Ao voltarem para a aldeia de Ubatuba, chovia muito e a viagem se prolongou por três dias. No caminho, enquanto os selvagens devoravam a carne assada do escravo, Hans Staden observava com atenção um jovem que devorava um osso da perna O alemão pediu –lhe que o jogasse fora, pois não havia mais carne, e o jovem respondeu irado que era o costume deles comer com deleite carne humana. Depois que chegaram da demorada viagem, um dos dois senhores de Hans Staden, o Alkindar, perguntou-lhe se havia visto como tratam seus inimigos, este respondeu indignado que sim. Alkindar odiava Hans Staden, mas nada podia fazer contra ele, pois o havia dado ao Ipiru-guaçu respeitando uma das mais velhas tradições Tupinambá. Mesmo assim o alemão vivia sob a ameaça deste selvagem.
O cativo alemão
, sempre amparado pela Providência divina, segundo suas próprias palavras,
atendeu a este mesmo selvagem que o ameaçava quando precisou de sua ajuda para
se curar de fortes dores nos olhos. Novamente, Hans prometeu ajudá-lo, com
condição que este parasse de ameaçá-lo. O Alkindar acatou seu pedido e alguns dias depois estava
curado. Isso fortaleceu ainda mais a idéia dos selvagens a respeito da relação
do alemão com seu Deus que intervinha todo o tempo a seu favor.
Os portugueses costumavam comercializar com os
Tupinambá, apesar da rivalidade e inimizade. Trocavam facas e foices pela
farinha de mandioca que usavam para alimentar seus escravos negros que
mantinham nas plantações de cana-de-açúcar. A maioria das vezes a
comercialização acontecia num navio português que ancorava próximo da praia,
até onde os índios chegavam de canoa. Dois selvagens subiam para efetivar a troca
de mercadorias enquanto eram observados à distância por outros selvagens com
intuito de garantir a negociação. Mas, em numerosas ocasiões os selvagens
reagiam insatisfeitos lançando flechas contra àqueles injustos comerciantes.
Já haviam passado cinco meses da permanência de
Hans Staden entre os selvagens. Uma navegação de portugueses vinda de São
Vicente aportou próximo da aldeia de Ubatuba, Angra dos Reis. Um tiro de canhão
chamou a atenção dos selvagens que correram à praia, pois, achavam que se
tratava de um navio trazendo mercadorias. Os portugueses perguntaram logo pelo
alemão, se ainda este estava vivo, dizendo que queriam vê-lo. Tinham uma grande
caixa, cheia de mercadorias mandada pelo “irmão” de Hans Staden, que também se
encontrava a bordo do recém chegado navio[1].
Era, na verdade um francês, um velho camarada do alemão chamado Claude Mirande.
Os selvagens voltaram à aldeia,
disseram ao alemão que seu irmão estava no navio e que queria vê-lo. Hans
Staden fez os selvagens acreditarem que aquele francês era efetivamente seu
irmão convencendo-os que o levassem até ele. Uma vez a bordo, Hans Staden conversou com um dos portugueses e lhe
solicitou que o tratasse como francês.
Um outro tripulante do navio de nome Juan Sánchez, conhecido do alemão,
contou que tinham viajado com o propósito de achá-lo. O capitão Braz Cubas
tinha ordenado que descobrissem se ele ainda estava vivo e o levassem de volta,
mesmo que fosse preciso capturar alguns selvagens para depois negociá-lo numa
troca.
Hans Staden pediu encarecidamente a seus camaradas
algumas mercadorias para negociar a sua estabilidade entre os nativos que em
seguida foram a buscá-las no navio. Quando percebeu que iam proibi-lo de
continuar conversando com os portugueses, avisou-os de um possível ataque no
mês de agosto em
Bertioga. Os portugueses disseram que também os selvagens, Tupiniquim,
iriam atacá-los. O alemão lamentou ainda não ser, desta vez, libertado e pediu
a Deus que o ajudasse a sair deste conflito de interesses no qual ele se tinha
transformado em um astuto mediador.
Voltando à aldeia o alemão disse aos Tupinambá que
foi o seu irmão que havia dado os presentes e que voltaria a sua terra natal
afim de trazer mais mercadorias para eles e também para buscá-lo. O alemão,
para agradar os índios menciona que em conversa com seu irmão, lhe disse que
eles eram pessoas ordeiras e o tratavam bem, por isso, deveria compensá-los com
tais mercadorias em forma de gratidão.
Daí em diante os selvagens o trataram melhor e com respeito. Desta forma
os nativos passaram a considerar o alemão como um a mais entre eles,
integrando-o nos afazeres do dia-dia, levando à floresta para caçar, e para o
exercício da pesca.
Mais uma vez, Hans Staden estava prestes a
presenciar um ritual de antropofagia naquela aldeia. Desta forma, a morte do
indivíduo que viraria carne assada, serviria para que se reforçasse a ligação
poderosa do alemão com Deus, uma vez que este episódio deixa de manifesto a
clarividência do cativo alemão a respeito dos fenômenos humanos naturais que
afetavam à aldeia.
