Ilust: Maria Edna de Souza
Era meu pai que mandava, pois na época ele já era um comilão daqueles. Também o nosso jantar ficava infalivelmente pronto ás dezoito horas, e as vinte e uma, já dava aquela vontade de comer de novo. Ainda mais com aquele friozinho irritante...
Maria era eu, uma magricela de oito anos que já sabia fazer o serviço de casa,inclusive destroncar o pescoço daqueles frangos gordos, bonitos, que dava um trabalho para pegar.
Só, à tardinha, quando a galinhada procurava o galinheiro bem fechado, por causadas raposas e gambás, é que a gente conseguia.
Eu protestei, pois já estava muito escuro e a dispensa era longe.
-Menina, disse ele, onde já se viu, uma moça do seu tamanho com medo de quê?Lobisomem? Mula sem cabeça? Ora , isso não existe.
Mas eu já tinha ouvido muitas conversas dos colonos, coisa de arrepiar os cabelos.
E o sino que se ouvia à meia-noite em lua cheia de sexta-feira? E os gemidos dos escravos, que o tio avô de papai maltratava, pois a fazenda havia sido dele.
Lá fui eu, lamparina numa das mãos, e a outra em concha, para que a chama não se apagasse com todo aquele vento que entrava pelas telhas vãs e pelas frestas do assoalho, por onde caía toda sorte de objetos: tesouras, talheres, botões, moedas, até meu espelhinho com moldura dourada, que o meu irmão conseguiu empurrar pela fresta maior.
E fui avançando na ponta dos pés pela sala de jantar, depois por aquele enorme salão, o mais feio, comprido, maltratado, que ficava nos fundos da casa e dava acesso á cozinha. Virando à esquerda, desci dois degraus da despensa tijolada com janelas que tinham barras de madeira, por que não sei, pois dava para um pátio tão alto, que só um gigante alcançaria.
Voejavam alguns morcegos, mas esses eu conhecia de longa data. Tremendo toda e preocupada para que não se apagasse a luz, comecei a ouvir um ruído que me pareceu horrível. Que seria, meu Deus? E vinha do canto mais escuro da despensa. Lá se ouvia de tudo: um forno á lenha, onde minha mãe preparava o nosso pão, uma vez por semana; postas de toucinho salgado e lingüiças em gomos penduradas num varal de bambu; prateleiras cheias de sabão feito de barrigada de porco, cinza e soda; cachos de bananas, agasalhados em palha de milho, para que amadurecessem logo; ferramentas e muitas coisas mais, uma verdadeira parafernália.
O ruído aumentava, e com ele o meu pavor, suava frio, meus dentes batiam, mas enfrentei o monstro muito devagarinho, quando a chama da lamparina atingiu o jacá, no cantinho escuro, vi a coisa mais linda, para os meus olhos acostumados com tudo o que se referia á vida na roça.
Uma galinha carijó, dormindo e a cabecinha do pintinho emergindo por entre as penas da asa de sua mãe, com olhinhos brilhando, olhando para mim e piando muito de mansinho, como a pedir que não o incomodasse. Senti uma ternura tão grande, uma emoção fortíssima que fez brotarem lágrimas nos olhos.
Saí devagarinho, pensando na vida. Logo, logo o pintinho viraria um frangão, esqueceria a mãe, iria ciscar lá longe no fundo do pomar, para mais tarde entrar na panela.
Dirce Marangoni
Dirce Marangoni
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