sexta-feira, 16 de setembro de 2016

VIRGINIA LEFEVRE E A S.P.E.S.

Ricardo Grisolia Esteves*

                Escrever sobre Virgínia Lefèvre é escrever sobre várias personalidades em uma única: a escritora, a filósofa e missionária, a figura carismática elevada que encantava e seduzia com suas idéias humanísticas todos aqueles que tiveram a honra de conhece-la pessoalmente. Profundamente espiritualizada e culta, jamais incutiu conceitos religiosos nas pessoas que a rodeavam, porém, sempre tinha para todos uma palavra de fé e esperança. Nunca a vimos falar de política porém, nos alertava sobre a quem e quais os caminhos que deveríamos evitar.



Já em 1942 Virginia Lefèvre e algumas amigas fundaram em São Paulo a Escola para Crianças Abandonadas, que objetivava alfabetizar e capacitar para serviços domésticos, moças adolescentes provenientes de famílias sem posses e oferecer a elas educação familiar, cultura e boas maneiras, através do convívio em casas paulistanas.
Seu marido, o engenheiro Waldemar Lefèvre, fora incumbido pelo Instituto Geográfico e Geológico a determinar a linha divisória entre os Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Ao vir para Ubatuba, na companhia de seu marido, Virgínia Lefèvre se estabeleceu no bairro do Itaguá e a partir daí, enquanto durava o empreendimento de seu marido, percorreu toda a região até chegar as praias mais distantes do norte, então somente acessíveis por mar e por trilhas na mata.
Constatando a triste situação em que viviam as famílias caiçaras na abandonada Ubatuba dos anos 40, Dª Virgínia usou sua influência na sociedade paulistana da época e apelou ao seu círculo de amizades para fundar a SOCIEDADE PRÓ-EDUCAÇÃO E SAÚDE – S.P.E.S., mantida às custas de mensalidades dos associados e de rendas provenientes de eventos culturais.
Toda a vida de Virginia Lefèvre a partir de 1946 até seus últimos instantes em 1987, foi integralmente dedicada a S.P.E.S., entidade que chegou inclusive a ser declarada de interesse público pelos relevantes serviços sócio-culturais e educativos que patrocinava ao povo caiçara de Ubatuba.
A S.P.E.S.tinha como missão “prestar assistência social, de forma eficaz, promovendo a agregação da família”. Suas primeiras ações foram realizar casamentos entre pessoas que já viviam juntas e com filhos e também o de promover o registro dos filhos naturais pois muitos caiçaras não tinham registros civis de casamento e seus filhos não eram registrados formalmente. Esta situação impedia a comprovação de paternidade não lhes garantindo o acesso ao direito sucessório, tornando-os vítimas de especuladores imobiliários que a partir de documentação forjada, apropriavam-se facilmente de suas  terras.
Outra pioneira iniciativa da S.P.E.S. que obteve efeitos transformadores na sociedade caiçara foi a escolarização nas primeiras letras, com a fundação de  escolas. Em 1946 foi fundada a primeira escola no bairro do Itaguá, onde apenas se chegava caminhando pela praia. Em 1949 veio a da Caçandoca; em 1950 e 1951, respectivamente, foram criadas escolas na Almada e no Camburi; em 1954 a escola no Sertão do Ubatumirin. Na conceituação da S.P.E.S. a escola não se limitava a fornecer alfabetização e o primeiro contato com os livros. O seu espaço era ao mesmo tempo “a casa da lavoura; a farmácia; a enfermaria; o registro civil; a câmara e a prefeitura”.

Os esforços em promover a saúde, o saneamento e a educação principalmente dirigidos às famílias carentes e geograficamente isoladas, desprovidas de todo tipo de amparo, foi uma constante em muitos anos. De campanhas para tratamento dentário a mutirões para a erradicação de infecções epidêmicas, a S.P.E.S. atacou todas as piores mazelas que afligiam a vida do isolado povo caiçara e para isso buscou uma enorme soma de esforços, seja na iniciativa privada, seja na imprensa, procurando comover a opinião pública em prol da obtenção de recursos.

E foi através da S.P.E.S. que o artesanato caiçara passou a ser uma importante atividade, inclusive com a promoção de cursos para a melhoria dos produtos e o fomento à produção. Esse material era levado a exposições em São Paulo e a renda obtida revertia para os produtores, o que fez muitas famílias se especializarem.

Passados quase vinte anos da extinção da S.P.E.S., só restou de sua memória a lembrança de uns poucos amigos. Hoje a estrada já chegou ao sertão e poucas são as famílias caiçaras que vivem da roça e do mar. Não nos cabe julgar o que ficou de tudo aquilo – apenas prestar uma homenagem emocionada àquela que dedicou abnegadamente a melhor parte de sua vida à causa dos esquecidos.
Parabéns Dona Virgínia!


*Ricardo Grisolia Esteves (arquiteto e ceramista, morando em Ubatuba conheceu a obra da SPES em curso de teares manuais na sede do Itaguá em 1983) foi vice-presidente da SPES de 1983 a 1985. É co-autor do Manual Prático do Mobiliário Escolar, editado pela ABIME em 2001.

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