Por Eduardo Antonio de Souza Neto -
Original do site :
http://www.ubaweb.com/ubaweb/n18/18_art3.html#ubatuba
"Todavia, tudo quanto naquele reino santo a minha mente pôde entesourar será, agora, objeto de meu canto."
(Canto I, 10 - Paraíso - A Divina Comédia - Dante Alighieri)
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Quanto
à nossa velha Ubatuba, meu caro Aládio, comparo-a a Helena, prisioneira
dos troianos dentro de muralhas inexpugnáveis, e às vezes me sinto como
se fora um insignificante soldado aqueu cansado, depois de tantos anos
de duras e sangrentas batalhas, que em determinado momento já não sabe
mais porque e por quem esta lutando e se vale mesmo a pena lutar. Fica
em dúvidas se há mesmo uma Helena prisioneira a ser resgatada, se tudo
não passa de um sonho e, quem sabe se, existindo Helena, queira ela
realmente ser salva das mãos de seus novos senhores. Talvez Helena seja
apenas um símbolo que inventamos, uma bandeira que elegemos para não
sucumbirmos, para não nos insularmos como ascetas ou internarmo-nos de
vez num mosteiro, tamanho é o tédio e os absurdos de hoje em dia. Será
que a Ubatuba de que sentimos saudade existiu mesmo? Não estaria a
memória a nos pregar uma peça? Será que essa Ubatuba foi tão esplêndida
assim, para que nos engajemos na tentativa de ao menos resgatar o que
nela entendemos ter havido de bom e que hoje, com raríssimas exceções,
nem sequer vestígios existem mais.
Mas que Ubatuba era essa? Quando viemos ao
mundo, e entre as nossas chegadas permeiam alguns irrelevantes anos, que
não alteram o contexto, o município devia ter pouco mais que cinco mil
habitantes. A cidade, a sede do município, era constituída de alguns
casarões e casas térreas erguidas no entorno da igreja matriz e a partir
da foz do rio Grande. Costumo dizer que, naquele tempo, portas e
janelas se miravam ao rés das ruas e que hoje elas se espreitam. As ruas
eram de terra, de areia, que em priscas eras, afirmam os entendidos,
fora fundo do oceano. Não eram ruas para privilegiar automóveis, que
praticamente não existiam. O primeiro automóvel que conheci quando
menino fazia um verdadeiro rali subindo e descendo a trilha dos índios
na Serra do Mar: o fordinho reluzente do seu Miranda, que me fazia
limpar os pés todas as vezes que me levava para dar umas voltinhas
triunfais pela cidade. Seu Miranda, o velho comendador, casado com dona
Lolita, era um português que residia em Taubaté e tinha uma belíssima
casa aqui, na Av. Iperoig. Esse casal, muito religioso e sem filhos,
marcou-me pela generosidade. As ruas de então, que são as mesmas de hoje
em trajes escaldante de luto asfáltico, eram para os carros de boi do
Fabiano, do Filetinho, para a carroça do Janguinho, para as bicicletas
do professor Lauristano, dos irmãos Rodolfo e Lindolfo Alves Pereira,
para os cavalos do Licir e do Joca, para as cabras de Dona Benedita
Tortolina, para a bela charrete do Marigny. Estas mesmas ruas serviam às
procissões, aos funerais, ao carnaval e principalmente às crianças que
as tinham como extensão de suas casas. Tenho comigo que o corredor da
casa de papai era um estreitamento da rua Dr. Esteves da Silva, a minha
primeira rua.
Aquela Ubatuba, enquanto arquitetura,
enquanto disposição física no espaço e no tempo era a expressão de nossa
gente e nossa gente nela se refletia. "À diferença de todas as espécies
zoológicas, o homem não conta com habitat natural próprio,
específico. Pode habitar onde queira, na extensão de todo o planeta, mas
para tanto precisa adapta-la ao seu modo de ser, emprestar-lhe
condições de habitabilidade."1 O modo de ser de nossa gente,
os ubatubanos, os caiçaras, seus valores, sua cultura, talvez seja o que
tívemos de melhor e que perdemos, quem sabe, irremediavelmente. O seu
brilhante texto, meu caro Aládio, mostrando um pouco do nosso carnaval, é
um retrato dessa alegria que um dia tivemos. Alguns pensadores negam
que o homem tenha uma natureza como, por exemplo, os animais, mas sim
uma biografia, que o homem esta sempre se fazendo e só se dá por acabado
depois de morto e que a liberdade o fundamenta. Talvez, por isso, seja
uma tremenda injustiça esquecermos os que já se foram, os que direta ou
indiretamente, com maior ou menor importância fizeram a história desta
cidade. Desde um simplório Dito Cambito, operando o projetor do nosso
Cine Iperoig, de que lamentamos a metamorfose em templo evangélico da
Igreja Universal do Reino de Deus,2 a homens como o professor
Joaquim Lauro, professor Cesar Aranha, o velho Bidico, o seu Félix de
Luna Marques, o velho Moraes, o Dorvalino, o Dr. De Luca, o Dr. Fraga,
os irmãos Angelo e Moacir Carpinetti, João Coutinho, Dona Idalina Graça
(para quem datilografava os textos que escrevia e com quem pude competir
em concursos de poesias, hoje extintos), Dr. Alberto dos Santos, Jehú
Nunes de Souza e tantos outros que um simples texto como este não
comportaria todos os nomes que faziam tão especial aquela Ubatuba.
