Texto: João Pedro Néia
Fotos: Felipe Scapino
Fonte..........www.ubatubasim.com.br
O ritual é quase sempre o mesmo antes de
uma apresentação do Grupo Fandango Caiçara de Ubatuba. Os músicos vão
chegando aos poucos, trazendo às costas o instrumento pertencente a cada
um. Trocam abraços carinhosos e uma prosa íntima, que revelam o
entrosamento de quem, mais do que fazer música, tem a consciência de
estar transmitindo uma cultura secular.
A coisa começa a ficar séria quando os
músicos (ou foliões, como também são chamados) se aprontam para afinar
os instrumentos e os primeiros sons preenchem o ambiente. O ouvido
colado na madeira da viola, a rabeca que solta o primeiro gemido, as
feições sérias, concentradas, à espera do tom desejado. Tudo isso
antecede o que o público já sabe: a diversão está garantida.
Segundo a definição do Iphan (Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), o Fandango Caiçara é “uma
forma de expressão profundamente enraizada no cotidiano das comunidades
caiçaras, um espaço de reiteração de sua identidade e determinante dos
padrões de sociabilidade local”. O órgão diz ainda que “Nos bailes, como
são conhecidos os encontros onde há Fandango, se estabelecem redes de
trocas e diálogos entre gerações, intercâmbio de instrumentos,
afinações, modas e passos viabilizando a manutenção da memória e da
prática das diferentes músicas e danças.”.
Mario
Ricardo de Oliveira, 40, é um dos fundadores do Fandango Caiçara de
Ubatuba. Apesar de se tratar de uma expressão musical antiga, Mario
conta que o grupo é relativamente novo. Surgiu em 2006 como um
representante e defensor dessa manifestação caiçara tão importante.
Popularmente conhecido como Mario Gato, o
músico toca rabeca e machete, e também canta em algumas canções do
grupo. Mario fabrica seus próprios instrumentos, além de construir
canoas, prática artesanal muito significativa na cultura caiçara.
Mario Gato explica que o Fandango veio
para o Brasil pelas mãos dos portugueses. “O Fandango tem a sua origem
no período de colonização, com a chegada dos europeus, precisamente os
portugueses, que trouxeram o seu modo de vida da Europa pra poder se
sentir mais em casa”, diz. “Hoje é formado geralmente por duas violas,
um violão base, machete, rabeca, pandeiro e caixa. E duas vozes,
primeira e segunda voz”, ensina.
Sobre a criação do grupo, Mario conta
que o Fandango Caiçara de Ubatuba surgiu dentro de uma sala de
manutenção da FundArt, nos fundos do Sobradão do Porto, onde trabalha
como Gerente de Patrimônio. “Eu, o Marinho, o Dedé e o Ostinho começamos
a trabalhar na manutenção e começamos a fazer meio na brincadeira. Fiz
uma viola machete, comecei a fazer rabeca, aí trazia pra cá, pegava um
pandeiro e uma caixa e assim começou. E também pela importância de
preservar essa musicalidade tão antiga”, conta Mario.
Apesar de o grupo ser relativamente
novo, os mestres mais antigos, como seu Jorge, seu Pedro, Neco, Tié,
entre outros, já tocavam o Fandango de maneira espontânea, nas
comunidades, em casamentos e outras celebrações. O clima festivo, aliás,
é uma das principais características do Fandango. Mario Gato explica um
pouco do sentimento que rege o estilo. “O Fandango era um divertimento
do povo europeu. Na região de onde vem o Fandango, era muito comum essa
atividade musical depois de uma colheita, de um trabalho de mutirão.
Aqui no Brasil não foi diferente”, diz.
O que surgiu como uma brincadeira logo
se transformou em coisa séria. Movidos pela paixão musical e pela
percepção de que era preciso evoluir, os fundadores buscaram o reforço
da Velha Guarda do Fandango em Ubatuba.
“Nos tornamos militantes da cultura
caiçara, nos sentimos obrigados a levar isso em frente. Tivemos contato
com o seu Pedro Brandão, seu Dito Fernandes, seu Horácio. Sentimos que
seria muito importante aprender mais com esses ‘velhos’, carinhosamente
falando, pra justamente levar isso em frente. O que a gente aprendeu foi
através deles”, conta Mario Gato.
Religiosidade
O Fandango Caiçara, como expressão
cultural, trata de temas comuns ao povo nativo. Seus ritmos falam de
amor, do cotidiano, da caça, da pesca e, claro, da religiosidade.
Anualmente,
em março, acontece em Ubatuba a romaria do Divino Espírito Santo, uma
das manifestações religiosas mais antigas do Brasil, também trazida
pelos portugueses. A peregrinação conta com a presença do Fandango, que
ao som da viola e da rabeca percorre as casas dos devotos desde a
Tabatinga até o Camburi.
Outro evento importante na tradição
religiosa é a Dança de São Gonçalo. No passado, diz Mario, alguns
mestres não aceitavam a realização de outras danças nas comemorações de
São Gonçalo. Eram consideradas profanas. “Algumas pessoas, depois do São
Gonçalo, enrolavam o santo num papel e escondiam, que era pro Santo não
ver a brincadeira. Aí rolava o xiba, miudezas como a cana verde, a
ciranda”, conta Mario, que além do talento com a música e a madeira,
também é um exímio contador de causos caiçaras.
Foliões (ou tripulantes)
Ao longo da história, era comum que as
atividades caiçaras acabassem em Fandango. Práticas como a puxada de
canoa, a construção de uma casa de pau-a-pique ou uma colheita
produtiva, entre outras, significavam que a noite seria longa e
divertida.
