quinta-feira, 8 de março de 2012

ESPECIAL UBATUBA , ESPAÇO, MEMÓRIA E CULTURA - PARTE 65


Enquanto esperava pelo desfecho de sua missão, Anchieta escreveu nas areias da praia de Iperoig, o célebre poema à Virgem Maria, segundo conta a lenda[1]. Sentimentos e superstições, costumes e perfis indígenas são descritos em figuras e episódios nas Cartas de Iperuig, sob a forma de poema laudatório da Virgem - De Beata Virgine Dei Mater Maria, composição de 5.902 versos ou 2.950 e um dístico. A respeito da natureza desse poema, se foram efetivamente escritos na areia da praia, nos parece algo de menor importância, o relevante sim é a caracterização das circunstancia em que este foi concebido. O ritmo bárbaro da atmosfera do poema é um elemento de luta da inteligência e da fé sobre o instinto, transparecendo muitas vezes a angústia do conflito que motivava a narrativa do evangelizador.




O isolamento de Anchieta em Iperoig fez com que este prometesse à Virgem Maria, compor o poema de sua vida, com o fim de vencer as tentações da carne. Papel, tinta e pena, foram ministradas por José Adorno. Mas, nos momentos do cativeiro, o ambiente era tenso e inóspito para o religioso atormentado com os fantasmas da guerra[2].

Celso Vieira descreve que Anchieta sem buril concebeu no ermo, idealizando em versos latinos e elegíacos esse poema à Virgem para sobreviver ao instante genésico e fugaz do cativeiro, o apóstolo só contava, portanto, com a sua memória afetiva comprometida com os exercícios espirituais de sua Ordem. A lenda diz que não tinha mais do que a areia molhada pelas ondas, batidas pelo vento para escrever. Preferimos pensar que se trata de uma composição realizada com o tempo, nesse clima de cativeiro e que talvez as praias de Iperoig tivessem servido de esboço para esses rascunhos idealizados no retiro espiritual em que Anchieta se encontrava.

Junto do mar, um dia – conta Vieira -, ele traçou na fimbra espumante e arenosa o verso inicial do poema: “Eloquar? Na silean, sanctissima Mater Jesu?” Falar ou emudecer? Anchieta oscilava entre a ação ritual e a mística da fé que inspirava seu canto.

                Tu mihi cum chara sis única Prole voluptas,
                   Tu desiderium cordis, amorque mei.

Desta forma, o jesuíta desdobra os motivos do primeiro canto que passaremos analisar, de acordo com o contexto no qual Anchieta está inserido: um cativeiro onde as lutas entre corpo e espírito, configuram a saga do desejo.

O primeiro canto leva o nome: De conceptione Virginis Mariae. A concepção de Maria antecede a modelagem da criação. É interessante mencionar aqui que o espírito mariano da maioria dos espanhóis encontra na figura feminina de Maria uma tabua de salvação[3]. Enaltecida pelo espírito cristão da Idade Média, nas famosas Cantigas a Nossa Senhora de Gonzalo de Berceo, Anchieta tenta reconstruir o espaço na sua frente, confiando no caráter medianeiro de Maria que do outro lado do mar tinha sido enaltecida pelos peregrinos que sabiam do sofrimento e da solidão da experiência mística. “Não espanadavam ainda os mares nem desciam as águas fluviais pelas vertentes”, sobre o chão replica o religioso “não havia o borboletear das fontes nem a grandeza das moles altíssimas” e já fora concebida a inteligência eterna – o Verbo, predestinado seu ventre a redimir o pecado original.

Perfeita e dileta, como um antídoto ao veneno da serpente, prometida nas manchas edémicas, turvadas pelo crime de Eva. Com o dragão sob os pés, dulcis amica Dei, ela paria acima dos coros angelicais. O fruto bendito é anunciado pela boca dos profetas nos céus. Anchieta fecha esse primeiro canto anunciando Maria, a mulher mais forte que o homem.

