Este depoimento nos mostra a força e a sabedoria do
cotidiano de um caiçara, do ubatubense Jorge Fonseca
Jorge Fonseca tem 81 anos, nascido em Ubatuba, é
filho de Jesuíno Joaquim da Fonseca e Donária Maria da Conceição. Ele fala da
origem de sua família e diz que seu avô, pai de Donária, era Antônio Lopes
Guimarães - neto de francês, que juntamente com Dona Maria Alves, chegou ao município vindo de Rio de Janeiro.
Antonio já estava viúvo, porém casou-se novamente com Izabel da Conceição, uma
índia mestiça descendente de escravos. Antônio Lopes, avô de Jorge Fonseca
adquiriu terras em Ubatuba de Dona Maria Alves, transformando-as em fazenda.
Eram grandes áreas localizadas nas Toninhas, Casanga e Cedro, onde se cultivava
plantações de fumo, café e cana, que depois transportavam à Santos em canoa de
voga.
A família de Jorge Fonseca era formada por mais
sete irmãos, eram eles: Hortência, Nestor, Maria, “Guaiá”, Luiz e “Biscoito”.
Este último, tornou-se muito conhecido em Ubatuba pelo ofício de tintureiro.
Biscoito, como era carinhosamente conhecido por todos, morava bem no centro de
Ubatuba, nas proximidades onde hoje se encontra a casa lotérica, ao lado do
Cartório Eleitoral. Biscoito passava roupas para os clientes da lavanderia de
sua mulher: eram ternos, camisas e
vestidos. Sua janela, que fazia frente à Rua Coronel Domiciano, era local
conhecido por muitos ubatubenses, pois ao mesmo tempo em que Biscoito passava
as roupas, sua televisão - a primeira de Ubatuba vivia ligada, servindo de
passatempo para muitas pessoas que ali paravam para jogar uma conversa fora e
assistir a programação diária.
Jorge morou até os 15 anos em uma área, onde hoje
se encontra a Praça Treze de Maio, uma propriedade de seu pai Jesuíno Joaquim
da Fonseca que plantava e criava animais, não só ali como também em áreas localizadas
no Horto. Trabalhou de sol a sol até o final de sua vida, de forma trágica aos 86 anos. Segundo Jorge
Fonseca, em um sábado de Aleluia, seu pai e mais dois irmãos foram à costeira,
na praia do Perequê Açu para “catar” marisco e, na volta, no meio do caminho,
seu Jesuíno decide apanhar mais um pouco, e estando de costas para o mar agachado,
uma onda forte o derrubou e o arrastou para o fundo do mar. No dia seguinte, no
domingo de Ramos acharam seu corpo com a cabeça ferida, na praia do Perequê Açu
e ajudado pelo Félix Guisard, o levaram, na sua camionete, até a Santa Casa,
mas sem vida. Já, Donária Maria da Conceição, mãe de Jorge Fonseca, era
parteira muito conhecida em Ubatuba, era difícil encontrar algum cidadão que
não houvesse nascido nas mãos de
Donária. Ela, depois de muitos anos de Ubatuba, decidiu morar em Taubaté nos
anos 40, retornando à Ubatuba onde veio a falecer anos depois.
Jorge lembra com emoção e prazer de sua infância em
Ubatuba. Brincava, caçava passarinho com estilingue, vivia grandes aventuras desfrutando a natureza junto a seus amigos. Uma
época em que ganhar alguns réis, era um privilégio permitido também às crianças.
Ele conta que pelo menos uma vez por semana, atracavam navios na costa, como o “Aspirante”
ou o “Taipava”, trazendo além de cargas e mantimentos, alguns poucos turistas
que ficavam no antigo e famoso Hotel Felipe. Jorge e alguns amigos corriam pelo
caminho que levava até a praia do Matarazzo, onde esperavam pelos pequenos
botes que traziam até a areia os tripulantes do navio e as cargas. Então,
ajudavam os turistas com suas malas levando-os até o hotel Felipe, ganhando
boas gorjetas. Jorge Fonseca lembra que não era qualquer um que ficava em
estadias naquele hotel pois suas diárias chegavam a vinte e trinta mil réis.
