quinta-feira, 4 de maio de 2017

OS BARÕES PIRATAS QUE VENDIAM GENTE .....







FELÍCIO – Sr. Negreiro, a quem pertence o brigue Veloz Espadarte, aprisionado ontem junto
a Fortaleza de Santa Cruz pelo cruzeiro inglês, por ter ao seu bordo trezentos africanos?
NEGREIRO – A um pobre diabo que está quase maluco… Mas é bem feito, para não ser tolo.
Quem é que neste tempo manda entrar pela barra um navio com semelhante carregação? Só
um pedaço de asno. Há por ai alem uma costa tão longa e algumas autoridades tão
condescendentes!…
*TRECHO DA PEÇA “OS DOIS” OU “O MAQUINISTA INGLÊS”, DE MARTINS PENA, 1842



As respostas para um enigma da história do Brasil podem estar em Ubatuba, nas Ruínas da Lagoinha e nas da Praia da Lagoa.
As ruínas da Lagoinha eram a antiga sede da fazenda 
 Brajahimerinduba, que, no início do século XIX, não passava de uma decadente fazenda de cachaça e subsistência com poucos escravos, mas que, a partir de 1828, se torna um engenho escola com mais de 300 negros forçados a trabalhar para produzir, pela primeira vez no Brasil, o açúcar cristal, que na época era mais caro que o mascavo.








Até bem pouco, a historiografia não explicava como os engenhos e as fazendas de café do litoral e do interior paulista conseguiram aumentar tão rápido seu ‘‘plantel’’, mesmo diante dos primeiros esforços de autoridades brasileiras e britânicas para acabar com o comércio de seres humanos da África para o Brasil.
O fim total do tráfico negreiro até antes de 1830 era uma exigência da Inglaterra para reconhecer a independência do Brasil e intermediar o reconhecimento por outros países. O tratado equiparava o tráfico de escravos ao crime de pirataria.

Mas a lei foi ‘‘só para inglês ver’’, basta notar que o total de escravos em Ubatuba praticamente dobrou entre 1822 e 1830, saltando de 1.149 para 2.028. A partir dessa data, não temos os dados sobre quantas pessoas moravam em Ubatuba e nem quem eram elas. Esses documentos estão desaparecidos do Arquivo Público do Estado. Também faltam as fichas de Ubatuba dos anos 1836 e 1837.
Sabemos, porém, que a partir de 1831, a entrada de africanos no Brasil aumenta exponencialmente, para abastecer as fazendas de café em São Paulo. Mas como isso foi possível se a marinha mais poderosa do mundo, a inglesa, estava empenhada em acabar com o tráfico?






Ruínas da Praia da Lagoa (Foto: InforMar Ubatuba)



PISTAS E NOMES
Antes de começar minha busca com fontes primárias ‘novas’, fomos à Biblioteca Pública Municipal ‘‘Ateneu Ubatubense’’, estudar o que já fora escrito sobre a Ubatuba do século retrasado.
O primeiro autor a que recorri foi Felix Guizard (*1890 + 1964), que em 1940 escreveu o livro ‘‘Ubatuba’’. Sabia que ele me ajudaria desde que eu não perdesse de vista que Guizard não era um historiador profissional, e sim um político e empresário herdeiro de fortuna escravocrata.
Ainda assim, ajudou, pois em seu livro transcreveu fontes importantes: a primeira delas é um inquérito de 1838 contra o então proprietário da Fazenda Tabatinga, José Bernardino de Sá, denunciado na secretaria de polícia do Rio de Janeiro por ter feito do local um ‘‘frequentado porto de desembarque de africanos buçais, tendo constrohido nella hua especie de forte de madeira guarnecido por colonos e outras mais pessoas de artilharia para defender seu contrabando’’.
O juiz de Paz, José Claudia-no Viegas, fez diligências ao local acompanhado de força policial e do oficial de Justiça. Mas relataram que no local nada encontraram além de uma fazenda de café. No entanto, os quilombolas da região dizem que seus ancestrais contavam ter estado cativos ali.
Correspondências do ministério da Justiça preservadas pelo Arquivo Público do Espírito Santo revelam que Sá continuou traficando até mesmo depois da lei Eusébio de Queirós, de 1850.


GAINER – Sim. Estou redigindo um documento para as deputados.
NEGREIRO e CLEMÊNCIA – Oh!
FELÍCIO – Sem indiscrição: Não podemos saber…
GAINER – Pois não! Eu peça na requerimento um privilegio por trinta anos para açúcar de
osso.
TODOS – Açúcar de osso!
*TRECHO DA PEÇA “OS DOIS” OU “O MAQUINISTA INGLÊS”, DE MARTINS PENA, 1842


