segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

ILHA ANCHIETA 110 ANOS ATRÁS......2 ª E ÚLTIMA PARTE

Matéria compartilhada na integra do Blog  www.canoadepau.blogspot.com.br

CAPITULO II


Início da luta


Depois de instalados, fiz, com meticuloso cuidado, uma investigação pelos arredores de minha casinha. Como era simpática! Pequenina e branca, de janelas azuis, espiava a medo para o mar! Algumas árvores frutíferas completavam o encanto do meu novo lar. Dias depois. Albino abriu uma pequena venda. Ali se reuniam, quando não iam à pesca à noite, os caiçaras, bebendo um trago ou jogando truco; discutiam o tema de todos os dias: — o tempo, o peixe, o vento e, algumas vezes, política, o que me divertia muito. Era a Praia da Enseada, naquele tempo, isolada da cidade, mas, plena de beleza poética. Possuía umas vinte habitações ao todo, de construção pobre, mas, em compensação, ricas de luz e harmonia. Eram os seus habitantes gente simples de costumes sadios e precisos em suas ações. Em breve me fiz amiga de todos êles e, para facilitar a vida, troquei meus trajes femininos por outros, masculinos. Agora sim! — pensei — ia trabalhar, e, com o tempo, também possuiria minhas redes! Foi essa a época mais feliz da minha vida. Da manhã à noite eu lidava com peixes, aprendendo na convivência do homem litorâneo, usufruindo a vida e bem alicerçada na Fé.
