“A minha mocidade – nos diz o entrevistado -
começou a ser mais aventureira.” Sobretudo quando começou a aprender a caçar,
utilizando espingardas 36 e depois uma 28. Acompanhado de alguns amigos, embrenhavam-se
nas matas praticamente virgens de Ubatuba, algumas vezes chegando às divisas
com outros municípios onde ficavam de uma a duas semanas. Mas lembra que não
era necessário ir tão longe para achar as caças preferidas e até um rancho eles
construíram em local bem próximo como o Taquaral. Ali eles encontravam uma
diversidade de animais como cotia, raposa, jacutínga, “porco do mato” e uma
variedade de aves com o tucano, macuco, sabiá e outros. Jorge hoje se arrepende
desta prática predatória, pois muitos animais tinham suas vidas interrompidas
por um tiro de espingarda. Ele lembra que uma vez, até macaco eles caçaram,
atirando pelo menos em dois deles e que ao limpá-lo, na hora de pelar, quando o
viu, disse que parecia muito com gente. Mesmo assim, já que caçaram, comeram o
tal macaco. Em uma outra oportunidade, jurou nunca mais repetir o fato, atirou
em uma preguiça e quando chegou perto dela para pega-la já morta, havia um
filhote agarrada a barriga da mãe. Jorge ficou triste e chateado, jurando que
nunca mais mataria este tipo de animal, bem como os macacos. O filhote da
preguiça ele acabou levando para terminar de criá-lo, mas acabou dando a uma
mulher que prometeu criar e depois soltá-la para a mata.
Jorge lembra também que já moço, aprendeu a fazer
tarrafa, sozinho e que depois, em vez das caçadas, preferiu as pescarias de
tarrafa em rios[1]. Naquela
época em Ubatuba, ninguém sabia fazer tarrafa, então um dia desses Jorge comprou
um novelo de linha para tentar fazê-la sozinho, como não conseguia , resolveu
dormir. Conta que sonhou estar fazendo a tarrafa de acordo com sua intuição e
ao acordar, rapidamente, tentou lembrar do feitio, assim fez e teceu sua primeira tarrafa. Começou a
pescar, jogando tarrafa no rio da Bica, na Picinguaba e no rio Quiririm na
praia do Ubatumirim, local onde fez muitas amizades que permanecem até os dias
de hoje.
O entrevistado disse que antigamente passava fome
em Ubatuba quem queria, eram muitos peixes, uma variedade como tainha, robalo,
carapeva e havia muito peixe tanto no mar como nos rios. Conta também que na
praia do Itaguá havia cercos que chegavam a amontoar tantos peixes que ao final
da distribuição se enterravam as sobras. Em época de tainhas, elas chegavam à
baia do Itaguá em grandes cardumes, eram cercadas pelas canoas dos senhores
Antonio Vieira, Alfredo Vieira, Benedito Junior e os Liberatos. Eram grandes
redes, puxadas até a praia. Uma grande quantidade de enormes tainhas, que ao
final eram repartidas entre eles e distribuídas à comunidade. Jorge Fonseca
sente que hoje a coisa é bem diferente daqueles tempos de fartura. Diz que hoje
os peixes são mirrados e a quantidade que vem nos arrastões da praia do Itaguá,
mal alcançam para uma família de poucas pessoas.
Jorge Fonseca relembra os carnavais de Ubatuba com
muita nostalgia, comenta que ele sempre foi um boêmio, desde os 10 anos de
idade. Costumava escrever letras de marchinhas carnavalescas para os blocos que
puxava. Diz que quando tinha uns 8 ou 9 anos de idade, seu pai fez um pandeiro
de couro e tampinhas e o levava na rua para ver o bloco “Taruma”, um dos blocos
mais famosos de Ubatuba. “Ubatuba já teve o melhor carnaval de rua do litoral
paulista.” Além do Taruma, havia a Dança da Fita, a Dança do Bugre, do Boi do
Itaguá e do Boi do Centro, a Banda do Cipó, o Moçambique do Mané Raé e até o casamento caipira que era
realizado em pleno carnaval, na praça da matriz.
Jorge Fonseca lembra que o carnaval era realizado
na maioria das ruas do centro e o corso parava em frente de casas que pediam. Até
o Hotel Felipe marcava a presença dos blocos carnavalescos que desfilavam pelo local onde mais tarde
seria a Avenida Iperoig. Bares
convidavam o bloco do seu Jorge a tocar no local e também no antigo Hotel
Atlântico. A alegria era tanta que as pessoas amanheciam nas ruas , pura
diversão, sem perigo e sem maldade. Ele relembra dos blocos “os mascarados” que
anunciavam o carnaval a partir das duas horas do primeiro dia, domingo,
fantasiados de forma assustadora.. Eram sacis, caveiras, fantasias de vermelho
imitando o diabo, personagens que
corriam atrás das crianças para assustá-las. A partir das dez da noite, alguns
se vestiam de morte e saiam fantasiados de caveiras, carregando foices. O
último dia era na terça-feira, respeitando a quarta-feira de cinzas quando
religiosamente, nenhuma alma viva saia às ruas em sinal de sacro respeito.
