quarta-feira, 23 de novembro de 2011

UBATUBA 1965......Ubatuba 65: uma revolução em surdina





A ditadura, quem diria, aprovou e adotou o método Paulo Freire
CECÍLIA PRADA

Paulo Freire
A figura de Paulo Freire, o grande educador brasileiro que foi obrigado a amargar durante 16 anos a injustiça de um exílio político imposto pelo golpe militar de 1964, voltou a ser lembrada com maior destaque no ano passado – que marcou os dez anos de sua morte. Paulo Reglus Neves Freire, nascido no Recife em 1921, iniciou sua carreira de professor aos 20 anos, para ajudar a família, muito pobre. Nos anos 1940-50 estendeu sua atuação a várias instituições, chamado a ocupar cargos mais elevados no ensino, como planejador e coordenador. Na efervescência política que caracterizou o início da década de 1960, seu nome foi ganhando destaque como um dos articuladores e fundadores do Movimento de Cultura Popular (MCP). Iniciado após a eleição de Miguel Arraes à prefeitura do Recife, o MPC 




se fortaleceu quando ele se tornou governador, permitindo a Freire desenvolver e aplicar em segmentos populacionais carentes seu original método de alfabetização de adultos – que constitui, até hoje, um precioso legado educacional e cultural, internacionalmente reconhecido.
O Sistema Paulo Freire de Alfabetização de Adultos não é somente um método ativo de ensino rápido, mas um articulado sistema que leva os analfabetos a ganhar consciência de sua dignidade de pessoa humana, de sua responsabilidade social. O modelo parte de um vocabulário básico de 17 palavras, extraídas do universo do próprio analfabeto e que tenham no contexto social o maior poder de densidade emocional e afetiva, substituindo o tradicional e arcaico método das cartilhas escolares em que inevitavelmente "Ivo via a uva" e aplicando princípios da maiêutica socrática e uma motivação intrínseca.
Em 1963 foi realizada, com grande êxito, a "experiência de Angicos", no Rio Grande do Norte, estado que apresentava um alarmante índice de analfabetismo (75% da população). Iniciada oficialmente a campanha naquela localidade em 12 de janeiro de 1963 – com o beneplácito e o entusiasmo até mesmo dos técnicos americanos da Aliança para o Progresso –, em 2 de abril do mesmo ano já dava por cumprida sua tarefa de alfabetização de um grupo de 300 adultos. Uma possibilidade que, segundo Freire, surge "quando as condições políticas instigam a conscientização e o saber para o tornar-se ser mais".
Acusado logo de pretender angariar com a rapidez de sua alfabetização uns 5 milhões ou 6 milhões de votos de ex-analfabetos para os "progressistas", Paulo Freire começou a provocar a ira dos mais reacionários, a quem não interessava retirar o povo de seu estado de passividade e ignorância. Depois do golpe militar de 1964, rapidamente a situação política do educador – considerado "subversivo" – piorou, obrigando-o a sair do país.
O "Método Audiovisual"
Creio, no entanto, ter descoberto por acaso um episódio histórico pouco divulgado – ou antes, esquecido há 43 anos – e que merece ser relembrado para vir a integrar, com um peculiar sabor irônico, o que hoje se sabe da aplicação do método Paulo Freire em nosso país.
Em conversa com o veterano repórter Ewaldo Dantas Ferreira, disse-me ele que acompanhara de perto as experiências (no plural) do famoso método. Estranhei o plural, e ele me esclareceu: não somente fizera para a Folha de S. Paulo uma extensa cobertura de Angicos ("Quadragésima Hora no Brasil – Um Estudo Sociológico") em 1963, como também outra relevante série intitulada "Ubatuba 65: Experiência de Revolução", em maio de 1965. Nesta última, descrevera minuciosamente como havia se processado, não apenas com a permissão das autoridades, mas com o empenho e a atuação do próprio II Exército e da Força Pública do Estado de São Paulo, a primeira experiência em grande escala da aplicação – em populações de núcleos situados na região de Ubatuba, naquela época marginais, em estado de atraso e ignorância total – do quê? Ora, do próprio Sistema Paulo Freire de Alfabetização de Adultos.
E isso, por incrível que pareça, quando o educador, anatematizado, cassado de seus direitos políticos, perseguido e preso três vezes logo após o Golpe de 1964, já se vira forçado ao exílio, a partir de outubro daquele ano – só poderia voltar ao Brasil em 1980.