Maria nasce no segundo canto após a noite milenar. Um novo sol se levanta, raiando a estrela virgem. O fulgor nominal da senhora ressoa neste poema anchietano em forma de ladainha, seguindo a ordem alfabética das composições abecedárias do Sedulius no qual faremos algumas adaptações para seu melhor entendimento:

Arbor, sublime árvore cujas raízes bebem humildemente do solo, os galhos frutificando em estrelas. Baculus, frágil bordão nos quais se amparam os homens incertos e aflitos. Collis, alta colina que verte o doce perfume nas trevas. Doctus, maravilhosa correnteza de águas provenientes da fonte divina. Effigies, verdadeiro espelho onde o próprio Deus se reflete. Fulmen, a fulgurância do raio na tormenta que aniquila os crimes tártaros. Gemma, metal precioso no qual se desvanece a pompa metálica do ouro e do bronze. Hydria, urna estelar das Hyades cristãs, vaso de leite e óleo, aroma e graça. Jaculum, o antigo jáculo ou venábulo, ferindo suavemente os corações para sarar profundas chagas[4]. Luna, sagrado e imutável plenilúnio dando ao ocaso dos seus contempladores a impressão de alegria solar. Maré, mar profundo, amplidão sem areia de gigantescas e infinitas da vida, refugio dos bons e dos maus. Navis, a nave que socorre os náufragos arrojados e levados à praias remotas. Ober, óbice colocado no santuário com o fim de evitar a devastação dos touros indômitos, no limiar do templo às heresias e demônios, Portus, sereno ao qual vier se achegar o poeta, navegador exausto, sacudido pela fúria do vento e guiado pela mão da Virgem – reminiscência católica dos temporais brasileiros. Quadriga Dei, impetuosa quadriga de Deus, arrebatada pela justiça em tropel ressoante, a esmagar os inimigos da fé. Rosa, imarcescível no estio e no inverno, rosa a nascer de espinhos, mas não deles ornada. Speculum, Signum, Sydus, Stimulus, Salus... Tegem, primeiro tecido cobrindo o pudor de Adão, o rubor de Eva, a nudez lamentável do corpo ou da alma. Virga, açoite das macerações eclesiásticas, vara desnuda e flexível com que se retalham e sob a qual se retorcem os penitentes.

Este atormentado canto de Anchieta fala da fé em Maria, na qual encontra o sentido para sua angustia, a entrega incondicional de sua alma ao poder mediador da imagem divinizada na sua prece. Vieira comenta a favor do jesuíta que vencendo o terror da morte e as tentações da carne compunha, esvoaçava-lhe aos ombros, nesse instante, uma ave multicolor. Dístico após dístico, até a gloriosa assunção da Virgem, Anchieta metrifica o poema no meio dos bárbaros Tamoio.




[1] A produção literária de José de Anchieta é copiosa e constante no Brasil, observa-se nela o espírito e a sensibilidade do evangelizador, precursor da tradição escrita da época colonial. O testemunho de Anchieta sobre seu contato com os Tupinambá – Tamoio vá desde descrições de festas na aldeia às pregações onde ele foi o principal orador. O material bibliográfico é disperso e as fontes podem ser encontradas nos Arquivos da Companhia de Jesus. A variedade epistolar, de modo geral, e o Poema à Virgem Maria, em particular, podem ser encontradas nas Obras Completas de Anchieta (1990), que compreende textos, além de trabalhos didáticos: cartas, cantos, mistérios, sermões, poemas religiosos, heróicos e biografias escritas sobre a natureza ou a formação do Brasil colonial.

[2] As tentações da carne adquirem neste episódio, uma conotação que vai além do sexual, isto é, referem-se aos aspectos humanos do religioso, também relacionados com a ira e o desejo de aniquilação do outro por meio de uma ação transgressiva incompatível com o exercício de sua causa, nesse momento mediadora. Mas, essa sempre foi uma das fases de um “retiro espiritual”, vencer as tentações que a imediatez do corpo apresentava.
[3] Vale aqui lembrar que José de Anchieta é originário das Ilhas Canárias na Espanha –“canarinho”.
[4] Benábulo é uma adaptação de bem-aventurado e jáculo de lançar, arremessar.



CONFIRA     A    PARTE   66 - A SER AQUI PUBLICADA NO DIA 11 DE MARÇO ...

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