Mergulho revela restos do maior naufrágio do Brasil
O Globo Mar desta quinta-feira (14) navegou em águas do litoral norte de São Paulo, onde o canal de São Sebastião separa o continente da Ilhabela. A equipe do programa foi ao local para falar dos misteriosos naufrágios da ilha. O repórter Ernesto Paglia mergulhou no mais ilustre de todos eles.
Em um dos trechos mais desenvolvidos de toda a costa do país, a 200 quilômetros da maior metrópole do Brasil, São Paulo, ainda encontra-se populações que fazem questão de continuar isoladas para poderem continuar a viver do seu modo tradicional. São os caiçaras, aqueles povos que resultaram do encontro entre o europeu e o indígena. Gente que, aos poucos, está se transformando em fazendeiros do mar, para poder continuar sendo tradicionais caiçaras.
Ilhabella é um dos pontos mais bonitos de todo litoral norte de São Paulo. Foi lá que, em 1916, ocorreu o maior naufrágio em águas brasileiras até hoje. Mergulhadores experientes levaram a equipe do Globo Mar até o local.
O poderoso catamarã Santtina, barco com dois cascos e 70 pés de comprimento, ou seja, 21 metros de embarcação para carregar todo o equipamento da equipe.
O primeiro rumo era perigoso e sombrio: a Ponta da Pirabura. Foi lá que naufragou o lendário Príncipe de Astúrias. Foi uma tragédia. Oficialmente, morreram 440 pessoas. Apenas 143 sobreviveram. Mas fala-se que havia mais de mil passageiros clandestinos. Gente que fugia da Primeira Guerra Mundial.
Tragédia em pleno Carnaval
E tudo aconteceu em uma madrugada de segunda-feira de Carnaval. No salão da primeira classe, uma banda ainda tocava para os poucos passageiros acordados. O mar estava agitado – a chuva atrapalhava a visão. De repente, o clarão de um relâmpago revelou o perigo: o Príncipe de Astúrias tinha saído da rota e estava indo em direção às pedras da Ponta da Pirabura.
As rochas submersas rasgaram um buraco de 45 metros no casco do navio. As caldeiras explodiram. O barco começou a afundar. Só deu tempo para jogar um bote na água, salvação para 17 sobreviventes. Centenas de passageiros se atiraram ao mar. Muitos morreram arremessados nas pedras pelo mar bravo. Em menos de cinco minutos, o orgulho da Marinha mercante espanhola estava no fundo.
Os destroços do Príncipe de Astúrias estão espalhados na encosta. Começam no rasinho, a dez metros de profundidade, e vão a até os 50 metros. É um mar de plâncton. Os bichinhos microscópicos flutuam na água fria e acabam com a visibilidade. A proximidade do canal do Porto de São Sebastião também não ajuda. Cada navio que passa levanta mais lodo do fundo.
Quase cem anos de convívio com o mar já transformaram o casco do Príncipe de Astúrias em um recife artificial. Nas estruturas, jardins de corais, algas e esponjas.
Curiosamente, não há muitos peixes. O que contribui para a sensação de que o lugar é meio assombrado.
Para deixar tudo mais sombrio ainda, as estruturas surgem tombadas, retorcidas. Resultado das diversas explorações que reviraram o Príncipe de Astúrias ao longo dos anos.
Fazendas marinhas garantem moluscos saborosos
A mesa pode ser muito boa no rico litoral norte paulista. Em Picinguaba, quase na divisa com o Rio de Janeiro, um projeto pioneiro tenta criar uma opção para os pescadores das comunidades caiçaras – legítimos descendentes do encontro dos primeiros europeus com as tribos da costa. Essa opção se chama vieira, uma delícia dos mares que está sendo cultivada em balsas enormes, verdadeiras fazendas marinhas.
As vieiras são moluscos. Vivem dentro de bonitas conchas, daquelas que se costuma usar para servir casquinha de siri. Um alimento fino, cultivado na região em uma espécie de prateleira de rede. São chamadas de “lanternas”, porque se parecem mesmo com aquelas luminárias orientais, tipo sanfona.
