A preservação da paisagem histórica da Mata Atlântica transforma-se em fonte de renda para comunidades caiçaras, na produção de novelas, filmes e minisséries de época
Imagine rodar um filme sobre o Descobrimento do Brasil num cenário natural, sem desmatamentos, sem fios de eletricidade, sem ruas asfaltadas, nem marinas ou pousadas, condomínios e casas em meio à vegetação nativa. E sem recorrer a efeitos especiais. Impossível? Não. Existe um lugar com a paisagem original da Mata Atlântica preservada e a muralha da Serra do Mar ainda intacta - exatamente como há cinco séculos atrás. Fica no município de Ubatuba, litoral norte de São Paulo: é o Núcleo Picinguaba do Parque Estadual da Serra do Mar, uma das unidades de conservação da rede administrada pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo através do Instituto Florestal.
O cenário perfeito é o único trecho da Mata Atlântica sem alterações na cota zero. Em todo litoral brasileiro, não existe outro ponto onde a floresta primitiva se encontra com o Oceano Atlântico e até as praias - cinco, no total - estão protegidas por um parque, sem sinais de ocupação humana. Nas imediações, existem apenas quatro comunidades caiçaras, que resistiram às pressões da especulação imobiliária e mantêm sua organização original, 'invisíveis' para quem olha - ou filma - de fora. Por isso, quando pensam em reconstituição histórica ou ambientação em ecossistema preservado, os produtores de cinema e televisão recorrem à paisagem da Picinguaba. Filmes, documentários, minisséries e novelas feitos ali somam pelo menos uma dezena. Entre eles, A Casa das Sete Mulheres, A Muralha, Um só coração, Caramuru - a invenção do Brasil.
"Como uma Onda", a atual novela das seis da Rede Globo de Televisão, é a mais recente história ambientada naquele cenário. Na Praia da Fazenda, sob a supervisão da direção do núcleo, foi reconstituída uma vila de pescadores, com seis casas de arquitetura açoriana, inspiradas em numerosas comunidades tradicionais do litoral brasileiro. A necessidade de uma produção em ambiente preservado beneficiou diretamente os caiçaras, que atuaram como figurantes na novela. Além disso, tem exposto na mídia o trabalho dos pesquisadores do núcleo e as vantagens de se preservar uma área com vegetação primária a apenas 300 km da quarta maior cidade do mundo, São Paulo.
Da montagem até as gravações foram três meses de movimentação para 80 moradores da vila de pescadores de Picinguaba. Um período de fartura para todos. Além de receberem como figurantes, eles ainda alugaram as embarcações utilizadas nas filmagens. E, no final, todo o equipamento de criação de ostra e marisco, que serviu de cenário, também foi doado à comunidade.
Nem o Núcleo Picinguaba, nem os moradores enxergam nestes extras uma fonte permanente de recursos. A maior conquista com a autorização das gravações da novela está na valorização da auto-estima das famílias caiçaras, conscientes da importância de defender o meio ambiente. Um grande reforço ao argumento dos técnicos responsáveis pelo Núcleo de que a preservação do cenário natural vale a pena, pela beleza cênica e porque, eventualmente, pode reforçar o caixa das comunidades. E do próprio parque, pois o núcleo recebeu pela locação do cenário o equivalente a três meses de seus custos de manutenção.
"A novela chegou na hora certa, foi um dinheiro extra para a gente e o pessoal", comenta o caiçara Orivaldo Carlos da Silva - o Caxaba. Ele figurou em cena como pescador e como vendedor de peixes, e locou três embarcações - um barco grande de alumínio e duas canoas. Nos dez dias de gravações trabalhou das 7 da manhã às 5 da tarde, com um dia de folga. Pela participação e pelo aluguel dos barcos recebeu o que demoraria dois meses para ganhar como pescador.
