sábado, 15 de abril de 2017

PRIMEIRO IPEROIG , DEPOIS VILA EXALTAÇÃO A SANTA CRUZ DE UBATUBA

Gêneses urbanas do colonialismo: síntese de encontros culturais
(ENCONTREI NA INTERNET ESTE EXCELENTE TRABALHO PUBLICADO EM 2012, PELO HISTORIADO RUBENS GIANESELLA, QUE FALA SOBRE A FORMAÇÃO DA COLÔNIA. AQUI RECORTEI A PARTE QUE SE REFERE À UBATUBA).

Fonte : Anais museu. Paulista . vol.20 no.1 São Paulo Jan./June 2012
DOSSIÊ - CAMINHOS DA HISTÓRIA DA URBANIZAÇÃO NO BRASIL-COLÔNIA
Por Rubens Gianesella

São Sebastião & Ubatuba
VILA NOVA DA EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ DO SALVADOR DE UBATUBA"
Sobre Ubatuba, a primeira menção documentada que conhecemos é a descrição sutil deixada por Hans Staden sobre a localidade, ao passar por aí em meados de agosto de 1554. De tão singelo, o texto revela-se extremamente precioso: "Uma noite acampamos num lugar que também se chama Ubatuba. Aí apanhamos muito peixe, piratis ou tainhas, que são tão grandes como um lúcio bem desenvolvido. Soprava um vento forte"47. 