Debaixo d’água tem longas filas de lanternas, carregadinhas de vieiras.
“A gente vai manejando elas durante o crescimento. Vamos sacando das lanternas, limpando e separando por tamanho. E voltando para a água”, explica o maricultor André Bérgamo.
Os pescadores de Picinguaba se organizaram. Com a ajuda de uma ONG, foram ao Chile e aprenderam os segredos do cultivo. Usam sementes fornecidas por um laboratório de Angra dos Reis e pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Doze pescadores formam a cooperativa. Cada um recebe um salário-mínimo por mês. Mas não é só isso.
Eles dizem que a maricultura – ou aquicultura – é bem mais tranquila que a pesca.
“Pescar é complicado, tem um risco. Aqui estamos perto de casa”, diz um deles.
“Também temos a segurança da produção, que é garantida. Na pesca é uma sorte”, completa outro.
Técnica japonesa ajuda caiçaras a pegarem o peixe de cada dia
O segundo destino do Globo Mar desta quinta-feira (14) foi a Praia da Picinguaba, quase na divisa com o litoral sul do estado do Rio. No local, a equipe de reportagem do programa conheceu o cerco flutuante. Segundo o pesquisador Marcus Henrique Carneiro, é uma pescaria que veio do outro lado do mundo.
“Ela foi introduzida no país na década de 1920 com a imigração japonesa. Posteriormente à Segunda Guerra Mundial, depois da década de 1940, com a mudança do esquema dos japoneses no Brasil, essa técnica ficou sendo utilizada pelos caiçaras”, explica Marcus Henrique Carneiro, que é do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento do Litoral Norte.
O cerco, já diz o nome, é uma armadilha em forma de círculo. O peixe vai entrando e, quando está lá dentro, já era. Não consegue mais sair. João e Tião são da Praia da Picinguaba e, pelo menos dois meses por ano, tiram o sustento do cerco. E tudo a bordo de uma embarcação, que é outra tradição na região: a canoa caiçara.
Caiçara preserva modo artesanal de construir canoa
Ubatuba, dizem alguns, quer dizer “lugar com muita canoa”. Renato da Cunha Bueno trabalha na beira da Rodovia Rio-Santos, que levou o movimento para a região na década de 1980, e faz canoas como antigamente, no tempo em que o transporte todo era feito por mar.
“Eu praticamente nasci dentro de uma canoa. Eu, meu pai, minha mãe, meu irmão. Tudo caiçara. Sempre gostava de construir canoa pequenininha de madeira. Fui aprendendo a fazer as canoas maiores”, disse o artesão Renato da Cunha Bueno.
Renato sabe o quanto é importante cuidar do que resta da Mata Atlântica. Por isso, só trabalha com árvores que caem sozinhas na mata e com autorização do Ibama. Um tronco de quase dois metros vira canoa.
Renato vai desenhando o formato do casco com uma motosserra. Depois vem o acabamento. Para dar a proporção certa à canoa, ele não pega régua nem compasso. O melhor jeito é usar um barbante besuntado de carvão. Uma ideia genial, sabedoria de velho caiçara.
A motosserra é o toque moderno, facilita muito. Mesmo assim, são três horas até o barco ganhar forma.
O mais incrível é a simetria que ele vai fazendo no “olhômetro”.
“Eu queria que o pessoal se interessasse mais e aprendesse a fazer para não morrer. A cultura caiçara da construção da canoa”, lamenta Renato.
No mar da Picinguaba, João e Tião agradecem. Para eles, canoa é mais que história – é ganha-pão.
Pesca do cerco flutuante preserva os cardumes
No mar da Picinguaba, a canoa dos pescadores volta para a água. Chegou a hora de ver o que o mar trouxe para o cerco. Eles vão puxando a rede. Vão avançando e levando a rede para dentro do bote ou da canoa e assim eles encurralam o peixe.