Tenho comigo
que "A cidade que conta para nós é a que em nós trazemos, não a que os
construtores fazem. Mas os construtores são poetas, farão cidades que as
crianças futuras poderão trazer em seus corações."1 Talvez a
necessidade que temos de resgatar o que havia de bom na velha Ubatuba
provenha da sensação de que não dispomos, nos dias de hoje, de
construtores poetas, mas apenas de técnicos que só vêem funcionalidade e
cometem dramas em prosa e não poemas. Os que arquitetam esta cidade no
dia a dia não podem perder tempo com o sentido de uma praça, de um
jardim e de outros espaços públicos para o ócio, para o belo, para a
contemplação e para o brinquedo. São homens de nego-o-ócio, para quem
tempo é dinheiro e não podem se ocupar com poesia e sonhos.
Viver hoje numa cidade é apenas um acidente,
o que conta é a possibilidade que ela nos oferece para ganhar a vida ou
a vida do ganho, não passa de um instrumento, e os homens estão sempre
de partida quando o benefício é menor do que o custo. Mas as cidades
exigem sacrifício, amor. A nossa Ubatuba transformou-se lamentavelmente
no que é hoje devido a diversos fatores - a especulação imobiliária e a
construção civil foram fundamentais nessas transformações que a
descaracterizaram. A construção civil é a grande responsável pela
espetacular migração dos últimos vinte anos, nunca vista em todo o
estado de São Paulo, de gente que veio para cá em busca de trabalho, de
melhores condições de vida. Como se deu e se dá a interação dessa gente
toda com a população nativa? Como interagiram e interagem essa
diversidade de culturas?
Outro dia, fiquei sabendo de um senhor, uma
pessoa humilde, um migrante mineiro, que estaria criando em Ubatuba um
Centro de Tradições Mineiras para a defesa dos interesses dos migrantes
que foram trazidos para cá pelas empresas de construção civil. Estima-se
em dez mil aproximadamente e são, na maioria, de Ladainha e Teófilo
Otoni, cidades que não tiveram e não têm competência para evitar o êxodo
de sua populações. Ubatuba os recebeu sem ter condições para tanto.
Ubatuba, na verdade, inchou nesse anos e o prejudicado nessa história
foi o caiçara. Cresce na cidade o sentimento de que a causa principal de
todos os nossos problemas reside nesses migrantes que se instalaram em
determinados bairros e muitos até mesmo em favelas. Mas uma cidade não
pode se estruturar assim, em guetos, em espaços segregados, propiciando
futuros apartheides e preconceitos. Se é que já não estão presentes em
nosso cotidiano. Devemos estimular a interação de toda essa gente,
migrantes de onde quer que tenham vindo, com a população nativa e
constituir novamente um povo, pois a cidade, a pólis não se sustenta
senão na base da concórdia sobre o que são as coisas, sobre o que é
justo, o que é bom, o que é belo etc. "A existência e segurança do homem
depende da existência e segurança da cidade".1
Está na hora dos homens de bem, migrantes ou
não, ubatubenses ou ubatubanos, unirem-se num projeto comum que faça
desta cidade a melhor e a mais digna possível. Faço minha as palavras do
Professor Milton Santos: "Mas é preciso ter projetos. Só um projeto
estabelece valores. O risco de viver sem projeto é o risco de viver sem
valores, por conseguinte, sem referências". E acrescento: o projeto é a
imagem antecipada do que pretendemos ser. E, citando o professor Rubem
Alves, da Unicamp, em artigo na Folha de S. Paulo "...o desejo não é
engravidado pela verdade. A verdade não tem o poder de gerar sonhos. É a
beleza que engravida o desejo. São os sonhos de beleza que têm o poder
de transformar indivíduos isolados num povo." Às vezes, amigo Aládio,
sinto-me cansado e desmotivado, mas é em busca deste projeto de uma nova
Ubatuba que devemos prosseguir.
1 Do livro Perspectivas Filosóficas, de Gilberto Mello Kujawski - Livraria Duas Cidades.
2 Outro dia li, no lugar onde costumavam
ficar os nomes dos filmes em cartaz: "Domingo - 20:00 hs - Encontro com
Deus." Será, Aládio, que é com o Charlton Heston?
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