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Depois do abandono da Fazenda Jundiaquara, que por décadas foi reduto das mais atrozes e desumanas histórias da escravidão no país, a fazenda recebeu uma leva de famílias de retirantes de serra acima para trabalharem na olaria que ali prosperava.
A primeira família a ocupar uma casa de colono foi a do Seu Claro.
Num tempo que não havia luz elétrica, somente lamparinas e lampiões, a imaginação corria frouxa e todo mundo tinha uma história “trash” para contar. O ambiente da fazenda continha um quê de mistério. Diziam que eram as almas penadas em busca de rezas para salvação. Eram almas dos negros que pediam justiça. Eram almas dos senhores que mendigavam misericórdia.
O meio do dia era guardado com respeito. A noite caia pesada e as pessoas se recolhiam temerosas, deixando todo o espaço para que as criaturas sobrenaturais se manifestassem.
Assim a vida ia passando para a família de Seu Claro, que cada vez mais ia tomando conhecimento dos contos sinistros.
Um dia, não se sabe porquê, um navio foi a pique em águas próximas a fazenda.
O navio era de cabotagem, esses que fazem o transporte de mercadorias. Todo o estoque do navio foi dar a praia. A esposa de Seu Claro recuperou um fardo de brim “Coringa”, tecido áspero e grosso, bom para costurar calças masculinas. Aquilo durava!!!
Confeccionada pela esposa, Seu Claro ganhou uma calça novinha. Ia estrear na cidade, onde faria as compras. Logo cedo se arrumou todo, colocou calça nova na mochila e vestiu uma velha.
Na cidade tirou a calça velha e vestiu a nova. A cidade fervilhava de gente. Os conhecidos admiravam a beleza de calça feita por sua esposa.
Meio-dia formou um vento noroeste. O céu foi ficando ocre. Seu Claro colocou o saco de compras nas costas e tomou o rumo da Fazenda Jundiaquara, conversando com um compadre seu que voltava também. No caminho, o seu acompanhante tomou outro rumo. Ele seguiu pela estradinha. Já estava anoitecendo, precisava chegar logo em casa. Foi aí que o Seu Claro se tocou com o barulho que o acompanhava. Uma golfada de vento lhe fez arrepiar. O cisco das folhas secas passaram rodopiando a sua frente. Pássaros levantaram vôo em gritos. O barulho se fazia mais próximo. Um calafrio lhe percorria o corpo, uma baforada de ar quente vinha junto com o rumor que se fazia mais forte. Quanto mais depressa andava, mais a coisa lhe perseguia.
O coração lhe vinha a boca. Tentava recitar uma oração, mas ela se embananava em sua cabeça. Trocava o Pai Nosso pelo pão nosso, a Ave Maria, pela Salve Rainha... O barulho estava a um passo de alcançá-lo.
Pensava em parar e se ajoelhar e rogar a Deus por sua vida. Mas não podia parar. Por enquanto estava vivo, estava andando!
De rabo de olho quis virar a cabeça e encarar, mas sua nuca estava travada. O medo lhe consumia as forças. O barulho infernal desnorteava-lhe. O caminho, que pela manhã lhe parecia curto, agora tomava a proporção do infinito.
Não sentia o peso das compras em suas costas.
Avistou então sua casa. Deu sebo nas canelas e voou. Empurrou a porta e se jogou com tudo dentro de casa. Uma crise de choro lhe veio as frontes.
Assustada, sua mulher o acudiu sem nada entender.
Horas depois, já refeito do justo, mas aguçando os ouvidos para tentar ouvir o tal barulho, contou o acontecido a sua esposa, que pediu que ele demonstrasse com gestos essa façanha tão horripilante.
Seu Claro levantou, tomou rumo da cozinha e ouviu o barulho, soltou um grito de horror e disse:
- Me acuda mulher! Que a coisa está atrás de mim...
A mulher lhe respondeu sem titubear:
- Atrás não sei, só sei que o barulho vem de suas pernas. Há, há, há...
Acabrunhado, Seu Claro percebeu que cada vez que andava uma perna esbarrava na outra e o barulho, então, vinha do atrito da calça brim “Coringa”, fazendo tché, tché, tché...
Corajoooso!!!
Nota do Editor: Fátima Aparecida Carlos de Souza Barbosa dos Santos, ou simplesmente Fátima de Souza, é, sem dúvida, a primeira caiçara da sua geração a escrever sobre temas do cotidiano local. É autora de Arrelá Ubatuba.
FONTE........www.ubaweb.com |
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