AÇÚCAR DE OSSO
Outra fonte cuja cópia podemos encontrar na Biblioteca Municipal graças às apensas de Guizard é a oferta de ações do engenho Brajahimerinduba em 1827. Graças a esse documento, conhecemos Jean Augustine Stevenin, um rico francês que comprara a fazenda já com os barracões construídos.
Stevenin busca investidores para serem seus sócios e apresenta o plano de um negócio inovador: produzir anualmente até 375 mil quilos de açúcar branco, alvejado com uso de ossos de carneiro carbonizados misturados ao suco da cana. Stevenin continuaria dono de 40%.
Guizard não me dava todas as respostas, mas me dava os nomes a serem buscados na rede de hemerotecas da Biblioteca Nacional. Se eles eram homens de negócios, deveriam estar nos jornais. Também acessei o slavevoyages.org, criado pelas universidades de Harvard, Emory e Hull, o maior banco de dados sobre o tráfico negreiro já feito por historiadores, cartógrafos, programadores e webdesigners.
BARÃO DA VILA NOVA DO MINHO
Nos jornais do tempo do Império encontramos de tudo: desde a cotação do café e do açúcar até anúncios de compra e venda de escravos. Encontramos o registro diário de entrada e saída de navios nos portos oficiais.
Nessas páginas encontramos embarcações de Bernardino entrando e saindo constantemente. Após 1830 o negócio se torna mais perigoso, discreto e lucrativo. Ele enriquece exponencialmente levando cachaça, couro e tecidos ingleses do Brasil para a África e escravos da África para o Brasil.
Bernardino foi um Pablo Escobar do tráfico humano. Há registros de que ele tenha feito pelo menos 50 viagens entre 1825 e 1851. No começo sofreu alguns revezes, como em 1828, quando o seu brigue-escuna Amizade Feliz foi abordado por um pirata argentino na costa do Zaire, que tomou 125 dos 220 escravos que Bernardino acabara de comprar no Rio Congo.
Depois, seus negócios foram de vento em popa. Em 1839, espremeu 776 negros no porão do Espadarte. Desses, ‘‘apenas’’ 67 morreram na viagem.
Bernardino quase nunca foi pego. A barra estava sempre limpa para ele. E quando o pegaram, ele escapou. Foi o caso do brigue Dois Amigos, capturado pelos britânicos em 1843. Mas a comissão mista no Rio mandou devolver, revoltando o oficial inglês.
Ele chegou a receber o título de Barão e posteriormente Visconde da Vila Nova do Minho. O nobre não poderia ser julgado por autoridades estrangeiras. Quanto aos juízes brasileiros já sabemos o quanto lhe eram favoráveis.


Poesia cômica e crítica contra José Bernardino de Sá publicada no Jornal O Grito Nacional, 6 de julho de 1853.

TRÁFICO DE INFLUÊNCIA
No caso do juiz de paz de Ubatuba que disse não ter visto nada ilegal na Tabatinga em 1838, havia um dedo de senhor Stevenin.
O jornal O Paulista Official de 20 de janeiro de 1837 traz a decisão de Gavião Peixoto, presidente da província de São Paulo, de suspender o juiz de paz de Ubatuba, Antônio Máximo da Cunha. Stevenin é quem havia pedido a cabeça dele no mesmo jornal poucos dias antes.
O juiz de paz que foi afastado teria ido a Brajahimerinduba acompanhado de contingente armado, aprendido oito negros e prendido um hóspede de Stevenin.
Gavião Peixoto entendeu que o então juiz havia sido parcial no ‘‘processo de formação de culpa aos introdutores de africanos’’. Peixoto deu três opções de nomes para que a própria Câmara de Ubatuba escolhesse quem seria o novo juiz de paz.
Ele mandou tirar da cadeia os negros que tinham sido trazidos por ninguém menos que Arsénio Pompeu Pompilio de Carpo, o maior traficante de escravos de Angola.
Os jornais da época revelam que a elite escravocrata usava sua influência para tentar fazer com que a população da cidade, e não os fazendeiros, pagasse pela manutenção das estradas que passavam pelas suas terras, para proibir pasquins e punir pessoas acusadas de incitar o princípio de uma rebelião de escravos em 1831 e até para pedir que o bispo trocasse o padre da matriz.
No estudo Escravidão em Ubatuba, publicado em 1966, a historiadora Beatriz Westin de Cerqueira escreveu “o contrabando foi favorecido em quase todas as épocas por elementos de prestígio político e social do município (…) por ter sido muito bem organizado e por contar com o apoio de autoridades, sobreviveu, sem nunca ter sido desmascarado”.
OS SÓCIOS
Os traficantes de escravos se ajudavam, compartilhando rotas, pontos de desembarque e informação. Sempre se desconfiou também que dentro de quadros militares e do governo poderia ter havido colaboradores.
Seguindo a outra pista de Guizard, localizamos no Jornal do Commércio, do Rio de Janeiro, a edição de quando Stevenin abriu a oferta de ações. Procurando mais, acho a edição onde foi publicado quem adquiriu as ações, infor-mação que Guizard não trazia.
Encontramos a ata da reunião em que o engenho muda de nome para S. Pedro de Alcântara e documentos que mostram que entre os sócios estavam João Alves da Silva Porto e João Rodrigues Pereira de Almeida, o Barão de Ubá, donos de navios negreiros.
Além de franceses ricos e dos dois famosos piratas negreiros, faziam parte da sociedade importantes políticos e militares do Império do Brasil.
Dentre os donos do engenho figuram ninguém menos que o Marquês de Maceió, então ministro da Marinha; o Vinconde de Baependy, três vezes ministro da Fazenda; o Marquês de Inhambupe, ministro das Relações Exteriores que assinou com a Inglaterra a convenção para abolir o tráfico em 1826. Havia ainda governadores, senadores e outros ‘‘heróis nacionais’’.


Documentos contábeis mostram que compras de escravos eram constantes no Engenho da Lagoinha.


Infográfico: InforMar Ubatuba


Infográfico: InforMar Ubatuba

*Leandro Cruz é jornalista, professor e historiador graduado pela Unesp, Universidade Estadual Paulista

FONTE.......http://informarubatuba.com.br/os-baroes-piratas-que-vendiam-gente/


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