Infelizmente, desta vez, não foi muita coisa. Mas tinha bonito e sororoca, peixes bons para o prato e para o bolso dos pescadores. A sabedoria do caiçara manda soltar o peixe menor para não acabar com os cardumes. Essa é a vantagem dos 65 cercos registrados no litoral norte de São Paulo. Graças a eles, os pescadores da região tiram 300 toneladas por ano. Uma quantia que não compromete o sustento de amanhã.
Mexilhão: sustento garantido e meio ambiente protegido
Pertinho de Picinguaba, outra atividade que garante o futuro: o cultivo do delicioso mexilhão. Ele evita que os catadores acabem com a espécie catando o bicho nas pedras, especialmente as sementes. Os filhotinhos são fornecidos por institutos de pesquisa. Paulinho, pescador do cerco, cuida de uma fazenda de mariscos. Segundo ele, são quatro toneladas.
O bicho leva sete meses pra ficar do tamanho que o consumidor gosta. Na mão do maricultor, o marisco vale R$ 3 o quilo.
“E uma outra coisa importante: ele se torna protetor do meio ambiente, porque ele só pode plantar mexilhão se a água estiver limpa. O maricultor por si só já é um defensor da natureza. Ele protege o ambiente onde tem uma atividade econômica”, ressalta Marcelo Vianna, consultor científico da UFRJ.
Ilha de Búzio: um lugar onde o tempo parou
A Ilha de Búzios é a segunda maior do arquipélago de Ilhabela. A cada 40 dias, uma equipe médica muda o posto de trabalho para o local. E, para isso, abrem mão de alguns confortos do consultório. Até porque a ilha não tem porto, nem praia. Desembarcar é uma aventura.
Na escola já tem paciente na fila. É o tempo de o pessoal desempacotar remédios, balanças e até um gabinete dentário.
“A maioria dos atendimentos é com a criança. Buscamos mais a prevenção para transformá-los em adultos saudáveis”, explica Gil Pinna Neto, dentista.
A médica comunitária Sonia Soledano não se assusta com a falta de equipamentos. “Eu sou da época em que a gente tinha mão e ouvido: eu apalpo e escuto”, comenta.
No dia em que a reportagem foi gravada, até educadora física ensinou o povo a alongar os músculos castigados pelo trabalho em casa, no mato e no mar.
Na Ilha de Búzios e nas outras ilhas do litoral acontece uma espécie de congelamento do tempo. O Genésio nasceu no local e teve o registro feito em um pedaço de papel de caderno: Genésio Justino Costa, nascido no dia 14 de julho de 1941. Era o único documento que ele tinha.
A equipe de saúde teve que cuidar até disso. Eles acabam fazendo documento, de tudo um pouco. “A gente acaba se envolvendo com tudo. Hoje em dia ainda tem gente que não tem documento e não conseguimos fazer nada”, conta o enfermeiro Gerson Margarido dos Santos. O atendimento tem de começar do bê-á-bá no lugar onde parece mesmo que o tempo parou.
Em uma casa típica, feita de pau a pique – barro misturado com pouco de palha e cobertura toda de sapé – é feito o trabalho da farinha.
“Há 11 anos que estou aqui e eu não troco este lugar pela cidade”, conta Katia Regina Guimarães, moradora da ilha. “Eu quero que meus filhos sejam pescadores. Eles querem ser pescadores com o pai”, completa.
Quando mira o futuro, a garotada de Búzios quer mesmo é repetir os exemplos que, na ilha, ainda valem muito.
“Meu pai me ensinou a pescar. Tudo que eu sei aprendi com meu pai”, diz Guilherme Santos de 11 anos.
“Meu futuro é pescar”, revela outro menino.
O Globo Mar se despede torcendo para esta gente simples conseguir ficar onde sempre esteve, fazendo o que mais gosta, servindo de sentinelas de um dos pedaços mais bonitos do nosso mar.
Os moradores da região estão preocupados com os planos de expansão do Porto de São Sebastião. O Ibama avalia as consequências das obras para o meio ambiente.
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