Mas como foi possível então realizar essa "operação"? A resposta de Ewaldo é rápida e vem envolta em um sorriso esperto: "Ora, é fácil, nunca mencionamos o nome de Paulo Freire. Disfarçamos seu sistema, batizando-o apenas de "Método Audiovisual"...
Uma história muito interessante, e bela, que merece ser contada em detalhes, quase meio século mais tarde. A campanha foi idealizada e realizada principalmente por empenho de uma jovem advogada ubatubense, Alzira Helena Barbosa Teixeira, que era então secretária de Educação do município de Ubatuba, cujo prefeito era o empresário Francisco (Ciccillo) Matarazzo. A idéia foi endossada pela entusiástica participação do repórter da Folha, Ewaldo, e ganhou corpo e realização. A experiência teve um duplo final feliz: primeiro, foi plenamente bem-sucedida e comprovou sem sombra de dúvida que o Método Audiovisual ("Paulo Freire") era realmente eficaz e não somente alfabetizava populações adultas e marginais em dois ou três meses, como tinha o poder de transformar de maneira radical os próprios núcleos populacionais, em seus vários aspectos. O outro final feliz: logo mais a jovem e dedicada Alzira Helena se tornaria a segunda mulher e companheira de vida, até hoje, de Ewaldo Dantas Ferreira.
O casal de amigos me recebe e permite que eu manuseie, com o maior cuidado, por estarem em vias de desintegração, os números da Folha de S. Paulo dos dias 11, 12, 14, 15 e 16 de maio de 1965, que contêm o relato e as fotos da experiência, realizada nos meses de janeiro e fevereiro do mesmo ano. Um material histórico e documental da maior importância, do qual procurarei fazer aqui um resumo, complementando-o com as lembranças ainda vivas nas conversas que mantive com ambos.
Atraso histórico
A região escolhida para a experiência não podia ser mais adequada – 400 anos após o descobrimento do Brasil, as populações espalhadas em núcleos isolados situados no litoral norte de São Paulo, além da cidade de Ubatuba, conservavam-se à margem da civilização, fora do circuito comercial de trocas e entregues unicamente à pesca, feita em moldes primitivos. O acesso a esses locais era quase impossível, pois só podiam ser alcançados por mar, dependendo das rústicas embarcações dos próprios pescadores, ou por extensas caminhadas pela selva – como dizia o repórter Ewaldo, "a estrada veio até a cidade e parou". O restante da faixa litorânea que se estendia para o norte era o deslumbramento da natureza, sua força intocada quase pelo homem – o conjunto de umas 30 praias de águas sempre translúcidas, um dos mais belos do mundo. Umas bravias, outras mansas e próprias para brincadeiras de crianças. Onde, como descrevia Ewaldo, "à luz da lua o banhista pode ver, à noite, sua sombra refletida no fundo do mar entre duas ondas incendiadas de ardentias". Uma região que apresentava um tipo racial pouco habitual no trópico – no mais das vezes um caiçara loiro, de olhos azuis e sobrenome estrangeiro, Giraud, Bourget, Vignenon... descendente ainda daqueles franceses que, como sabemos pelos compêndios de história pátria, uniram-se aos tamoios na luta contra os portugueses, nos idos de 1500.
"Eles tinham um modo de vida próprio", conta-nos o Ewaldo de hoje. "Conservavam expressões próprias de linguagem, usos e costumes peculiares, cozinha pobre e baseada nos recursos locais, o peixe, a banana, o feijão e a farinha. Naquele tempo havia entre eles vestígios até de poligamia, e um sincretismo perfeito entre a religião católica, a evangélica e resquícios de crenças indígenas."
A própria sede do município de Ubatuba contava então com uma população inferior a 5 mil habitantes, dispunha de uma pequena indústria, menos de uma centena de estabelecimentos comerciais, um banco, duas farmácias e um cinema. Pouco tempo antes seu reduzido serviço telefônico fora ligado à malha nacional. A rede elétrica era precária e insuficiente, o que provocava grandes períodos de "apagão" e impossibilitava a refrigeração regular da própria mercadoria mais abundante e mais necessitada dela – o peixe.
