CAUSOS CAIÇARA de Julinho Mendes
BENDITO PACA, BENDITO COTIA...
Vivia-se da pesca, da caça, da lavoura,... Era simples, mas se vivia muito bem e totalmente saudável, nunca passaram fome, necessidade ou coisa assim. A única coisa que era preciso comprar era o sal, o querosene, um tecido para roupa; o resto vinha da terra, do suor, do trabalho. Levantavam as quatro, cinco horas da manhã... O trabalho era duro: Roçar o mato, queimar, destocar, arar a terra, plantar, esperar a colheita, bater o feijão, socar o milho, fornear a farinha,…
Também a rede estava no mar; era acordar, tomar o café intirume, rolar a canoa, remar, tomar o terralão no peito, puxar a rede, tirar o peixe, consertar, escalar, vender... Já às dez, onze horas, a barriga já dava seu sinal... Era hora de comer. O cheiro da paca cozia ou do roncador ensopado fazia o bucho retorcer, as pernas atropelava os passos e a vontade de comer era tamanha...
Na mesa estava o arroz soltinho, o feijão fumegando, refogado de taioba, a cuia de farinha, o copo d’água, a mistura que um dia era: bicho do mato, outro dia peixe do mar; vez outra era uma galinha ou um pato do quintal.
Uma água nas mãos, um refresco no rosto,... Um beijo na mulher e um abraço nos filhos empencados no colo....
A barriga fazia briga. Podia doer, podia reclamar, mas antes, porém, o agradecimento ao pão e a água, a saúde e a vida: “Pai nosso que estai no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós e ao vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos daí hoje, perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos àqueles que nos tenham ofendido. Não deixeis cair em tentação e livrai-nos do mau. Amem”. –Obrigado senhor por mais esse dia, por essa família, por esse alimento e por essa água. Obrigado meu pai!
Ai sim era hora: Duas conchas de feijão, meia cuia de farinha, arroz por cima, folhas de taioba refogada e a mistura completava o prato. Entre uma colherada e outra, o sorriso das crianças, a conversa com a mulher, os fatos, os boatos, os causos.
No balanço da varanda, o cheiro da flor de laranjeira, o canto do sabiá,... o cochilo, o sonho.
A rotina era aquela; as vezes uma festa: o Chiba, o São Gonçalo, São Pedro. Gostava de piar macuco e correr paca com cachorro. Fazia Balaio, fazia gaiola. A rotina era aquela... O tempo passou.
O peso da idade já não lhe permitia caçar. O velho cachorro de caça morreu, o guapuruvú secou. As crianças cresceram, casaram e foram viver suas vidas. Quase todos; apenas o caçula ficou.
Juca ficou. Não era de trabalho, não gostava de estudo, não queria responsabilidade, não aprendeu os ensinamentos do pai e nem a educação da mãe. Maltratava o pai, maltratava a mãe. Era rebelde...
Na mesa já não tinha mais a paca caçada e nem o roncador pescado, mas tinha a galinha do terreiro, o porquinho do chiqueiro, o feijão e o arroz nunca faltaram. Na mesa permanecia o Pai Nosso, a satisfação e agora tinha a rebeldia de Juca, que na mesa fazia desfeita e caçoava: “-Bendito paca/ Bendito cotia/ Se mais tivesse mais eu comia; como não tem, se passa o dia.” “Bendito sargo/ Bendito corvina/ Se mais tivesse mais eu comia; como não tem, se passa o dia.” - Eram essas as preces de Juca, todos os dias.
O pai pedia perdão pelo filho. A mãe rezava de terço nas mãos.
“-Bendito paca/ Bendito cotia/ Se mais tivesse mais eu comia; como não tem, se passa o dia. ...”
-Olha filho! Não fale isso que vais receber um castigo! Isso é pecado!
“-Bendito paca/ Bendito cotia/ Se mais tivesse mais eu comia; como não tem se passa o dia. ...”
Um dia aconteceu... “-Bendito paca/ Bendito cotia/ Se… A porta se abriu e uma rajada de vento entrou jogando Juca, com cadeira e tudo contra a parede. Ali ficou: sem fala e sem movimento; não piscava, não sorria, não chorava. Arregalado ficou... Por seis horas ficou naquela penumbra. Nem o pai, nem a mãe puseram-lhes as mãos. Seis horas naquela posição. A mãe chorava e o pai sofria calado, porém, sabiam que aquele acontecido era coisa do reino de Deus... foi um castigo que só foi desfeito com as rezas das 18 horas, a hora sagrada, que do mesmo jeito, um outro vento, agora mais suave, entrou porta adentro batendo no rosto do rapaz; Juca se levantou, beijou o pai, abraçou a mãe e falou: -Pai, hoje Eu rezo o Pai Nosso!
No outro dia, antes do sol raiar, lá estava Juca, junto ao velho pai, na capina do roçado, na fornada da farinha, na corrida da paca, na pesca do roncador... Fazia balaio, fazia gaiola,... dançava chiba, promessava São Gonçalo, festejava São Pedro pescador. Juca passou a ser o filho amigo e companheiro, passou a viver em cuidados e dedicação aos velhos pais.
(Esse causo foi-me verbalmente contado pela minha mãe, que diz ser verídico acontecido em uma família no bairro do Perequê-Mirim).-----
Texto de Julinho Mendes-----vua facebook
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