Entre os moradores da pitoresca praia, havia um que se sobressaía aos demais pela agudeza de seu espírito, nunca faltando onde a ação exigisse sua presença. Esse pescador é, hoje em dia, homem de negócio na próspera Ubatuba. Já fazia seis meses que, felizes, morávamos no Retiro Azul, pois assim eu batizara o nosso lar. — Como adoro este nosso ranchinho! — dizia eu. — Meu e não seu... — respondia Albino com ar trocista. Você não pára em casa.. . Era uma grande verdade. Apenas despontava a madrugada e os primeiros raios de luz beijavam o mar, já ali me encontrava, extasiada. Despertava de meu encantamento, chamada à realidade da vida pela voz de Albino, reclamando o café da manhã. Êle não se conformava com tão "maus costumes" da minha parte. Ralhava: — Até parece que você casou com o mar e não comigo! — Mas, meu bem — retrucava eu, desapontada em ver os meus devaneios detestados por Albino — eu não tenho culpa de ser assim! Adoro o esplendor deste oceano e a sua imensidão! É um espetáculo que sempre se renova e age poderosamente em mim... Eram apenas rusgas conjugais, logo desfeitas. Hoje vivo da saudade delas e daqueles tempos já tão distantes.
No mês de julho a nossa praia animou-se. Em todos os lares notava-se desusado movimento: caiavam-se as paredes, lavava-se o chão e, o próprio pescador guardava a canoa no rústico galpão, antegozando o que lhe era muito caro: A "Folia do Divino". Estava na Ribeira, cantando na casa do João Glorioso, pescador conhecido, homem bom, de honestidade comprovada em todo o município de Ubatuba. Em nossa casa não havia espaço para receber a ''folia", pois a sala principal tinha sido transformada no negócio de Albino. No dia em que o Divino chegou à Praia da Enseada, fechamos a venda e ambos fomos assistir a festa, na casa de um parente de meu marido, o Gil. Desde a manhã que este não cansava de carregar comidas e bebidas mandadas vir expressamente da cidade, aos cuidados de João Vitório. Sinto-me emocionada ao recordar a expressão feliz que animava aqueles semblantes honestos e cheios de vida, na expectativa ansiosa de receber a Jesus em seus lares (quão santa e pura é a fé do homem do mar!). Lembro-me bem que eu mesma me senti comovida, quando a Bandeira do Divino apontou na estrada, na frente de um cortejo, carregada por uma bonita praiana. Avançava, as fitas esvoaçando ao sopro da viração, lentamente, pois muita gente detinha a jovem no caminho, fazendo-a baixar as fitas para serem beijadas. Muitas delas eram cortadas e enroladas para serem guardadas como amuletos. Esses costumes, quase totalmente desaparecidos, deixam agora somente recordações daqueles tempos, daquela gente simples e boa, que vivia longe dos homens e perto de Deus. Foi para mim, neófita nesses ritos, um espetáculo maravilhoso! Ver naquela gente metida em seus trajes domingueiros, com os olhos fisgados no grupo solene dos violeiros. .. Então, o mais moço deles, um guapo praiano, adiantou-se aos companheiros, inclinou a cabeça sobre a viola e com voz ampla e sonora modulou estes versos singelos:
"O Divino Espírito Santo nesta casa vai entrar;
Êle vos pede pousada e também o que almoçar"
Depois deste improviso foi que o simpático violeiro, acompanhado por todos, entrou nos pagos do Gil. A dona da casa, tendo recebido a Bandeira, carinhosamente levou-a para o interior, cobrindo-a com alva e rendada toalha. Em seguida, veio sentar-se a meu lado e perguntou-me: — É bonito, dona Idalina? — Não, Dita. O que estou vendo é mais do que bonito. É simplesmente maravilhoso! — Olhe, querida! Olhe para a expressão fisionômica destes homens! continuei — Parecem crianças recebendo um brinquedo ardentemente desejado! Por minha vez, senti como um nó na garganta, sem saber definir o porquê desse estado d'alma. Foi então que a voz jovem e bem timbrada do segundo violeiro, cantou os versos seguintes:
"Descansando em vossa casa,
Linda flor de mãe querida,
Pergunto a senhora dona
Onde está nossa comida."
E, depois bem almoçados:
"Espiai pro Espírito Santo,
Lindo colar no pescoço.
Deus ajude com saúde,
Quem nos deu tão bom almoço.
O Divino deu um "viva",
Em toda parte se ouviu.
Peço a Deus que abençoe,
Quem nossa mesa serviu."
Já à noitinha, depois de muita cantoria, vinha o fecho:
"Mais um "viva" se ouviu
Quando se escondia o sol.
Peço a Deus que me dê
Uma cama e um lençol."
Fazia-se tarde e Albino foi despedir-se dos donos da casa, enquanto eu, depois de uma longa volta em torno da casa, e também de levar alguns empurrões, consegui me aproximar do "folião", nome esse que, a meu ver não combina com as suas atribuições, tão a sério êle leva o desempenho do papel de violeiro-cantador. Quis sondar-lhe a alma para descobrir de onde vinha o encanto que emanava da sua poesia. O simpático praiano, ao saber do meu interesse, repetiu-me os versos que garatujei em uma folha de papel, com a promessa, da minha parte, de devolvé-lo no dia seguinte, a fim de que êle o guardasse. — Afinal, Idalina, para que você quer estes versos ? — perguntou Albino; e vendo que eu não respondia, continuou sorrindo: — Será que você pretende cantar folia? Não meu bem! Se Deus quiser, não há de ser preciso você fazer tanta força assim... Mesmo porque — juntou trocista — a escutar o seu canto, prefiro mil vezes o coaxar da rã do brejo... Não respondi. Cantarolando baixinho os versos que escutamos do moço violeiro, sentia ecoar no meu coração a singeleza das rimas, tão de acordo com o ambiente rústico e simples.
Enfim, chegamos à nossa casinha. Albino reassumiu seu posto no balcão, e eu, bem a contragosto, guardei os meus sonhos em uma caixinha para momentos mais apropriados. Ouvi, no decorrer da noite, o som das violas, acompanhando o canto do "folião".
O dia seguinte amanheceu lindo, com o sol amigo. Estávamos ainda no café da manhã, quando Dita entrou em casa correndo. Como era bonita a caiçarinha! Cabelos castanhos e crespos, olhos esverdeados tendendo para o azul. Eu sempre dizia, brincando com ela: — Menina, do quem você é namorada. Do mar ou do céu? E ela dizia: — Dos dois, dona Idalina. E foi a graciosa moça que, com algazarra juvenil, nem deixou o meu marido abrir o armazém, dizendo: — Não dará tempo, "seu" Albino. O folião vai cantar a despedida! Adiantando-nos em louca corrida, partimos as duas para a praia ensolarada, apesar dos veementes protestos de Albino, que vinha mais devagar. Antes de chegarmos esperei-o, e, já agora compenetrada do papel de senhora casada, parei, tomando fôlego. Em seguida abrimos caminho através dos nossos amigos. Assim posso chamá-los, pois na realidade, sem exceção, eram todos bons e carinhosos para nós. A "Folia" já estava de saída. Sorridente, o jovem cantor adiantou-se e gentilmente pediu licença a meu marido para oferecer-me os primeiros versos da despedida. Concedida a licença, o mesmo levantou a voz e cantou:


"Dizem que mulher de fora
 Jamais gosta do lugar
 Mas esta dona tem cara
 De quem aqui vai ficar.
 Mercê veja se acostuma
 E desde já vá criando,
 Pato, galinha e ganso,
 Que para o ano voltamos.
 A esmola que vós destes.
 Lá na Glória chegou:
 Os anjinhos receberam.
 Nossa Senhora guardou.
 O Divino foi prá Glória,
 Foi buscar a boa sorte
 Pra casa onde almoçou."

Vi-os partirem com saudade. Foram momentos felizes esses que vivi, nos primeiros dias da minha chegada à Enseada. Mais de trinta anos são passados. Porém, em minha alma, ainda mora a recordação viva da festa do Divino, que eu vira pela primeira vez. É o passado ainda perfeito, trinta e poucos anos depois, que fala nas páginas deste livro. É também uma homenagem aos meus amigos de então, que habitavam a Praia da Enseada. Uma vez por outra, tangida pela saudade, eu procurava recordar os versos, tão simples em seus dizeres e tão belos na voz de um filho daquelas praias.

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