Livre do cativeiro, escreve sua aventura, editada em 1577. É notável que, com a memória ainda fresca, refere-se ao "lugar" onde "acampamos" e não menciona a existência de aldeias. Se existissem, seria omissão pouco provável não descrevê-las. O cronista mercenário, atento com as possibilidades de fuga, foi minucioso na descrição dos acampamentos, dos grupos locais e de todo o contexto espacial Tupinambá. Outra fonte etno-histórica, citada mais adiante, comprova que duas aldeias são encontradas na localidade de Ubatuba cerca de nove anos após o pernoite de Staden. Não podemos deixar de supor que, em 1563, quando os jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta desembarcaram ali, eram ocupações recentes. Refletiam o crescimento demográfico da sociedade indígena ou as tensões provocadas, desde 1555, pela presença francesa na baía da Guanabara, região onde se concentrava a maioria dos grupos locais Tupinambá (ou Tamoio). Estavam aguçados os conflitos entre essa tribo, aliada dos calvinistas, e os portugueses, associados aos seus seculares inimigos Tupiniquim. Este cenário Staden não assistiu. Deixou o Brasil em 31 de outubro de 1554. Mas a real ameaça que a Confederação dos Tamoios representava para São Vicente, certamente fomentada pelos aliados da "França Antártica", recrudesceu a ponto de os inacianos se arriscarem a negociar em Iperoig, outra denominação da localidade de Ubatuba. A perspicácia do padre Nóbrega foi precisa. Estabeleceu um diálogo no arco perimetral da tribo, com o objetivo claro de atenuar o foco guerreiro do Rio de Janeiro. Os portugueses não tiveram sucesso no envio de uma esquadra para derrotar os franceses em 1560. Nóbrega entendeu que o projeto colonial português corria sérios riscos com os tupinambás confederados. E acertou no alvo. Os caciques de Ubatuba (Pindobuçu e Cunhambebe) cederam aos argumentos dos hábeis catequizadores e iniciou-se um processo de negociações em Iperoig. O provincial com alguns guerreiros viajam a São Vicente e Itanhaém na busca de entendimentos, enquanto Anchieta, refém em Ubatuba, amarga as incertezas do seu destino: "cada dia bebíamos muitos tragos de morte"48. O episódio na região é conhecido como a Paz de Iperoig. Na verdade foi uma trégua ardilosa até as forças portuguesas se recomporem, com forte participação de Nóbrega, para lograr a expulsão dos franceses e o extermínio Tupinambá, motivando a fundação do Rio de Janeiro em 1565. Na esteira das ações dominadoras, os Tamoio remanescentes, refugiados em Cabo Frio, são aniquilados em setembro 1575.
A Carta ao padre Diogo Laines49, em que Anchieta registra sua estada em Ubatuba, informa-nos sobre a existência de duas aldeias, dando indicação precisa do local da principal delas, a do cacique Pindobuçu: "todavia correu quanto pode, e mais do que pôde, até o fim da praia, onde, antes da aldeia, que está posta em um monte mui alto, corre uma ribeira d'água mui larga e que dá pela cintura"50.
No escopo do documento não há referência sobre a localização do sítio da outra aldeia. Mas, em outras passagens da carta, deixa transparecer que não ficavam distantes, ocupando as adjacências do mesmo recorte costeiro. Logo que desembarcam na enseada de Ubatuba (localidade à qual se refere como "primeiros lugares dos inimigos" ou mais significativamente como "aquela fronteira"), comenta que "Chegados à praia [...] Visitamos ambas as aldeias"51.
Além do sugerido enquadramento das duas aldeias na mesma enseada, há uma importante pesquisa arqueológica que contribui para a suposta localização do sítio da segunda aldeia, em harmonia com os indícios deixados por Anchieta. Trata-se da identificação do local denominado Sítio do Itaguá, no mesmo entorno praiano que foi palco da permanência dos jesuítas em 1563.
As pesquisadoras Maria Cristina Scatamacchia e Dorath Pinto Uchoa, em estudo publicado em 1993, identificam no Sítio do Itaguá evidências da ocupação Tupi (restos de fogueira, grande quantidade de carvão, buracos de estacas, restos de um sepultamento e material cerâmico) e artefatos de procedência europeia (4 contas de vidro, 1 pequeno disco de cobre)52.
Entre a narrativa etno-histórica e a pesquisa arqueológica, parece razoável, pela coerência de seus relatos, a hipótese do "Sítio de Itaguá" corresponder à segunda aldeia encontrada por Anchieta. No contexto dos grupos locais Tupinambá, instalados em acrópoles, tangenciados pelos corpos d'água principais da região e com visão de 360º do entorno, principalmente do mar, há ainda outro local - na mesma enseada, com as mesmas qualificações ambientais - que poderia ser aceitável como sua localização. Atualmente está edificado e não há nenhum registro documental que comprove sua ocupação pregressa por aldeia indígena (Figura 16).
A identificação da aldeia do cacique Pindobuçu e as descobertas arqueológicas do Sítio de Itaguá reiteram os critérios litorâneos de ocupação Tupi. Estão presentes o agenciamento à rede fluvial, a proximidade das matas e de terras férteis para os cultivos e para lenha, a abundância de peixes e a condição portuária de enseada abrigada, adequada aos seus meios, com a particularidade de que "A localização alta na maioria dos sítios, propiciando uma boa visão dos arredores e defesa mais fácil, parece indicar um clima bastante belicoso"53. A esse contexto ecológico acrescenta-se a inserção da localidade na paisagem regional.