"O que impressionava, nessas comunidades perdidas do mundo, era a resignação com seu estado de atraso e pobreza", comenta o jornalista, hoje. Na praia do Cedro, por exemplo, em um debate sobre a disparidade de distribuição da renda, aqueles pescadores que levavam uma vidinha rotineira, saindo para pescar da madrugada até a tardinha, ano após ano, entregando todo o resultado da pescaria para o dono da rede e contentando-se com um salário mensal reduzido, limitavam-se a dizer: "Mas é assim mesmo que deve ser, é que nem os dedos da mão, tem maior e tem menor..."
Resistência e solidariedade
Foram grandes, obviamente, os problemas que os organizadores da perigosa operação tiveram de enfrentar – só participavam do grande segredo sobre o verdadeiro método que se estava aplicando os técnicos que vieram treinar os alfabetizadores, e que eram pessoas que haviam trabalhado com o próprio Freire. Alzira Helena veria seu entusiasmo inicial ser posto a dura prova pela resistência da Câmara Municipal. Diz ela, 43 anos mais tarde: "Sofri uma tremenda campanha desencadeada por alguns professores primários (homens), que eram também vereadores. Conseguiram derrubar o projeto. Alegavam que eu era advogada e não entendia nada de educação. A Câmara tirou todo o dinheiro programado por mim para a ação desenvolvimentista e o entregou para a caixa escolar e para o assistencialismo tradicional. Fiquei muito desanimada e achei melhor me demitir. Pessoalmente, porém, Ciccillo, como o grande mecenas que realmente foi, manteve o entusiasmo pela operação e continuou a apoiá-la, inclusive com ajuda material e financeira. Também foi muito combatido, não pôde realizar nada do que planejara para Ubatuba, sentia-se de braços amarrados".
No entanto, sem esmorecer, Alzira Helena prosseguia debatendo suas idéias com os amigos, entre os quais estava Ewaldo, que na época fazia reportagens no litoral. E, hoje, ela nos conta: "Empolgado, Ewaldo imediatamente bolou a idéia genial: utilizar universitários, já que não podíamos contar com professores. A partir daí, ele conseguiu envolver uma série de instituições públicas e particulares no projeto. A começar pelo II Exército..."
O apoio então obtido não impediu, entretanto, que as críticas continuassem a chover. O jornal local chegou a dizer que, em vez de trazer um grupo grande de universitários para ensinar os caiçaras em Ubatuba, seria melhor levar os caiçaras para instruírem-se em São Paulo – um despropósito logo evidenciado pelos próprios resultados do projeto. Em dois meses, o trabalho organizado de uma centena de universitários paulistas treinados desde o ano anterior expressamente para a "Operação Ubatuba" não somente alfabetizou aquela população, como mudou a cabeça daqueles caiçaras que só ficavam vendo de muito longe, e sem esperanças, a vida passar. Fez renascer neles a energia para a busca de melhores condições de vida. Tornou-os sujeitos. Cidadãos.
Articulação perfeita
Peço a Ewaldo que explique exatamente o "envolvimento" tão incompreensível das forças armadas, e ele conta: "A primeira coisa que fiz foi solicitar uma reunião com o general Amaury Kruel, comandante da 2ª Região Militar, sediada na capital. Expus nosso projeto, sem nunca mencionar Paulo Freire, é claro. Entusiasmado, o general, que como se sabe era um dos pilares da revolução de 1964, resolveu convocar imediatamente uma reunião do seu estado-maior. E eu falei, falei e falei, durante horas. Saí da sede do comando com tudo amarrado. O exército não somente autorizava, mas assumiria integralmente nosso projeto de alfabetização de adultos. O mais interessante foi que, assim que a reunião acabou, o general me chamou de lado e pediu uma confirmação: ‘Diga uma coisa, esse projeto tem civismo, não tem?’ E eu respondi: ‘General, não falei de outra coisa, só de civismo’ ".
No entanto, esclarece o jornalista, o exército acabou não podendo assumir esse compromisso, por ter sido convocado para manobras em outro lugar. A tarefa foi então passada, pelo próprio general Kruel, para a Força Pública do Estado de São Paulo, que assumiu manu militari seu plano de execuçãoDebruçados sobre mapas milimétricos da região e sobre pesquisas socioeconômicas, os coronéis da Força Pública elaboraram um plano logístico rigoroso, com cronogramas, resolvendo problemas de alojamento, transportes e alimentação, ligações e comunicações. Cada universitário empenhado na operação conseguiu assim, ao chegar ao local de trabalho, contar com uma infra-estrutura estabelecida e ter suas atividades facilitadas.