Esta já foi a segunda participação de Caxaba como figurante. Ele rebate a tese das pessoas contrárias à permissão do Núcleo em liberar espaços do parque para as locações de cinema e televisão. "Seria uma falha do parque se não tivesse deixado acontecer a novela", diz. "Todo mundo ganhou um dinheiro que não era esperado. Movimentou a economia da vila com aluguel de casas, pousadas, restaurantes e o artesanato. E se a escolha tem sido aqui é porque nós participamos na preservação da natureza, agora estamos ganhando com isso".
O caiçara, de 61 anos, descende de uma das quatro famílias fundadoras da Vila Picinguaba, que tem 200 anos. Começou a lidar com o dia-a-dia no mar aos 15 anos. Dos sete filhos - o caçula com 18 anos - três são pescadores. Conta que é da época do "barco do padre", a única embarcação utilizada pela comunidade para ir até Ubatuba vender os produtos. Para afastar os tubarões no trajeto, eles cozinhavam abóboras e iam lançando para os peixes. Caxaba viu a rodovia Rio-Santos ser construída - 457 km entregues em 1975 -, e o acesso dos turistas crescer. O ex-presidente Fernando Henrique, o ex-ministro Severo Gomes e o senador Eduardo Suplicy compraram casas na vila. O senador ainda mantém a dele.
As mudanças continuam, mas Caxaba e as famílias das Vilas de Picinguaba, da Almada, Fazenda da Caixa e a recém reconhecida Comunidade Quilombola do Cambury articulam-se para garantir sua permanência na área do Parque Estadual da Serra do Mar. A diretora do Núcleo Picinguaba, Eliane Simões, pondera: "Se nada disso estivesse protegido, não existiriam mais as comunidades. As áreas ocupadas chegam a 5% da extensão do parque. Cumpre-nos, agora, conciliar a melhoria das condições de vida dos moradores e a proteção ambiental".
As reivindicações são distintas em cada comunidade, mas todas são unânimes: ninguém quer ser removido para outra área. E não é esse o interesse da coordenação do Núcleo. O propósito é buscar soluções conciliatórias, embora a legislação de parques diga que as terras devem pertencer ao Estado e não devem ter moradores. Hoje eles não podem plantar, nem coletar, nem caçar. Já estavam ali antes da implantação da unidade de conservação porém, durante o reconhecimento prévio da área, não foram incluídos nos estudos econômicos e sociais.
A meta do Núcleo Picinguaba é valorizar a cultura caiçara, assegurar a
permanência das comunidades. O desafio é afastar os posseiros recentes e os residentes sem história no lugar. Uma ocupação iniciada com a construção da estrada Rio-Santos, que atraiu a especulação imobiliária. Há anos o Estado disputa indenizações bilionárias com os posseiros. Alguns dos residentes mais recentes foram indenizados por suas benfeitorias e se retiraram. O ITESP - Instituto de Terras de São Paulo -, com apoio do Núcleo de Picinguaba e em convênio com a Prefeitura de Ubatuba, tem realizado levantamento fundiário para uma ação discriminatória e reconhecimento de posses ou propriedades na área.
"Disciplinar e resgatar a cidadania nas comunidades é parte do nosso Planejamento de Uso do Solo, e leva em consideração a tradição dos moradores", conta Eliane. "Temos que estabelecer um zoneamento, as formas de uso do solo possíveis e adequar esta utilização às normas do parque". A tarefa cabe ao Conselho Consultivo do Núcleo, integrado por representantes de órgãos do governo, entidades civis não governamentais e das comunidades. As zonas devem ser definidas em preservação nas cabeceiras dos rios mais importantes, roças de subsistência, equipamentos de uso público (turismo e hospedagem) e artesanato.
Essas correções são necessárias para manter o cenário perfeito. Neste núcleo do Parque Estadual da Serra do Mar estão representadas as principais fisionomias dos ecossistemas da Mata Atlântica: a vegetação rasteira de praia; a vegetação mais densa, ali chamada de jundu ou escubre; os manguezais, berçários importantes de muitas espécies marinhas, incluindo aquelas pescadas pelos caiçaras; e o sertão, com a floresta úmida e densa de encosta, que abriga altíssima biodiversidade.
Criado em 1983, o Núcleo de Picinguaba ocupa 47.500 hectares de um total de 315 mil do Parque Estadual da Serra do Mar, que representa 80% da área do município de Ubatuba. Esse trecho de natureza faz a ligação estratégica do Parque Estadual da Serra do Mar com o Parque Nacional da Serra da Bocaina, de 80 mil hectares, e com a Área de Proteção Ambiental (APA) do Cairuçu, com 33.800 hectares, no Estado do Rio de Janeiro. Um conjunto de corredores de biodiversidade de grande importância na faixa litorânea brasileira, entre as duas maiores concentrações populacionais do país, São Paulo e Rio de Janeiro.
O principal desafio é conciliar a conservação ambiental com a difusão e a valorização da cultura caiçara. Para enfrentar tal desafio, é preciso incentivar a pesquisa científica, a educação ambiental e a visitação de turistas integrados com a população local. Assim, o Núcleo mantém uma pousada - a Hospedaria da Praia - e uma casa para pesquisadores - a Hospedaria da Sede. Pelo menos 180 pesquisas foram feitas na região e existem diversas outras em andamento.
O patrimônio do Núcleo Picinguaba vai muito além do cenário perfeito, porque envolve e associa vidas. A vida da gente à vida da Mata Atlântica.
Farinha caiçara
A Casa da Farinha é a história em movimento. A comunidade da Fazenda da Caixa administra e produz farinha em um prédio do início do século passado, que um dia foi uma fábrica de açúcar, álcool e fubá de uma grande fazenda. O maquinário importado veio da Inglaterra; as pedras, das cachoeiras próximas e a madeira de lei, da mata litorânea. Por algum tempo, ali também se produziu aguardente, depois transportada pela Trilha do Corisco, caminho então utilizado para se chegar a Paraty, no Rio de Janeiro. A comunidade, de 30 famílias e 180 pessoas, planta a mandioca, faz a farinha e ainda produz rapadura e melado de cana. A produção de farinha chega a 200 kg por dia na alta temporada do turismo e garante uma renda de R$ 300,00 por mês para cada família. Protegido do sol por um chapéu de feltro, o patriarca e presidente da Associação da Fazenda da Caixa, José Pedro Vieira, 67 anos, abre um sorriso largo para falar das conquistas da comunidade: "A vantagem de quem trabalha na agricultura é ter para comer e vender. Não precisa comprar". E ainda faz um comercial do produto da comunidade: "Nossa farinha é pura. Da nossa farinha não retiramos o polvilho, porque sem ele perde todo o valor. É como o leite, sem a nata, não é nada".´
A Casa da Farinha é a história em movimento. A comunidade da Fazenda da Caixa administra e produz farinha em um prédio do início do século passado, que um dia foi uma fábrica de açúcar, álcool e fubá de uma grande fazenda. O maquinário importado veio da Inglaterra; as pedras, das cachoeiras próximas e a madeira de lei, da mata litorânea. Por algum tempo, ali também se produziu aguardente, depois transportada pela Trilha do Corisco, caminho então utilizado para se chegar a Paraty, no Rio de Janeiro. A comunidade, de 30 famílias e 180 pessoas, planta a mandioca, faz a farinha e ainda produz rapadura e melado de cana. A produção de farinha chega a 200 kg por dia na alta temporada do turismo e garante uma renda de R$ 300,00 por mês para cada família. Protegido do sol por um chapéu de feltro, o patriarca e presidente da Associação da Fazenda da Caixa, José Pedro Vieira, 67 anos, abre um sorriso largo para falar das conquistas da comunidade: "A vantagem de quem trabalha na agricultura é ter para comer e vender. Não precisa comprar". E ainda faz um comercial do produto da comunidade: "Nossa farinha é pura. Da nossa farinha não retiramos o polvilho, porque sem ele perde todo o valor. É como o leite, sem a nata, não é nada".´
