Muitos anos depois do desaparecimento de frei
Bartolomeu, (ver a Lenda do Corcovado – Frei
Bartolomeu), o capitão Manoel Fernandes Corrêa instalou uma
belíssima fazenda na Praia Dura.
Um dia, Alice, filha única do capitão Corrêa, saiu
à caça nas proximidades. Vendo-se só, longe da vista severa do pai, admirando o
cenário belíssimo que se deparava aos seus olhos virgens de tanta maravilha,
embrenhou-se incautamente pela mata. Súbito, um medo vago e inexplicável
percorreu aquele corpo misto de anjo e de mulher. Quis voltar mas compreendeu
que estava perdida. Correu, gritou, sentiu faltarem-lhe as forças, e espinhos
aduncos rasgaram-lhe as carnes alabastrinas. Um último esforço e caiu
desfalecida.
Ao cair da noite, quando o sino melancólico da
fazenda chamava do eito os escravos para a ceia, era indescritível o desespero
do capitão Corrêa pelo desaparecimento da filha. Mandou reunir a turba negra e,
pela primeira vez suplicante e dócil, o impiedoso senhor proclamou que daria
liberdade imediata ao servo que lhe trouxesse, com a maior rapidez possível,
sua querida Alice.
Nenhum crédito deram os escravos àquelas palavras
brotadas de um coração empedernido, momentaneamente compungido com o
desaparecimento da filha, mas a adoração que dedicavam a Alice, angelical e
bondosa criatura, fez daqueles homens exaustos umas feras bravias.
Sem tomar alimento algum cada qual partiu para um
lado, sem esperança de recompensa, mas querendo ser o primeiro a beijar a mão
da “Nina Alice”. Pedro, um escravo robusto, forte, parou repentinamente na
corrida em que ia. Sua idéia embrutecida vagueou procurando recordar-se da
companheira amada e de uma filhinha de dois anos de idade, que o impiedoso
capitão vendera, por castigo! Quis esconder-se e voltar no dia seguinte “sem
notícias de nina Alice”, mas… – Alice! – esse nome repelia a idéia de vingança
que fervia em seu cérebro inculto, porém, compreensivo. Odiava o pai mas
adorava a filha. A adoração venceu. Enxugou as lágrimas que lhe corriam pelas
faces retintas e reencetou a busca interrompida há pouco.
Cansado, parou. Sentou-se um pouco para
reanimar-se, mas foi logo atraído por um farfalhar de folhas secas acompanhado
de um gemido surdo e prolongado, partido de pouca distância. Aproximando-se
cautelosamente percebeu estendido no chão um vulto alvo de mulher, mal
distinguido na escuridão da noite.
– Nina Alice! – esclamou o negro com sua voz
fanhosa e forte.
– Oh, salva-me! Tira-me daqui… Quem é? Meu pai? Luz… Quero luz…
– Oh, salva-me! Tira-me daqui… Quem é? Meu pai? Luz… Quero luz…
Horas depois, nos robustos e retintos braços de
Pedro, Alice subia os degraus da “Casa Grande”.
Horrores da escravidão! No dia seguinte, Pedro, exausto pelo esforço despendido durante a noite, gemia sob açoites, no tronco, porque não podia trabalhar.
Horrores da escravidão! No dia seguinte, Pedro, exausto pelo esforço despendido durante a noite, gemia sob açoites, no tronco, porque não podia trabalhar.
Alice, sabendo o que se passava com o seu salvador,
exigiu do pai o que na véspera prometera espontaneamente. Liberto, Pedro beijou
as mãos de “Nina Santa” e partiu sem destino, para os lados do Corcovado, e lá
instalou sua choça, ao lado de uma cascatinha murmurante, próxima, bem próxima
da escarpa misteriosa
Corria de boca em boca a aventura
de “Pai Pedro”. O negro vinha sempre a Ubatuba com pequenos canudos de bambu
cheios de grânulos auríferos, que trocava por fumo, cachaça e alguns gêneros
com os quais assegurava sua subsistência. Essa notícia foi bater também na
fazenda do capitão Corrêa, que duvidava do que lhe diziam, mas, um dia, ele
mesmo viu na vila as negociações que eram propaladas. Cheio de inveja e cobiça,
pensou logo em se apoderar do tesouro do negro. Certa noite, em companhia de um
grupo armado, foi à choça de Pedro, capturando seu ex-escravo e levando-o para
a sua fazenda. Ali chegando, sem mais delonga, Pedro era premido a contar como
descobrira aquele fabuloso tesouro.
–
Sinhô, Pedro num pode cuntá, pruque…
Uma
violenta chicotada estalou nas faces já rugosas do mártir, cortando-lhe a
frase. Depois, novas torturas, imprecações, terríveis ameaças, até que Pedro
resolveu iniciar a narrativa, na linguagem carregada e fanhosa, toda peculiar
aos negros africanos. Disse que foi morar no sítio solitário onde o
encontraram, bendizendo sempre o nome de Alice, até que um dia, na vila, veio a
saber da morte da moça, sua libertadora. De volta à choça, um profundo pesar
oprimia-o todo. Pedro parou para disfarçar um soluço e enxugar uma lágrima, ao
que o capitão esbravejou:
–
Continua, bandido!
E
Pedro continuava, trêmulo, acovardado.
À noite não conseguira dormir, parecendo-lhe ouvir ao longe a voz cristalina da moça numa canção de amor. De repente a porta do casebre tremeu e escancarou-se, penetrando por ela um vulto diáfano de mulher. Era Alice! Ele a reconheceu. Como que agarrado por mãos invisíveis, não se pôde mover no lugar em que se achava, mas ouviu perfeitamente a visão dizer:
À noite não conseguira dormir, parecendo-lhe ouvir ao longe a voz cristalina da moça numa canção de amor. De repente a porta do casebre tremeu e escancarou-se, penetrando por ela um vulto diáfano de mulher. Era Alice! Ele a reconheceu. Como que agarrado por mãos invisíveis, não se pôde mover no lugar em que se achava, mas ouviu perfeitamente a visão dizer:
–
Pedro, tu foste um dia o meu salvador. Dei-te a liberdade, mas sei que sofres,
neste exílio onde te arrojou a impiedade de meu pai. Não te assustes e ouve-me.
Não muito longe daqui, oculto nas entranhas da terra, existe uma mina de ouro.
Ela será tua sob a única condição de nunca revelares a outrem esse lugar
cobiçado. Se isso tentares, a vingança do gênio protetor da mina cairá sobre
tua cabeça, ouviste? Cuidado, pois, e segue meus passos.
–
Negro maldito! – gritou o capitão – não retardes a revelação. Onde está o
tesouro?
–
Sinhô… tá lá pra banda do…
E
o surdo ruído do baque de um corpo ecoou na sala da “Casa Grande”. Pedro caira
morto, fulminado, antes de revelar o sítio misterioso de tão cobiçado tesouro,
que até hoje jaz nas proximidades do Corcovado.
Pedro bem dizia: – Negro num pode cuntá…
Pedro bem dizia: – Negro num pode cuntá…
Fonte: Narração de Washington de Oliveira (“Seu Filhinho”), extraída do livro “Ubatuba, lendas e outras
histórias”
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