segunda-feira, 24 de outubro de 2011

ESPECIAL " Ubatuba , espaço, memória e cultura" - parte 47




No seu animismo elementar – diz Anchieta – o Tupinambá povoava de espíritos e lendas a floresta. Desse lugar são oriundos os gênios do mal que povoam o imaginário cultural brasileiro. Por esta razão se faz necessário reconstruir a mitologia Tupinambá e os rituais antropofágicos que definiram segundo os modernistas um traço distintivo da identidade, transmitida de geração em geração.


A mitologia Tupinambá assumida por Alfred Métraux é a descrita pelo frade André Thevet nos seus manuscritos intitulados Cosmographie Universelle - Singularidades da França Antártica (1944), que acompanhou a expedição de Nicolau de Villegaingnon em duas viagens sucessivas ao Brasil[1]. Apesar da considerável erudição do franciscano francês, Métraux ressalta a falta de espírito crítico do mesmo, essa deficiência intelectual torna riquíssimas suas informações acerca dos aborígines em questão.

O estudo da mitologia nos oferece uma teoria morfológica das imagens do mundo e dos sistemas metafísicos que sustentavam as crenças que regiam o agir humano desta civilização na sua relação com o meio. A vitalidade do índio Tupinambá e o mundo exterior se encontram juntos em referência recíproca. Por outro lado, na imaginação, faculdade copulativa por excelência, o mundo é simultaneamente impressão afetiva, determinação axiológica e objeto afim. Isto quer dizer que o mundo Tupinambá, como grandeza independente, é uma simples abstração, pois o índio Tupinambá e o mundo são correlatos, não só ao nível da representação. Esta junção do Tupinambá com o meio implica a descoberta de seres vivos, sensíveis, imaginativos, intelectuais e práticos.

O movimento modernista está estreitamente ligado ao tema da antropofagia, fase polêmica deste grupo liderado por Oswald de Andrade. Tal vertente ideológica do pensamento brasileiro nasce de dois manifestos que se destacaram por resgatar o primitivismo nativo e o teor dessa realidade sócio-cultural: Manifesto Pau – Brasil (Correio da Manhã, 18 – 03, 1924) e Antropofagia (Revista de Antropofagia, maio de 1928). Neste último manifesto assentaram-se as bases para aquilo que veio a se chamar “vanguarda antropofágica”, baseada nos princípios de origem tupi que veremos a seguir.

Queremos de certa forma justificar que as representações Tupinambá têm como correlato a intuição do mundo, assim o processo religioso desta tribo está regido pela fé nas forças divinas operantes no seu entorno. O índio Tupinambá nada sabia das causas de suas enfermidades, loucuras, etc, mas a divindade ou o ser demoníaco é o sujeito acrescentado pela visão a estes efeitos, um sujeito representável é encoberto por meio do pensamento analógico aos efeitos dos sentidos. A realidade independente aparecerá, portanto, de modo mais enérgico em uma figura sensível, por isso, todo ser divino aparece como um símbolo. A personificação é inseparável do processo fantástico da religiosidade. Estes símbolos se integram no caso Tupinambá à imagem do mundo que nos interessa salientar neste trabalho.

As primeiras figuras da cosmogonia Tupinambá são a dos civilizadores, artífices do universo e “transformadores”, unidos entre si por laços parentais:

Monan [Munhã, Moñan Monham][2] é a divindade principal do povo Tupinambá, o criador, o pai, o mais antigo, o principal da raça. “Um astro sem fim e princípio que criou o céu, a terra, os pássaros e os animais no mundo existente”, mas Monan não criou o mar nem as chuvas salvo pela intercessão do homem em um primeiro relato. Existe uma estreita relação da imagem do Deus com o pai que teria sido uma antiga revelação transmitida de geração em geração. Mas, nos chama a atenção a incompletude deste Deus que deixou para seus descendentes o desfecho da criação. Outro aspecto controverso é a imortalidade atribuída por Thevet a esta divindade que, segundo Métraux é uma noção estranha aos Tupinambá. Por outro lado, algumas tribos enxergam nos demônios a virtude da fuga como essencial à sobrevivência, isto é, escapar da morte iminente. Este fator fica em evidência uma vez que o próprio Monan destruiu a raça humana em dois cataclismos sucessivos por causa da culpa, cuja natureza se desconhece.

Existem duas destruições sucessivas do mundo na mitologia Tupinambá. Na primeira, o mundo foi consumido pelo fogo que Monan fez descer do céu com o fim de punir os homens por sua ingratidão. A superfície da terra foi consumida pela ação do calor e desse cataclismo só um homem se salvou Irin – Magé que Monan levou para o céu. Pela intercessão deste sobrevivente, Monan devolve à terra seu estado primitivo, provocando abundantes chuvas para extinguir o incêndio ateado. Assim, as águas do dilúvio escoaram-se por entre as depressões que sulcavam a terra, formando-se os rios e o mar. A salinidade oceânica foi causada então pelas cinzas diluídas na água. Monan deu uma mulher para Irin – Magé, daí surge a humanidade que povoou a terra após o cataclismo.