Jorge Fonseca era um grande carnavalesco, chamado
de mestre, levava a sério os ensaios e as marchas que eram escritas por ele, por exemplo a
marcha “Pela primeira vez”, entre outras de sua autoria. Ensaiavam em um mês e
meio e o numero de pessoas era de 70 integrantes fantasiados. Sua esposa, Dona
Celina ficava responsável por sua fantasia pronta e no cabide, depois ela poderia
confeccionar as outras, atravessando, para isso, noites em claro. Os ensaios aconteciam em salões emprestados como no Ateneu, perto da igreja Matriz que
foi liberado pelo Padre João. Em outros anos, tais ensaios foram no salão de
Dona Idalina Graça: “As de Ouro” e “O boêmio de ouro”.
Eram realizados campeonatos entre os blocos,
disputas que davam prêmios em dinheiro e troféus recebidos das mãos do
Matarazzo, quando prefeito. Jorge Fonseca diz que todos os anos tirava blocos
nos carnavais da cidade, entre os anos de 1940 à 1972. Depois parou, viu que
não era mais a mesma coisa, que as pessoas começaram a querer bagunça em vez de
diversão sem violência. No início dos anos oitenta, ele volta atendendo ao convite
de seu compadre e amigo Toninho Marques, sendo esse o último de seus carnavais
frente a um bloco de rua. O bloco foi o “Pé de Cana”, onde as pessoas em uma
fantasia muito simples, feita de saco de pano, empunhando uma ponta de cana em
folhas pulavam descalços pelas ruas do centro da cidade relembrando décadas
anteriores de sua juventude carnavalesca. Jorge Fonseca termina a nossa
entrevista falando sobre os carnavais antigos de Ubatuba, lembrando nomes de
pessoas da época que tiravam blocos: Mane Raé (Moçambique), Joaquim Rita (Banda
Cipó), João Vitório (Dança da Fita); Antonio Argeu (Dança do Bugre) e Dona
Maria do Paulo (Dança Sempre Viva), estes os mais antigos. A partir dos anos
40, quando ele começou junto com Bibaco, Ditos Roque, Evaristo, Jonas, Antonio
Barbosa, Bideco, Cacareco, Emílio, Miguel Argel, Zé Graciano, Quinzhinho,
Virgínia, Benedita Efigênia, Maria di Bê, Catarina, Iracema entre outras
pessoas que vinham, inclusive de outras cidades.
Os enunciados do discurso de Jorge Fonseca são
signos de uma realidade que dialoga o tempo todo com o passado, de forma
imediata e prática. A revitalização do entrevistado parece vir de sua voz, meio
pelo qual ele se transforma em protagonista principal da história. As palavras
assim cobraram vida e nos envolveram. As palavras percorreram todos os
domínios, costurando as informações sobre as origens de sua família, sobre seu
trabalho e sobre o carnaval no qual ele era festeiro. Esse saber do cotidiano
parece ser, na a concepção caiçara essencial à própria existência, centro de
organização de toda a fala de Jorge Fonseca, assim como de todos os
entrevistados, é a expressão do interior e do exterior, situada no âmago do
meio social do qual o caiçara faz parte. Ele é o espaço privilegiado dessa
dinâmica humana em que o ser constrói e se desconstrói no cotidiano, lugar onde
penetram os meios de comunicação.
As ciências através da dialética da vida real,
podem planejar só a partir de um sistema de abstração, a linguagem. As
manifestações da vida cotidiana de uma cultura como a caiçara oferecem aos
estudiosos da linguagem um campo fértil para a decifração dos códigos
refratados de cada manifestação ou atitude que se reveste de dois lados: o
trabalho e a existência, a objetividade e a subjetividade, a mudança e a
permanência. A totalidade de toda essa “solidariedade” está presente de maneira
evidente nessas relações do cotidiano caiçara, movido pela grandeza do mar e
pela altura da serra que separa Ubatuba do resto do mundo e que exacerba o
imaginário cultural contendo-o nesses limites. O caiçara sabe da existência de
outro mundo: “de lá fora”, das grandes metrópoles como Rio e São Paulo ou de
seus pequenos vizinhos. Informado daquilo que acontece por meio da televisão,
das conquistas da tecnologia e da violência destrutiva do terrorismo, mesmo na
tentativa de se adaptar a essas formas evasivas que o turismo de massa tem
propiciado, ele permanece fiel a sua vida. Nesse espaço fechado entre a serra e
o mar, o caiçara sente-se protegido, pois “Ubatuba é o melhor lugar para se
viver”.
[1] Tarrafa é uma espécie de rede em forma de funil
com chumbo nas suas bordas, que ao ser lançada na água se abre em um raio de
extensão considerável, afundando com o peso no sentido para baixo propiciando a
captura dos peixes.
Parte integrante o livro :
UBATUBA , ESPAÇO , MEMÓRIA E CULTURA " - eDITADO EM 2005 , por Jorge Otavio Fonseca ( filho de Jorge Fonseca ) e Juan Drouguett...
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