domingo, 11 de março de 2012

ESPECIAL " UBATUBA , ESPAÇO, MEMÓRIA E CULTURA - PARTE 66


Os diálogos do anjo e da Virgem, o misterioso noivado espiritual, o advento do fruto inigualável, a oferenda simbólica dos magos, a purificação, a fuga para Egito, o regresso da Sagrada Família para Israel, Jesus no templo, a dor suprema do calvário, o gozo da ressurreição, o transporte de Maria à bem-aventurança constituem a ação poética  em uma reedição da lenda cristã.




No meio desses cânticos aparecem os anátemas a Calvino, deflagrações do ódio religioso contra aqueles que negam a virgindade excelsa de Maria. O austero Calvino, teólogo e humanista, cuja sobriedade foi tão rígida quanto sua doutrina, é crivado pela poesia de Anchieta neste Poema, trata-o de ébrio, um satírico calvo e tonto que saísse dos banhos das ninfas para a Escola de Genebra. Na cólera, José de Anchieta explode de intolerância com seu inimigo execrando-o ao exílio, á tortura, à morte pelo fogo. A época da conquista é a era dos rancores da Inquisição e dos autos de fé entre os católicos europeus, principalmente dos espanhóis que vêem na Península um cenário de uma guerra religiosa de intolerância.

Os conflitos, entre católicos e calvinistas, são esclarecidos nos versos sobre a intemperança e a concupiscência de Calvino que aparecem no Poema à Virgem Maria composto pelo jesuíta José de Anchieta:

Calvino: trocaste a Glória de Cristo pela insânia de Baceho e é esse o nome de tua linguagem, o teu amor. Calvino: mudaste a pureza de Maria na impudicícia de Vênus, e é por essa que vives, e nessa é que tens a tua mestra, a tua lei, a tua deusa. São esses os ídolos próprios do nome e da mente de tal criatura...” Porque o nome te revela os costumes: para tal vida, tais obras. Calvino: tens o nome do cal e do vinho, o duplo nome da vida que levas (Vieira, 1929:130).

A cólera de Anchieta passa e retoma a laudatória a Maria, alfabeticamente ordenando: Laudes, Virginis ordine alphabetico, emanando dos colóquios e das súplicas. Enfim, transparecem no epílogo minúcias, delicadezas e arte: em primeiro lugar, a dedicatória ao poema – Dedicatio operis; depois, as imaculadas forças marianas; por último, a breve Recomendatio de Anchieta à Virgem Maria que lhe convertera os pensamentos voluptuosos em ritmos sacros:

Hás preces fundo tibi, Virgo Mater.
Quae cares naevo speciosa tota,
Ut mihi intacto tribuas pudicam
Corporae mentem
Amem. (Vieira, op. cit: 132).

Este longo poema é posteriormente depurado e reescrito por José de Anchieta com apuro beneditino, desde o ofertório à dedicatória, no colégio de São Vicente. Este ato dá ao jesuíta – segundo Vieira – a vulnerabilidade aos golpes da contradição no processo da conquista. A poesia de José de Anchieta imersa na devoção católica corre o risco de ser lida como um todo homogêneo, afirma Alfredo Bosi, no livro Dialética da Colonização (1995), tal afirmação nos parece crucial para entender a transposição para o Novo Mundo de padrões de comportamento e de linguagem que trouxeram como conseqüência a atitude representada na poesia de Anchieta que repete o modelo europeu clássico do latim no seu poema à Virgem Maria, sendo refém dos Tamoio nas praias de Iperoig, o missionário sente a necessidade de purificação. Esse mesmo evangelizador aprendeu o tupi para fazer rezar nessa língua seus “conquistados”. A antiga forma literária do catolicismo medieval revigorada na renascença é moldada à situação colonial. Anchieta precisou mudar um código em função de seus destinatários, a nova freguesia demandava uma linguagem própria, entretanto, nisso concordamos com Bosi, Anchieta inventa um imaginário sincrético, uma mistura do discurso católico e a língua tupi, forjando figuras míticas como Karaibebé, profetas que voam, nos quais os nativos identificavam os profetas da Terra sem mal, ou Tupansy, mãe de Tupã, para falar de um atributo de Nossa Senhora. Há neste exercício uma fusão da cultura – reflexa e a cultura – criação que aparece muito clara no poema anteriormente descrito (Bosi, 1995:131).

Portanto, é necessário conhecer em profundidade, o dinamismo peculiar à missão jesuítica no Brasil com todas as suas exigências de fidelidade aos valores gerados na Península durante a Contra – Reforma. A cruz e a espada se unificaram para a disputa do bem comum: o corpo e a alma indígena. A narrativa de José de Anchieta evidencia às vezes o contraste agudo entre a colonização como pré – ação e o apostolado que, no início para ele constituía uma necessidade. Tratava-se de dois projetos diferentes, cujas conciliações foram sempre temporárias e diplomáticas como é o caso da Paz de Iperoig, mas o dinamismo interno levou a um confronto aberto de interesses, onde o único perdedor foi o índio.

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