Violeiro na atual formação do grupo,
Manoel Moisés toca viola desde criança, tendo inclusive tocado em
diversas folias. “Tocava muito em folia quando era novo. Depois fiquei
25 anos sem tocar viola. Um dia fui pra Aparecida, comprei uma viola e
pensei: ‘ah, eu vou treinar de novo’”, conta. Na época de garoto, na
Barra Seca, tocava com os amigos do bairro. “A gente saía pra tocar em
vários lugares. A gente chegava e segurava até amanhecer o dia. O
pessoal chamava e a gente ia. Onde chamassem a gente estava lá”, diz
orgulhoso.
“Nos dias de hoje ainda é possível ouvir
e ver uma manifestação dessa, nas comunidades do norte de Ubatuba,
Prumirim, Puruba, Praia Vermelha, onde existe uma concentração de
caiçaras, famílias tradicionais, pescadores, que mantêm essa tradição
musical através de seus pais e avós”, completa Mario Gato.
Seu Jorge Barbosa é o mais velho do
grupo. “Estou com 83 e 6 meses”, diz, enquanto afina o violão. “Nasci no
Itamambuca, mas desde 62 moro na Vermelha do Norte. Meu pai era
tocador. Sou o primeiro filho, já tocava com o meu pai naquela época”,
conta seu Jorge, que começou a tocar por volta dos 14 anos. “Sou
apaixonado pelo Fandango e por toda música caiçara, de Ubatuba e do
Litoral”. Quando seu Jorge arranha seu violão, mais do que o som, o que
ecoa são as quase sete décadas de Fandango e de identidade cultural.
Outro
violeiro do grupo é Armindo Barbosa dos Santos, há 4 anos no conjunto.
“Toco um pouquinho de violão, um pouquinho de cavaquinho. Mas eu gosto
mesmo é da viola”, diz abraçado ao instrumento de 10 cordas. Nascido no
Ubatumirim, seu Armindo começou a tocar depois dos 18 anos. A trajetória
é parecida com a da maioria dos mestres de antigamente, tocando em
festas das comunidades. “Tive que abandonar um tempo. Depois voltei. A
música a gente não esquece, está no sangue mesmo”, diz Armindo.
“Antigamente a festa do caiçara era
essa. O caiçara fazia um xiba e convidava o pessoal e o pessoal ia. Aí
todo mundo dançava. Só para se divertir”, completa Manoel Moisés.
No passado, os músicos também eram
chamados de tripulantes, já que o acesso às comunidades, em muitos
casos, era feito apenas de canoa.
Diversidade
Sinônimo de tradição e diversidade, o
Fandango é dança, é coreografia, é poesia. Um balaio de ritmos como moda
de Anu, Tontinha, Ciranda, o Xiba, Canoa, Cana Verde, Serra Baile e
etc. Batido ou valsado, com pequenas diferenças aqui e ali (dependendo
dos instrumentos e da região), o Fandango é Patrimônio Imaterial da
Cultura Brasileira.
Os antigos carnavais realizados em
Ubatuba, chamados de Dança do Boi, já traziam a presença da viola e da
rabeca. Aspectos da cultura que os fandangueiros de Ubatuba querem
reviver. O desafio ultimamente tem sido despertar nos jovens das
comunidades o interesse por tamanha sabedoria, o que só pode ser
conquistado através de interlocução entre os mestres e as novas
gerações.
“O Fandango é uma bandeira mesmo. A
música serve pra gente passar esse tipo de mensagem nos festejos
populares que a gente costuma tocar. Nas escolas, a gente vai fazer
palestra e ensinar as crianças um pouco da história caiçara, com danças,
com música. Em programas de rádio, movimento social, e a gente pretende
também levar isso pras comunidades, tentar trazer os jovens pra
participar desse movimento musical”, diz Mario Gato. “O que falta pros
jovens hoje é informação. Quando vamos nas escolas e ensinamos a cantar e
dançar, eles participam”, garante.
“Eu sou uma pessoa que me identifico com
o caiçara em todos os sentidos. Ubatuba, entre nossos vizinhos do sul
fluminense e litoral norte, é a única cidade que mantém vivas
praticamente todas as atividades tradicionais do caiçara. Dança, pesca
artesanal, agricultura, fabricação de farinha. Pena que é mal vista por
parte do povo e também do poder público. Existe uma tendência de
desaparecer. É uma pena, porque é o que identifica a cidade. Ubatuba não
é só praia, cachoeira. Existiu um povo que fez história desde a sua
formação. E se está preservado é porque essa população preservou. Virou
moda falar de caiçara. Muita gente não sabe nem o que é o caiçara”, diz
Mario Gato
O Fandango Caiçara é uma música ao mesmo
tempo tão nova e tão antiga, capaz de encantar quem a ouve pela
primeira vez e de revirar o baú das memórias de muitos outros.
A pesquisadora Kilza Setti, responsável
pelo conteúdo do Acervo Memória Caiçara, escreveu que “o caiçara é,
antes de tudo, o herói anônimo das praias do Brasil. Ignorado, mas
sobrevivente, apesar de tudo.”.
A luta dos foliões do Fandango, militantes da cultura, segue firme para que o caiçara não seja mais ignorado.
Acesse a página no grupo no facebook: https://www.facebook.com/fandangoubatuba/
As fotos foram gentilmente cedidas
por Felipe Scapino, fotógrafo, documentarista e criador da página
Expedições do Folclore, que produz e divulga conteúdos relacionados à
cultura caiçara.
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