Outra versão do Thevet dá conta do dilúvio, entretanto, diz Métraux seria uma duplicata da primeira. Tal destruição teria sido causada por Tamendonare que irritado contra seu irmão Aricoute que lhe jogara um braço de um inimigo morto, bateu tão forte na terra que jorrou uma enorme e alta fonte de água que cobriu as colinas da serra ultrapassando a altura das nuvens. Os dois irmãos fugiram para as montanhas a fim de escapar da inundação, achando que o melhor refugio seria o cume das árvores. Tamendonare subiu em uma palmeira, Aricoute em um jenipapeiro. Depois do incidente, a terra foi povoada pelos dois irmãos.

Monan é desdobrado na mitologia Tupinambá em vários personagens, conservando certos atributos na continuidade dos relatos fornecidos por Thevet, mas a incompletude, a mortalidade e a dupla face nos permitem entrever a diferença desta divindade com a onipotência, onisciência e onipresença dos deuses com os quais costumamos lidar no nosso imaginário cultural. O laço parental que parece garantir a continuidade da ação Tupinambá encontra na filiação da horda seu mais completo sentido, assim Irin – Magé será o senhor dos fenômenos naturais e dos mistérios ritualísticos da religião Tupinambá.

Irin – Magé ou Maire – Monan [Mair – Munhã] é o ser portador dos poderes mágicos de Monan. Os Tupinambá colocam outra divindade do lado de Monan designada com o nome de Maire que significa “transformador”, designando um Deus que deu ordem às coisas, segundo sua própria vontade, afeiçoando-se a elas e convertendo-as mais tarde em diversas figuras e formas de animais, pássaros e peixes.

A filiação deste personagem da mitologia Tupinambá está de tal forma identificada com o maior ancestral da tribo que alguns estudiosos chegam a falar que se trata da mesma figura. De qualquer forma, o laço consangüíneo atribuído a este semideus insiste no traço parental anteriormente citado.

Em princípio Irin – Magé é o único homem salvo do aniquilamento universal, dotado da arte de transformação, o poder deste caraíba, espécie de profeta munido de poderes mágicos, o faz aparecer na mitologia Tupinambá como um feiticeiro, que vivia em retiro, em jejum e rodeado de seguidores. Introduziu as práticas sagradas e mágicas entre os índios, que foram observadas a rigor como o costume da tonsura, a depilação e o achatamento do nariz nos recém nascidos. Irin – Magé desaconselhava comer carne de animais pesados e lentos; a dieta devia ser substituída por animais ligeiros com o fim de adquirir essa habilidade por ingestão. Mas, a ação civilizadora desta figura consistiu em haver desenvolvido a agricultura entre os antepassados Tupinambá, base da alimentação que garantia a sobrevivência do seu povo. O advento de uma grande carestia que assolou a humanidade fez com que Irin – Magé se transformasse em uma criança que ao apanhar provocava abundantes chuvas que regavam as plantas semeadas na aldeia. Também ensinou aos índios a distinguir os vegetais para o consumo daqueles que eram venenosos e mostrou por acréscimo as virtudes medicinais das ervas Também eram atribuídas a ele as formas de governo da tribo.

O poder transformador de Irin – Magé se projetava no universo mais imediato da selva, dos animais, das coisas e até da própria existência. Homens que Irin – Magé transformou em animais, irados por causa de sua metamorfose, decidiram matá-lo. Convidaram-no para uma festa onde o obrigaram a saltar três fogueiras acesas. Após saltar a primeira com êxito, a divindade evaporou-se e foi assim consumida pelas chamas. Sua cabeça explodiu produzindo um enorme trovão, enquanto as labaredas do fogo se transformaram em raios. Irin – Magé subiu ao céu e virou uma estrela junto com dois de seus seguidores.


[1] André Thevet fez a sua primeira viagem ao Brasil em 1550 e a segunda entre 1555 e 1556. Os motivos missionários que impulsionava a empresa da viagem e a idade avançada deste capuchinho o fizeram incorrer em erros de memória e em contradições que só a história e a ciência se encarregaram de reivindicar. Mas, o valor da obra como testemunha imediata da “descoberta” da cultura Tupinambá traz à tona o frescor das informações e a contemporaneidade que podemos estabelecer com ela.
[2] Entre parêntese: os nomes com os quais as divindades aparecem nas diversas designações das tribos tupi.

CONFIRA   A   48 ª PARTE , A SEU PUBLICADA NO DIA   27/10/2011

Com a publicação da pagina  139 ( meio em diante ) ,  do livro UBATUBA, ESPAÇO , MEMORIA E CULTURA..
Confira esse livro na integra , visitando a Biblioteca  Atheneu Ubatubense
Praça 13 de Mai, 5552- Centro - Ubatuba -SP


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