Já à noitinha, depois de muita cantoria, vinha o fecho:
"Mais um "viva" se ouviu
Quando se escondia o sol.
Peço a Deus que me dê
Uma cama e um lençol."
Fazia-se tarde e Albino foi despedir-se dos donos da casa, enquanto eu, depois de uma longa volta em torno da casa, e também de levar alguns empurrões, consegui me aproximar do "folião", nome esse que, a meu ver não combina com as suas atribuições, tão a sério êle leva o desempenho do papel de violeiro-cantador.
Quis sondar-lhe a alma para descobrir de onde vinha o encanto que emanava da sua poesia. O simpático praiano, ao saber do meu interesse, repetiu-me os versos que garatujei em uma folha de papel, com a promessa, da minha parte, de devolvé-lo no dia seguinte, a fim de que êle o guardasse. — Afinal, Idalina, para que você quer estes versos ? — perguntou Albino; e vendo que eu não respondia, continuou sorrindo: — Será que você pretende cantar folia? Não meu bem! Se Deus quiser, não há de ser preciso você fazer tanta força assim... Mesmo porque — juntou trocista — a escutar o seu canto, prefiro mil vezes o coaxar da rã do brejo... Não respondi. Cantarolando baixinho os versos que escutamos do moço violeiro, sentia ecoar no meu coração a singeleza das rimas, tão de acordo com o ambiente rústico e simples.
Enfim, chegamos à nossa casinha. Albino reassumiu seu posto no balcão, e eu, bem a contragosto, guardei os meus sonhos em uma caixinha para momentos mais apropriados. Ouvi, no decorrer da noite, o som das violas, acompanhando o canto do "folião".
O dia seguinte amanheceu lindo, com o sol amigo. Estávamos ainda no café da manhã, quando Dita entrou em casa correndo. Como era bonita a caiçarinha! Cabelos castanhos e crespos, olhos esverdeados tendendo para o azul. Eu sempre dizia, brincando com ela: — Menina, do quem você é namorada. Do mar ou do céu? E ela dizia: — Dos dois, dona Idalina. E foi a graciosa moça que, com algazarra juvenil, nem deixou o meu marido abrir o armazém, dizendo: — Não dará tempo, "seu" Albino. O folião vai cantar a despedida! Adiantando-nos em louca corrida, partimos as duas para a praia ensolarada, apesar dos veementes protestos de Albino, que vinha mais devagar. Antes de chegarmos esperei-o, e, já agora compenetrada do papel de senhora casada, parei, tomando fôlego. Em seguida abrimos caminho através dos nossos amigos. Assim posso chamá-los, pois na realidade, sem exceção, eram todos bons e carinhosos para nós. A "Folia" já estava de saída. Sorridente, o jovem cantor adiantou-se e gentilmente pediu licença a meu marido para oferecer-me os primeiros versos da despedida. Concedida a licença, o mesmo levantou a voz e cantou:
"Dizem que mulher de fora
Jamais gosta do lugar
Mas esta dona tem cara
De quem aqui vai ficar.
Mercê veja se acostuma
E desde já vá criando,
Pato, galinha e ganso,
Que para o ano voltamos.
A esmola que vós destes.
Lá na Glória chegou:
Os anjinhos receberam.
Nossa Senhora guardou.
O Divino foi prá Glória,
Foi buscar a boa sorte
Pra casa onde almoçou."
Vi-os partirem com saudade. Foram momentos felizes esses que vivi, nos primeiros dias da minha chegada à Enseada. Mais de trinta anos são passados. Porém, em minha alma, ainda mora a recordação viva da festa do Divino, que eu vira pela primeira vez. É o passado ainda perfeito, trinta e poucos anos depois, que fala nas páginas deste livro. É também uma homenagem aos meus amigos de então, que habitavam a Praia da Enseada. Uma vez por outra, tangida pela saudade, eu procurava recordar os versos, tão simples em seus dizeres e tão belos na voz de um filho daquelas praias.
FONTE........... http://canoadepau.blogspot.com.br/2015/08/ilha-anchieta-110-anos-atras.html?spref=fb
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