O panorama geográfico decerto contribuiu para as escolhas de ocupação; é um dos vetores da composição ambiental das intrínsecas vivências indígenas. Da baixada santista para o norte (na verdade, direção nordeste), até a baía da Guanabara, a serra do Mar mantém um perfil homogêneo em relação à linha litorânea. Seus contrafortes abruptos, de escarpas festonadas, com altitudes de até mil metros, muitas vezes se debruçam nas águas da marinha, limitando as planícies costeiras a trechos de pouca expressão. Este relevo de recortes proporciona pequenas enseadas abrigadas de ventos e de correntes marítimas, com praias de pequena amplitude em cenários de extrema beleza. Assim ocorre na área central do atual município de Ubatuba e em outras localidades da vizinhança (Maranduba, Rio Escuro, Itamambuca, Ubatumirim etc.). Essas planícies, por sua relativa extensão e maior capacidade de drenagem, oferecem os rios mais expressivos dessa costa. O Rio Grande de Ubatuba, com estuário na sede da cidade e no sopé da antiga Aldeia de Pindobuçu, seria por si só um atrativo especial para ocupação desse recorte costeiro. Um segundo fator soma-se a este referencial: as vertentes de suas cabeceiras, por sua escala, recortam significativamente o contraforte serrano nessa latitude. Tal particularidade do relevo favorece o acesso ao planalto, pela maior amplitude linear do plano inclinado da costa. Estes "recortes em cunha" no relevo serrano, não por acaso, foram apropriados aos "peabirus", aos caminhos, às estradas de ferro e rodagem e, atualmente, às nossas rodovias. São os cenários geográficos que disponibilizaram as articulações entre o planalto e o nosso litoral. O de Ubatuba é típico, mas é também o que ocorre na Baixada Santista, em Caraguatatuba, em Parati e em Angra dos Reis (Figura 2). Um terceiro fator, ainda, complementa a escolha de Ubatuba: no acesso facilitado ao planalto por esta diretriz, estão os rios Paraibuna, Paraitinga e, no fundo do vale, o Paraíba: esta rica rede fluvial, paisagem típica dos povos Tupi-Guarani, além de apontar para os domínios Tupiniquim, complementava os "nichos" ecológicos litorâneos pela diversidade de recursos naturais.
Quando Jordão Homem da Costa veio fundar a vila Nova da Exaltação da Santa Cruz do Salvador de Ubatuba - por Provisão de 28 de outubro de 1637, de Salvador Correa de Sá e Benevides, governador do Rio de Janeiro -, a localidade era "um ermo..."54. Por isso mesmo teve liberdade de escolher um sítio para sua fundação que viesse ao encontro de sua intenção colonizadora. Não teve dúvida em agenciá-lo na mesma localidade de escolha Tupi. Estava ali o mesmo rio, a mesma planície costeira, o mesmo abrigo portuário, a mesma enseada acolhedora e a mesma diretriz de acesso ao planalto. Só não ocupou o mesmo altiplano da aldeia, não havia razão para isso: eram novos programas sociais. A zona plana da praia era convidativa às instalações das novas tipologias de arquitetura urbana. "Não há dúvida de que a adesão, quase total, aos critérios de escolha de sítios planos, para instalação dos núcleos urbanos, pode ter sido um estímulo significativo para o uso de traçados mais regulares"55. Sua fundação, significativamente contemporânea à de São Sebastião (1636), foi uma decisão que teve a chancela da coroa, naqueles tempos unificada.
Por volta de 1791 - data do levantamento do providencial mapa urbano elaborado por João da Costa Ferreira e Antonio Rodrigues Montesinhos -, Ubatuba era, talvez, de todos os núcleos urbanos do litoral da capitania de São Paulo, o mais modesto. Sua extensão correspondia ao entorno da Matriz, e deixa transparecer um mínimo da racionalidade que remonta à gênese fundadora, expresso pela própria imagem. Vemos, todavia, um alinhamento de traçado sinuoso junto à praia que se estende pela zona plana em direção ao rio da Lagoa (Figura 17). Sugere um caminho pregresso ao evento urbano, provavelmente articulador de ocupações, dispersas na região, de produção rural ou mesmo das remotas instalações indígenas. Reflete o atrativo do porto, com pequenas edificações isoladas, sem a contiguidade marcante do módulo central. Parecem vinculadas à pesca, ou a instalações anteriores ao relativo formalismo do núcleo colonial. A pequena igreja extinta (c, à esquerda), de invocação à Nossa Senhora da Conceição, localizada na borda desse caminho, talvez confirme a tradição oral de ser anterior à Matriz, essa sim atrelada à fundação da vila. Pode ter raiz na cristianização que sucedeu à pacificação dos tamoios. Outro vetor de articulação insinua-se no traçado posterior da Matriz. Trata-se da diretriz secular que, perpendicular à praia, estende-se do sítio aos contrafortes da serra, alcançando o planalto. A imagem da Figura 17 insinua o alinhamento contínuo no lado direito do desenho. No tracejado da Figura 18, compreendemos que a rua Direita de Ubatuba (assim denominada até meados do século XX) sequenciava o alinhamento sinuoso pregresso, interceptada na expansão urbana do século XIX (similar a Cananeia), quando o café mudou a paisagem do Vale do Paraíba.
O fato é que a direção das vertentes do rio Grande de Ubatuba para o alcance do planalto corresponde, em todos os tempos, a uma das principais justificativas de escolha desse sítio para ocupação.



FONTE............Pitágoras Bom Pastor Medeiros Via Facebook -

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