O secretário estadual de Educação, Ataliba Nogueira, endossou o projeto, definindo-o como plano-piloto, capaz de "oferecer elementos concretos para ampla ação nacional, em várias frentes, tendo em vista a promoção humana do Brasil".
Entre as instituições particulares que, convencidas pelo repórter, deram seu apoio e ajudaram a operação a decolar estavam a Folha de S. Paulo e a Associação Cristã de Moços (ACM) de São Paulo, que emprestou sua sede para o curso de preparação dos cem universitários – escolhidos dentre 400 inscritos, após um aviso publicado na Folha –, que foi realizado no último trimestre de 1964. E também encarregou-se a ACM totalmente da parte administrativa do evento, em toda a sua duração. Os três acampamentos estabelecidos em Ubatuba – Perequê-Açu, Perequê-Mirim e Maranduba – foram dirigidos por secretários da entidade, com a utilização de seus próprios funcionários (inclusive o cozinheiro). Uma passagem cômica: durante o treinamento, apareceu na ACM uma comissão da Liga das Senhoras Católicas, organização extremamente conservadora – e as matronas saíram elogiando a iniciativa, que demonstrava, diziam, "como se podia fazer uma coisa bonita sem a interferência dos comunistas".
A grande reportagem feita por Ewaldo Dantas nos conta pormenores expressivos, pitorescos ou dramáticos, do cotidiano da operação – a história pessoal de muitos daqueles seres humanos que conseguiram ver, nos jovens professores provindos do meio universitário, nos médicos, higienistas, dentistas, profissionais de diversas áreas que a eles se juntaram, verdadeiros "salvadores" que vinham, após quatro séculos de abandono, resgatá-los das condições de subnutrição e subdesenvolvimento em que viviam. Não se tratava certamente apenas de poder escrever "panela" – e da emoção da mulher que caiu no choro ao conseguir grafar essa primeira palavra... O domínio progressivo do código escrito que lhes fora sempre negado vinha associado a coisas fundamentais, concretas – os participantes estimulavam uma vida mais saudável, ensinando preceitos de higiene, fazendo campanha pela instalação de fossas, por exemplo. Outros benefícios podiam se traduzir na construção de alguma ponte mais do que necessária para facilitar o acesso aos núcleos afastados, ou no auxílio na hora dos partos, em assistência médica, exames parasitológicos, cuidados odontológicos, distribuição de óculos.
Descreve ainda Ewaldo com detalhes, nas suas reportagens, o grande entusiasmo mostrado pelos homens da Força Pública, a começar pelo seu comandante-geral, general Franco Pontes. Assim que foi estabelecida a "operação" na cidade de Ubatuba e o técnico de comunicações avisou que estava feita a ligação entre o velho município do litoral, historicamente esquecido, e o quartel da Força Pública em São Paulo, o general parabenizou o comitê executivo com um telegrama: "Congratulo-me vg em nome Força Pública vg meritória campanha sentido humano vg visando levar nossos patrícios caiçaras vg benefícios civilização pt". E declarava: "Continuo escuta para glória do Brasil".
E depois de Ubatuba?
Com a deterioração da situação política, o surgimento da guerrilha e o franco confronto de militares e "subversivos", é claro que a "escuta" do general teve de ser derivada para outros assuntos. A Operação Ubatuba, que se pretendia um projeto-piloto capaz de rastrear e erradicar o analfabetismo no Brasil, não teve um depois.
Quase meio século mais tarde, comenta a sua idealizadora: "Por que a experiência não foi reproduzida em outras cidades? Como na época não se sabia que se tratava do método Paulo Freire (por um milagre esse ‘pormaior’ não vazou, senão seria cadeia para todos nós), não foi em função disso que ela não se repetiu. Creio que foi por desinteresse mesmo. O que se compreende: se prefeituras, governos de modo geral, até hoje pouco empenho demonstram na área de educação, muito menos se interessariam pela alfabetização de adultos. Uma pena. Foi um experimento que deu certo. Poderia ter provocado, se não uma revolução, ao menos alguma conseqüência, nesses brasis. Mas, como sabiamente diz Agatha Christie, a natureza humana atrapalha tudo".


FONTE :

Nenhum comentário: