segunda-feira, 4 de abril de 2016

Devoção e Festas religiosas


  Maneco Almiro e Otavio Batista, em festa do Divino, centro Ubatuba, 1983 (foto: Kilza Setti)

                                          Maneco Almiro e Otavio Batista, em festa do Divino, centro Ubatuba, 1983 (foto: Kilza Setti)



É curiosa e inspiradora a relação que os devotos católicos estabelecem com os santos de sua devoção. Antes da chegada das religiões protestantes ao litoral, toda casa caiçara mantinha seu oratório com santos, medalhas, fitas, flores coloridas, enfim, um mundo de fantasia, de parentesco e compadrio e de cumplicidade com as imagens dos santos preferidos. A prática de troca de favores entre humanos e santos se faz na relação: oração/graça obtida, ou dança sagrada/graça  a ser obtida, compra de velas e novenas em troca de favores dos santos. Isto em nada difere dos procedimentos de fiéis em grandes cidades. Mas, no mundo rural, essa relação entre devotos e santos é mais próxima. 




Vestem-se e enfeitam-se imagens, e alguns santos são mesmo escolhidos para padrinhos de crianças. Essa proximidade, quase que intimidade entre os seres intermediários a Deus e os humanos, torna a religião católica, ou o “catolicismo rústico” como propõem alguns antropólogos, algo surpreendente, de sabor único, inigualável e digno de estudos mais aprofundados, como é o caso das histórias sobre São Gonçalo violeiro, um dos santos dos mais prestigiados. Assim é o universo das devoções caiçaras. Oração, música, dança, fantasia, imaginação.

Nos últimos trinta anos, a presença de religiões protestantes não históricas tem desorganizado a prática musical entre os caiçaras, muitas vezes dissolvendo núcleos familiares de produção musical e substituindo, desse modo, seus repertórios tradicionais por hinários das mais variadas igrejas, com predominância dos subgrupos pentecostais. A adesão do caiçara a essas novas religiões se dá, com muita probabilidade, pela busca de novas lideranças e apoio nas situações de contínuas perdas a que foram submetidos.
Devoção e festa são aspectos interligados na cultura caiçara. Os modos de realizar festas estão condicionados a situações mais ou menos favoráveis, em face de elementos como organização social, economia, coesão grupal, dentre outros. Dificuldades financeiras, perdas de espaço ou dissolução das famílias nucleares podem ser também elementos desarticuladores das situações de festas. Nas áreas observadas, parece claro que a interferência de novas religiões vem enfraquecendo as festividades ligadas à devoção.
Festas e comemorações são universais e estão presentes à vida de todos os povos. No Brasil, embora em diferentes ambientes, populações interioranas e costeiras mantêm suas celebrações festivas. Os povos do litoral de São Paulo, assim como os das áreas da Serra do Mar, além das festas promovidas pelo Estado e pela Igreja Católica, elegem e cultuam seus santos padroeiros, sempre inspiradores de festas. Alguns são prestigiados tanto nas comunidades de cultura caipira (do interior do estado), quanto entre os caiçaras. Destacam-se aí, Santo Antônio, São João, São Gonçalo, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora do Rosário, Santa Ifigênia, São Benedito, São Pedro, Santa Isabel (referem-se de fato, à princesa Isabel, tida como responsável pela Abolição), Santa Verônica, Sant’Ana, Divino Espírito Santo, Santos Reis (os três reis magos) e Santa Cruz, além dos padroeiros de capelas e igrejas de bairros e cidades, como Bom Jesus de Iguape.
No litoral paulista, sobretudo em Ubatuba, São Pedro é comemorado com feriado local a 29 de junho, procissão de barcos, fogueira, mastro, leilão de prendas e música. Há festas na cidade, nos sertões e praias. A Festa de São Pedro alia a devoção popular às ações institucionais (Igreja e municipalidade). A procissão no mar é grandiosa, com intensa participação de pescadores e população em geral. Os demais santos de junho - São João e Santo Antônio - são festejados em casas que guardam promessas ou devoções. O dia 13 de setembro também é comemorado com feriado em homenagem à exaltação de Santa Cruz, procissão e banda de música. O culto a São Gonçalo não tem dia certo e, em sua homenagem, organizam-se danças sagradas para pagamento de promessas. As Folias de Reis, de dezembro a janeiro, e as do Divino, estendem-se pelo ano todo, exceto no período da quaresma. Nos últimos anos, retornaram as antigas práticas de malhação de Judas, no sábado de aleluia. Moçambiques e congadas são realizadas, em geral, em comunidades de derivação africana, em devoção a São Benedito, Nossa Senhora do Rosário e, mais raramente, a Santa Ifigênia. Em quase todas essas festas, ocorrem novenas, ladainhas (às vezes em latim), rezas, procissões, danças e música. São, quase sempre, independentes da Igreja e favorecem situações de mais intenso convívio entre familiares, reforçando laços de compadrio. Assinale-se, porém, que o crescente número de novos moradores, que, em Ubatuba, já atinge cerca de 70% da população, vem alterando esse quadro, com a introdução de novas práticas culturais e acarretando maior índice de violência no município.

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