sexta-feira, 4 de maio de 2012

As mil e uma histórias da Ilha Anchieta





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Um Douglas DC-3 no aeroporto de Congonhas; era assim que se fazia a ponte aérea Rio-São Paulo na década de 1950 (foto: Abaac)








por LUCIANA CHRISTANTE em 01/04/2010


Não entendo nada de armas, por isso vou descrever como algo entre uma espingarda e uma metralhadora aquilo que o soldado segurava com orgulho tolo no barco que nos levava até oParque Estadual da Ilha Anchieta, em Ubatuba (SP), na terça-feira passada (30/03). Digo soldado, mas sei lá qual será a patente dele e dos outros colegas paramentados como se estivessem indo para a guerra. Descobri rapidamente que a missão da equipe era localizar os destroços de um avião caído na ilha há mais de meio século.
Com 26 passageiros e quatro tripulantes, o bimotor Douglas DC-3, da extinta Real-Aerovias, deixou o aeroporto Santos Dumont, no Rio, às 17h30 do dia 10 de abril de 1957 e deveria chegar em Congonhas, em São Paulo, por volta das 19h. Mas, em meio a uma tempestade, um dos motores pifou e o avião se chocou contra o Morro do Papagaio, que ainda tem as marcas do acidente, dizem. Três passageiros sobreviveram.




A expedição do Exército que visitou a ilha na terça-feira faz parte de um projeto da Associação Brasileira de Aeronaves Antigas e Clássicas (Abaac) de resgate da história da aviação brasileira. Ouvi do comandante (ou será capitão?) que o sonho da entidade é recuperar a hélice da aeronave (e o que mais puder ser encontrado) para levá-la a um museu.
Nosso anfitrião, o biólogo Paulo Cicchi, já esteve no local do acidente e disse ao oficial que é uma área de mata fechada, de difícil acesso, e que ele mesmo não tinha visto nada que pudesse lembrar os restos de um avião. Para meu espanto, fico sabendo que o grupo, que viera equipadíssimo com um monte de armas, rádio, GPS e o escambau, não trazia o aparelhinho mais importante para a missão: um detector de metais. Isso porque o avião caiu lá há 53 anos! Dá pra acreditar? Obviamente, não encontraram nada.
Havia também uma historiadora no grupo, com quem infelizmente não consegui falar, mas que parecia esfuziante com a aventura. Só tive tempo pra olhar os sapatinhos que ela calçava e pensar: onde essa mulher pensa que vai?
Não falei com a historiadora porque estava ocupada demais em ouvir sobre a pesquisa de Paulo Cicchi, doutorando da Unesp em Botucatu (SP), que será nosso “Estudo de campo” da edição de maio. O que posso adiantar agora é que o trabalho dele tem a ver com uma problemática que tem dividido pesquisadores: o impacto ambiental da introdução na Ilha Anchieta de espécies não-nativas — pelas mãos do homem, claro.
Acreditem se puderem: em março de 1983, a Fundação Parque Zoológico, com o aval do governo do Estado, introduziu na ilha 14 espécies de mamíferos. Algumas delas, como o veado catingueiro (que deve ter visto uma praia pela primeira vez na vida) se extinguiram rapidamente, mas outras, como saguis, macacos-prego, capivaras e quatis, se adaptaram bem e seus descendentes estão lá até hoje.
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Quati, umas das espécies introduzidas na ilha em 1983 e que se adaptaram bem ao novo ambiente (foto: Paulo Cicchi)
A pergunta é: essas espécies “invasoras” estão fazendo bem ou mal à ecologia da ilha? Os dados de Cicchi e toda a polêmica eu conto em detalhes na edição de maio. Por ora, vale a pena destacar o quanto evoluímos em termos de manejo ambiental. O que foi feito pelo poder público – provavelmente com boas intenções – há menos de 30 anos, hoje é inaceitável e dificilmente se repetiria.
A Ilha Anchieta é pequena (cerca de 800 hectares), mas seu passado é extenso e recheado de histórias que fazem a alegria de qualquer repórter. Ali funcionou, entre 1907 e 1955, um presídio que foi palco de uma bem calculada e sangrenta rebelião em 1952. As ruínas ainda estão lá e são a principal atração do parque. Por conta do presídio, a devastação da mata foi grande: o corte da lenha, as lavouras e a criação de animais acabaram com a vegetação dos arredores, mas, felizmente, a floresta vem se regenerando rapidamente; o morro pelado ao lado do presídio, que se vê nas fotos antigas, está irreconhecível de tão verde.
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Ilha Anchieta hoje; no canto inferior direito, as ruínas do presídio que funcionou entre 1907 e 1955 (foto: Paulo Cicchi)
A ocupação humana do lugar, entretanto, é bem mais antiga. Quando lá chegaram no século 16, os portugueses logo perceberam que a face continental da ilha era um excelente ancoradouro, protegido dos ventos e da correnteza do mar. Mas para se instalar ali, tiveram primeiro de expulsar os índios tupinambás, chefiados pelo cacique Cunhambebe, que se tornou célebre por ter dado carona ao padre José de Anchieta em sua canoa até São Vicente. Não foi uma saída pacífica, porém, vide a história da Confederação dos Tamoios.
Ao longo dos séculos seguintes, a Ilha dos Porcos, como era chamada (em tupi, “Pó-quâ” significa “pontuda”), foi um importante ponto de parada na rota de navios comerciais e, em meados do século 19, serviu de estação naval para embarcações inglesas encarregadas de “caçar” navios negreiros. Tudo isso e muito mais será contado na tese que Paulo Cicchi está escrevendo e deve defender até o final do ano.
Há seis trabalhando no local, Cicchi é obcecado pela história da ilha. Nos últimos tempos o biólogo anda devorando livros sobre Hans Staden, em busca de pistas. Como ninguém sabe em que local exatamente do litoral paulista o aventureiro alemão quase virou ensopado dos índios tupinambás, ele acredita que há uma chance de isso ter acontecido… na Ilha Anchieta.
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Na gravura do século 16, Hans Staden (de barba, ao fundo) observa os hábitos antropofágicos dos tupinambás (Wikimedia Commons)

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