Enquanto esperava pelo desfecho de sua missão,
Anchieta escreveu nas areias da praia de Iperoig, o célebre poema à Virgem
Maria, segundo conta a lenda[1].
Sentimentos e superstições, costumes e perfis indígenas são descritos em
figuras e episódios nas Cartas de
Iperuig, sob a forma de poema laudatório da Virgem - De Beata Virgine Dei Mater Maria, composição de 5.902 versos ou
2.950 e um dístico. A respeito da natureza desse poema, se foram efetivamente
escritos na areia da praia, nos parece algo de menor importância, o relevante
sim é a caracterização das circunstancia em que este foi concebido. O ritmo
bárbaro da atmosfera do poema é um elemento de luta da inteligência e da fé
sobre o instinto, transparecendo muitas vezes a angústia do conflito que
motivava a narrativa do evangelizador.
O isolamento de Anchieta em Iperoig fez com que
este prometesse à Virgem Maria, compor o poema de sua vida, com o fim de vencer
as tentações da carne. Papel, tinta e pena, foram ministradas por José Adorno.
Mas, nos momentos do cativeiro, o ambiente era tenso e inóspito para o
religioso atormentado com os fantasmas da guerra[2].
Celso Vieira descreve que Anchieta sem buril
concebeu no ermo, idealizando em versos latinos e elegíacos esse poema à Virgem
para sobreviver ao instante genésico e fugaz do cativeiro, o apóstolo só
contava, portanto, com a sua memória afetiva comprometida com os exercícios
espirituais de sua Ordem. A lenda diz que não tinha mais do que a areia molhada
pelas ondas, batidas pelo vento para escrever. Preferimos pensar que se trata
de uma composição realizada com o tempo, nesse clima de cativeiro e que talvez
as praias de Iperoig tivessem servido de esboço para esses rascunhos
idealizados no retiro espiritual em que Anchieta se encontrava.
Junto do mar, um dia – conta Vieira -, ele traçou
na fimbra espumante e arenosa o verso inicial do poema: “Eloquar? Na silean,
sanctissima Mater Jesu?” Falar ou emudecer? Anchieta oscilava entre a ação
ritual e a mística da fé que inspirava seu canto.
Tu mihi cum chara
sis única Prole voluptas,
Tu desiderium cordis, amorque
mei.
Desta forma, o jesuíta desdobra os motivos do
primeiro canto que passaremos analisar, de acordo com o contexto no qual
Anchieta está inserido: um cativeiro onde as lutas entre corpo e espírito,
configuram a saga do desejo.
O primeiro canto leva o nome: De conceptione Virginis Mariae. A concepção de Maria antecede a
modelagem da criação. É interessante mencionar aqui que o espírito mariano da
maioria dos espanhóis encontra na figura feminina de Maria uma tabua de
salvação[3].
Enaltecida pelo espírito cristão da Idade Média, nas famosas Cantigas a Nossa
Senhora de Gonzalo de Berceo, Anchieta tenta reconstruir o espaço na sua
frente, confiando no caráter medianeiro de Maria que do outro lado do mar tinha
sido enaltecida pelos peregrinos que sabiam do sofrimento e da solidão da
experiência mística. “Não espanadavam ainda os mares nem desciam as águas
fluviais pelas vertentes”, sobre o chão replica o religioso “não havia o
borboletear das fontes nem a grandeza das moles altíssimas” e já fora concebida
a inteligência eterna – o Verbo, predestinado seu ventre a redimir o pecado
original.
Perfeita e dileta, como um antídoto ao veneno da
serpente, prometida nas manchas edémicas, turvadas pelo crime de Eva. Com o
dragão sob os pés, dulcis amica Dei,
ela paria acima dos coros angelicais. O fruto bendito é anunciado pela boca dos
profetas nos céus. Anchieta fecha esse primeiro canto anunciando Maria, a
mulher mais forte que o homem.
Maria nasce no segundo canto após a noite milenar.