Trilhas para todos os pés
Novas parcerias com a comunidade caiçara, no Núcleo de Picinguaba, buscam ampliar o projeto de preservação da cultura local. A intenção é envolver especialistas que colaborem na formação de um grande pólo de ecoturismo, para aumentar as vendas de produtos fabricados ali e a circulação de visitantes. Uma das iniciativas em andamento é o Projeto Monitoria, que aperfeiçoa os conhecimentos ambientais dos moradores por meio de cursos de capacitação e treinamento. Os próprios moradores servem de guias de trilhas para grupos de, no máximo, 20 pessoas. Levam os visitantes por caminhos mais curtos - como o Picadão da Barra, que percorre restingas e mangues num trecho de 2,5 km ou a Trilha do Jatobá, de 2,4 km, que passa pela Casa da Farinha e trechos de mata tropical úmida de encosta - ou bem mais extensos, como a Trilha do Corisco, a maior de todas, com 30 km, de Picinguaba a Paraty, em 9 horas de caminhada.
Esse turismo monitorado tem a vantagem de abrir os acessos somente às pessoas autorizadas, sem correr o risco de degradação por excesso de visitantes. O Poço do Amor, por exemplo, é um paraíso escondido na mata preservada. Poucos conhecem e o lugar não é divulgado, para se controlar a freqüência. Já os mirantes das vilas de Picinguaba e da Almada estão incluídos nos roteiros de observação da natureza, em especial os de fim de tarde, para melhor aproveitar a visão excepcional do pôr-do-sol. Há ainda uma visita à comunidade do Cambury, onde vivem descendentes de escravos. O patriarca, Genésio dos Santos, 77 anos, recebe os turistas e dá palestras sobre a história local, no Centro dos Visitantes. Isso, se não estiver fora, a convite de alguma universidade ou escola, encontros dos quais ele já participou dezenas de vezes.
Novas parcerias com a comunidade caiçara, no Núcleo de Picinguaba, buscam ampliar o projeto de preservação da cultura local. A intenção é envolver especialistas que colaborem na formação de um grande pólo de ecoturismo, para aumentar as vendas de produtos fabricados ali e a circulação de visitantes. Uma das iniciativas em andamento é o Projeto Monitoria, que aperfeiçoa os conhecimentos ambientais dos moradores por meio de cursos de capacitação e treinamento. Os próprios moradores servem de guias de trilhas para grupos de, no máximo, 20 pessoas. Levam os visitantes por caminhos mais curtos - como o Picadão da Barra, que percorre restingas e mangues num trecho de 2,5 km ou a Trilha do Jatobá, de 2,4 km, que passa pela Casa da Farinha e trechos de mata tropical úmida de encosta - ou bem mais extensos, como a Trilha do Corisco, a maior de todas, com 30 km, de Picinguaba a Paraty, em 9 horas de caminhada.
Esse turismo monitorado tem a vantagem de abrir os acessos somente às pessoas autorizadas, sem correr o risco de degradação por excesso de visitantes. O Poço do Amor, por exemplo, é um paraíso escondido na mata preservada. Poucos conhecem e o lugar não é divulgado, para se controlar a freqüência. Já os mirantes das vilas de Picinguaba e da Almada estão incluídos nos roteiros de observação da natureza, em especial os de fim de tarde, para melhor aproveitar a visão excepcional do pôr-do-sol. Há ainda uma visita à comunidade do Cambury, onde vivem descendentes de escravos. O patriarca, Genésio dos Santos, 77 anos, recebe os turistas e dá palestras sobre a história local, no Centro dos Visitantes. Isso, se não estiver fora, a convite de alguma universidade ou escola, encontros dos quais ele já participou dezenas de vezes.
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