CHACINA NA ILHA ANCHIETA...
- Arquivo Vivo
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Percival de Souza
Caso aconteceu durante nos anos 50 na Ilha Anchieta, na cidade litorânea de Ubatuba, no Estado de São Paulo
Não se trata, aqui, de comparar histórias sinistras de carnificina, e sim destacar dois emblemáticos personagens da Anchieta, sufocados pela História. Um deles, João Pereira Lima, foi o líder da rebelião na Ilha Anchieta, sendo considerado à época uma espécie de inimigo público número 1. Outro foi Javert de Andrade, promotor público escolhido para ser o diretor de uma ideia inovadora no final dos anos 50 — as colônias penas agrícolas, criadas em 1957 pelo então governador Jânio Quadros. A de Javert ficava em São José do Rio Preto, e hoje se chama Centro de Progressão Penitenciária. As outras duas colônias foram instaladas em Bauru e Itapetininga — esta, desapareceu. Faz sentido: a população carcerária de hoje é predominantemente urbana, nada tem a ver com as enxadas e plantios rurais do passado.
Ninguém queria saber de ter Pereira Lima por perto. O rebelde sangrento era um estigma. Apenas um homem acreditou na sua regeneração: Javert. Incrível. Igualmente incrível: mesmo sendo o único benfeitor de Pereira Lima, Javert foi assassinado pela serpente que ousou agasalhar. E dentro da colônia agrícola. Por quê? Mistérios indecifráveis da alma humana. E minha paixão literária traz em paralelo o extraordinário livro Os Miseráveis, de Victor Hugo. Vamos, então, conciliar literatura, o espetáculo das palavras, com os fatos. É tudo emocionante.
Da obra de Hugo, emergem dois personagens principais: o inspetor Javert e o ladrão de pães Jean Valjean, que cumpre pena de vinte anos de trabalhos forçados. Solto, vai para um vilarejo, onde o bispo local, Myriel, lhe dá abrigo para passar uma noite. Valjean desaparece dali levando seis colheres de prata do bispo. Javert, implacável, prende Valjean e vai à presença do piedoso bispo. O religioso surpreende o inspetor: diz ao policial que, na verdade, havia dado as colheres a Valjean. Uma atitude bela e generosa, a compaixão, a misericórdia: Jean Valjean, atônito, passa a dedicar-se à prática do bem. Torna-se um próspero empresário. O bispo que o perdoou conforta-o: Jean, meu amigo, você não pertence ao mal, você é o messias de uma nova fraternidade”. Javert, contudo, não o esquece.
Pereira Lima não era exatamente um Valjean da vida real, mas foi assim que tentaram pintar o seu perfil de protagonista de fantástica metamorfose. Tanto que Jânio Quadros levou a Rio Preto o grande jurista Nelson Hungria, pai do nosso Código Penal, para conhecer Pereira Lima. Jânio posou para uma foto ao lado de Lima, apontando-o como “exemplo de recuperação”. Muito forte isto, porque Lima era apontado como “monstro”, sanguinário, insensível, psicopata. Hungria fez um discurso empolgante na colônia de Rio Preto. Após o assassinato de Javert, Lima transformou-se no recordista brasileiro de permanência no cárcere, 32 anos, perdendo - somente agora - para Francisco Costa Rocha, o esquartejador de mulheres famoso como Chico Picadinho.
Vista aérea da prisão na Ilha Anchieta (Ubatuba)
Foto: Reprodução/Revista London NewsParecia difícil, impossível.
No julgamento de Lima, uma importantíssima testemunha de defesa: o promotor Javert de Andrade. Incisivo: “Lima é um exemplo da recuperação do homem”. Acusação: o assassinato de três soldados da Força Pública. O advogado Leonardo Frankenthal conseguiu a absolvição. O promotor Eduardo Gallo recorreu e em novo julgamento Lima foi condenado a trintas anos. Círculos do destino: anos adiante, o promotor Gallo, que o acusou, matou a facadas a mulher Margot, mãe da atriz Maetê Proença. No júri de Gallo, quem o defendeu foi Frankenthal, o mesmo advogado de Pereira Lima. Em agosto de 1961, nove anos depois da rebelião, o grande protetor de Lima, Javert, foi morto por ele com quatro tiros de revólver, dentro da colônia penal da qual era diretor.
Por quê? Lima sempre preferiu silenciar sobre isso. Mas eu vou contar como foi, graças a Luiz Camargo Holfmann, o meu amigo Luizão, assistente penal em Rio Preto na ocasião do crime e futuramente diretor da Casa de Detenção, que foi o maior presídio da América Latina. Lima adquiriu status difícil para um preso conquistar. Uma vedete do sistema penitenciário de São Paulo. Javert o colocou como encarregado da olaria da colônia. Concedia a ele várias regalias. Tinha autorização para trabalhar com um trator e assim percorrer toda a colônia. Engendrou um plano de fuga, temeroso com um processo em que era acusado de matar soldados na rebelião da Anchieta e teria de ser escoltado por soldados da Força Pública para o julgamento. Na cabeça de Lima, eles iriam querer vingar os companheiros. A cena do crime: três tiros em Javert e o quarto no coração para conferir. Estava morto Javert. Ódio inexplicável, sistema penal em desgraça, bom tratamento ridicularizado. Javert virou nome da Colonia Agrícola e nome de rua (Jardim Santo Amaro) em São Paulo.
Rebelião em Ubatuba foi notícia em vários países do mundo
Foto: Reprodução/Paris Matchsecretário de Administração Penitenciária, Lourival Gomes, afirmou que ele foi referência no sistema. Exagerou ao dizer que eu seria o único jornalista em condições de falar sobre o sistema prisional. Constrangido, fiz a minha fala olhando para Gilda, advogada filha de Javert, na ocasião do crime uma menininha que brincava com outras crianças, filhas de reeducandos. Emocionou-me descrever essas cenas.
No livro Os Miseráveis, leitura apaixonante, histórias se entrelaçam. Lances teatrais, há uma ópera musical espetacular, que assiste na Broadway, em Nova York. Entrelaçamentos na vida real: Javert do romance se mata por não entender o objeto da sua obsessão; Jean Valjean, convertido pela piedade do bispo Myriel, inicia uma vida nova com novo nome: monsieur Madeleine; o Gallo, o promotor acusador, mata a mulher e também se mata; Lima não absorve as virtudes de Valjean e volta ao crime, muito além de roubar um pão; Javert real é morto dos 42 anos de idade. Colega de Faculdade de Jânio Quadros e Ulysses Guimarães, foi alguém que, como Goethe, amou sonhar o impossível; Hugo está no patamar dos grandes escritores - como Dostoievski, conseguiu ir bem ao fundo da alma humana.
FONTE.........https://noticias.r7.com/prisma/arquivo-vivo/os-miseraveis-como-o-preso-perigoso-matou-javert-seu-protetor-05092018
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