Um novo sol se levanta, raiando a estrela virgem. O fulgor nominal da senhora
ressoa neste poema anchietano em forma de ladainha, seguindo a ordem alfabética
das composições abecedárias do Sedulius
no qual faremos algumas adaptações para seu melhor entendimento:
Arbor, sublime árvore cujas raízes bebem
humildemente do solo, os galhos frutificando em estrelas. Baculus, frágil
bordão nos quais se amparam os homens incertos e aflitos. Collis, alta colina
que verte o doce perfume nas trevas. Doctus, maravilhosa correnteza de águas
provenientes da fonte divina. Effigies, verdadeiro espelho onde o próprio Deus
se reflete. Fulmen, a fulgurância do raio na tormenta que aniquila os crimes
tártaros. Gemma, metal precioso no qual se desvanece a pompa metálica do ouro e
do bronze. Hydria, urna estelar das Hyades cristãs, vaso de leite e óleo, aroma
e graça. Jaculum, o antigo jáculo ou venábulo, ferindo suavemente os corações
para sarar profundas chagas[4].
Luna, sagrado e imutável plenilúnio dando ao ocaso dos seus contempladores a
impressão de alegria solar. Maré, mar profundo, amplidão sem areia de
gigantescas e infinitas da vida, refugio dos bons e dos maus. Navis, a nave que
socorre os náufragos arrojados e levados à praias remotas. Ober, óbice colocado
no santuário com o fim de evitar a devastação dos touros indômitos, no limiar
do templo às heresias e demônios, Portus, sereno ao qual vier se achegar o
poeta, navegador exausto, sacudido pela fúria do vento e guiado pela mão da
Virgem – reminiscência católica dos temporais brasileiros. Quadriga Dei,
impetuosa quadriga de Deus, arrebatada pela justiça em tropel ressoante, a
esmagar os inimigos da fé. Rosa, imarcescível no estio e no inverno, rosa a
nascer de espinhos, mas não deles ornada. Speculum, Signum, Sydus, Stimulus,
Salus... Tegem, primeiro tecido cobrindo o pudor de Adão, o rubor de Eva, a
nudez lamentável do corpo ou da alma. Virga, açoite das macerações
eclesiásticas, vara desnuda e flexível com que se retalham e sob a qual se
retorcem os penitentes.
Este atormentado canto de Anchieta fala da fé em
Maria, na qual encontra o sentido para sua angustia, a entrega incondicional de
sua alma ao poder mediador da imagem divinizada na sua prece. Vieira comenta a
favor do jesuíta que vencendo o terror da morte e as tentações da carne
compunha, esvoaçava-lhe aos ombros, nesse instante, uma ave multicolor. Dístico
após dístico, até a gloriosa assunção da Virgem, Anchieta metrifica o poema no
meio dos bárbaros Tamoio.
[1] A produção literária de José de
Anchieta é copiosa e constante no Brasil, observa-se nela o espírito e a
sensibilidade do evangelizador, precursor da tradição escrita da época
colonial. O testemunho de Anchieta sobre seu contato com os Tupinambá – Tamoio
vá desde descrições de festas na aldeia às pregações onde ele foi o principal
orador. O material bibliográfico é disperso e as fontes podem ser encontradas
nos Arquivos da Companhia de Jesus. A variedade epistolar, de modo geral, e o
Poema à Virgem Maria, em particular, podem ser encontradas nas Obras Completas de Anchieta (1990), que
compreende textos, além de trabalhos didáticos: cartas, cantos, mistérios,
sermões, poemas religiosos, heróicos e biografias escritas sobre a natureza ou
a formação do Brasil colonial.
[2] As tentações da carne adquirem neste episódio, uma conotação que vai
além do sexual, isto é, referem-se aos aspectos humanos do religioso, também
relacionados com a ira e o desejo de aniquilação do outro por meio de uma ação
transgressiva incompatível com o
exercício de sua causa, nesse momento mediadora. Mas, essa sempre foi uma das
fases de um “retiro espiritual”, vencer as tentações que a imediatez do corpo
apresentava.
[3] Vale aqui lembrar que José de Anchieta é
originário das Ilhas Canárias na Espanha –“canarinho”.
[4] Benábulo é uma adaptação de bem-aventurado e
jáculo de lançar, arremessar.
CONFIRA A PARTE 66 - A SER AQUI PUBLICADA NO DIA 11 DE MARÇO ...
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