A história da vítima do ritual antropofágico é de
um índio Carijó servo dos portugueses, que fugiu destes para encontrar abrigo
entre os Tupinambá. Há três anos de
sua permanência na aldeia, este mesmo Carijó afirmou ter visto Hans Staden
entre os portugueses e começou acusá-lo de disparar com arma de fogo contra os
Tupinambá, em expedições guerreiras.
Além do mais, responsabilizou-o pela
morte de um dos chefes desta tribo, instigando os indígenas a matá-lo por ser
inimigo dos mesmos. Era improvável este fato, pois se o Carijó estava há três
anos com os Tupinambá e o alemão contava apenas um ano de sua chegada em São Vicente , como
poderia tudo isto ser verdade? Mas no sexto mês da permanência de Hans Staden
entre os selvagens, o servo Carijó caiu muito doente. Foi pedido ao alemão que
o curasse através da intercessão de seu Deus, e assim voltasse a ter saúde para
poder caçar na selva. O alemão tentou por alguns dias curá-lo e quando os
selvagens o indagaram sobre a saúde do escravo, este respondeu que de nada
adiantaria, pois já nada mais podia fazer pelo Carijó. Os nativos então acharam
que deveriam sacrificá-lo em banquete antes que morresse fruto da doença que o
afetava e assim o fizeram.
No ritual, o chefe Guaratinga com mais dois selvagens proferiu-lhe um golpe
certeiro na cabeça com tanta força que fez com que os miolos voassem longe. Os
selvagens demonstravam a viva voz vontade de devorá-lo. Hans os advertiu
dizendo que não seria bom comê-lo, pois este estava doente e podia
contaminá-los. Ficaram parados e assustados sem saber o que fazer quando um
homem se aproximou ordenando que as mulheres fizessem uma fogueira para assar o
corpo. Decapitou o indivíduo jogando fora a cabeça e logo assaram o corpo
fazendo com que a pele se desprendesse, o cortaram em vários pedaços iguais e
assim o dividiram entre eles.
A morte deste indivíduo serviu para reforçar a
idéia que Hans tinha uma ligação forte com seu Deus, e que este falecera em
decorrência da fúria divina pelo testemunho falso que levantara contra o alemão
que proferia em alto e bom som: “... Meu Deus agirá dessa forma com todas as
pessoas más que me causaram ou causarão sofrimento!”. Isso levou a muitos dos
selvagens a ficarem temerosos de Hans Staden.
Estava chegando a época em que os Tupinambá iriam
guerrear contra os seus grandes inimigos, os Tupiniquim e os portugueses. Hans
Staden queria tentar uma fuga, pois achava que o deixariam na aldeia junto às
mulheres. Nesse meio tempo, houve noticias de um navio francês que teria
atracado em um porto a oito milhas de Ubatuba, no Rio de Janeiro, chamado pelos
selvagens de Niterói. Neste porto, também os portugueses faziam o carregamento,
negociavam pau-brasil , outras várias especiarias, como pimenta, além se
macacos e papagaios. Era o momento propício para pensar na fuga.
Um dos navios chegou até a aldeia de Ubatuba mas
Hans Staden foi impedido de chegar a bordo. Quando os franceses iam partir, o
alemão mais do que nunca pensou que poderia ser aquela sua chance, entregou-se
na mão de Deus e antes mesmo que o navio partisse correu até a praia, sendo
perseguido pelos selvagens. Ele nadou até a embarcação, mas os franceses não o
deixaram subir, achando que se o levassem os selvagens se revoltariam contra
eles. Desolado o alemão voltou à praia
onde os selvagens os esperavam contentes.
Staden, disfarçando a fuga, disse que havia ido apenas até os franceses para
pedir que trouxessem mais mercadorias, agradando-os e os deixando-os assim
satisfeitos.
Chegou então, o dia da expedição guerreira dos
Tupinambá.Um total de 38 canoas com uma
média de 18 homens cada foram reunidas. Cunhambebe estava entre os líderes desta aventura guerreira.
Exatamente aos 14 dias do mês de Agosto de 1554, partiram os Tupinambá rumo à
Bertioga onde pretendiam, escondidos na floresta, próximos ao povoado, capturar
seus inimigos. Neste período do ano costuma haver a chamada piracema,
um movimento de cardumes de peixes chamados de tainhas, lisas em espanhol e piratis
pelos indígenas, que sobem o rio para desovar. Nesta época os selvagens
costumavam praticar as guerras, tanto os Tupinambá quanto os Tupiniquim
aproveitavam este momento do deslocamento para eles também se mobilizar.
[1] A
palavra irmão entre aspas faz referência na verdade a um velho camarada francês
de Hans Staden. Cabe salientar aqui que germano, isto é, alemão, também se
traduz como irmão no sentido mais literal e cristão do termo.
Confira a Parte 59 , no dia 14/01/2012...
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