta uma em cada mão e fala: -Ôh seo Zé! Só tinha filhotinho, aonde o senhor pescou estas garoupinhas? A japonesada caiu na gargalhada com a gozação do compatriota. Zé Rozendo foi ao balaio e pegou o polvo que estava virado dos avessos; olhou sorrateiro na cara do japonês e respondeu: -Essas duas garoupinhas ai eu levei de isca; a que eu peguei ficou entocada, e com a força que eu fiz, arranquei o bucho dela! E mostrou aquela bola aos japoneses, que, vendo aquela carne viva, ficaram admirados, e pensando: “-Se o bucho era daquele tamanho, imagine o tamanho da garoupa?”
Zé Rozendo pegou o balaio com quase quarenta e cinco quilos de peixe, ergueu no ombro e foi-se embora, deixando a japonesada boquiabertos e com cara de bobos. De longe ainda falou: -Amanhã eu volto lá para trazer o resto do corpo!!!-------Julinho Mendes – Na véspera de São João – Ubatuba,23/06/2002.-----
Um truque do caiçara pescador quando pega polvo, é virá-lo dos avessos, ou seja, virar o saco que ele tem acima dos olhos, ensacando o resto do corpo, ficando uma bola só, imobilizando o pobre octopo.
Tiézinhos e morceguinhos, são os apelidos que os caiçaras dão às garoupinhas em desenvolvimento. O pescador consciente deve devolver ao mar para que possa crescer e atingir tamanho comercial.
Fazer bigode na canoa é remar com velocidade de forma que a quilha da popa jogue água pelas laterais.
Sá Preso é um prato da culinária caiçara, onde, principalmente a garoupa é salgada de um dia para o outro para pegar sal.
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