quinta-feira, 4 de agosto de 2011

ESPECIAL DO LIVRO " UBATUBA, ESPAÇO, MEMÓRIA E CULTURA....40 ª parte

Este atormentado canto de Anchieta fala da fé em Maria, na qual encontra o sentido para sua angustia, a entrega incondicional de sua alma ao poder mediador da imagem divinizada na sua prece. Vieira comenta a favor do jesuíta que vencendo o terror da morte e as tentações da carne compunha, esvoaçava-lhe aos ombros, nesse instante, uma ave multicolor. Dístico após dístico, até a gloriosa assunção da Virgem, Anchieta metrifica o poema no meio dos bárbaros Tamoio.




Os diálogos do anjo e da Virgem, o misterioso noivado espiritual, o advento do fruto inigualável, a oferenda simbólica dos magos, a purificação, a fuga para Egito, o regresso da Sagrada Família para Israel, Jesus no templo, a dor suprema do calvário, o gozo da ressurreição, o transporte de Maria à bem-aventurança constituem a ação poética em uma reedição da lenda cristã.



No meio desses cânticos aparecem os anátemas a Calvino, deflagrações do ódio religioso contra aqueles que negam a virgindade excelsa de Maria. O austero Calvino, teólogo e humanista, cuja sobriedade foi tão rígida quanto sua doutrina, é crivado pela poesia de Anchieta neste Poema, trata-o de ébrio, um satírico calvo e tonto que saísse dos banhos das ninfas para a Escola de Genebra. Na cólera, José de Anchieta explode de intolerância com seu inimigo execrando-o ao exílio, á tortura, à morte pelo fogo. A época da conquista é a era dos rancores da Inquisição e dos autos de fé entre os católicos europeus, principalmente dos espanhóis que vêem na Península um cenário de uma guerra religiosa de intolerância.



Os conflitos, entre católicos e calvinistas, são esclarecidos nos versos sobre a intemperança e a concupiscência de Calvino que aparecem no Poema à Virgem Maria composto pelo jesuíta José de Anchieta:



Calvino: trocaste a Glória de Cristo pela insânia de Baceho e é esse o nome de tua linguagem, o teu amor. Calvino: mudaste a pureza de Maria na impudicícia de Vênus, e é por essa que vives, e nessa é que tens a tua mestra, a tua lei, a tua deusa. São esses os ídolos próprios do nome e da mente de tal criatura...” Porque o nome te revela os costumes: para tal vida, tais obras. Calvino: tens o nome do cal e do vinho, o duplo nome da vida que levas (Vieira, 1929:130).



A cólera de Anchieta passa e retoma a laudatória a Maria, alfabeticamente ordenando: Laudes, Virginis ordine alphabetico, emanando dos colóquios e das súplicas. Enfim, transparecem no epílogo minúcias, delicadezas e arte: em primeiro lugar, a dedicatória ao poema – Dedicatio operis; depois, as imaculadas forças marianas; por último, a breve Recomendatio de Anchieta à Virgem Maria que lhe convertera os pensamentos voluptuosos em ritmos sacros:



Hás preces fundo tibi, Virgo Mater.

Quae cares naevo speciosa tota,

Ut mihi intacto tribuas pudicam

Corporae mentem

Amem. (Vieira, op. cit: 132).



Este longo poema é posteriormente depurado e reescrito por José de Anchieta com apuro beneditino, desde o ofertório à dedicatória, no colégio de São Vicente. Este ato dá ao jesuíta – segundo Vieira – a vulnerabilidade aos golpes da contradição no processo da conquista. A poesia de José de Anchieta imersa na devoção católica corre o risco de ser lida como um todo homogêneo, afirma Alfredo Bosi, no livro Dialética da Colonização (1995), tal afirmação nos parece crucial para entender a transposição para o Novo Mundo de padrões de comportamento e de linguagem que trouxeram como conseqüência a atitude representada na poesia de Anchieta que repete o modelo europeu clássico do latim no seu poema à Virgem Maria, sendo refém dos Tamoio nas praias de Iperoig, o missionário sente a necessidade de purificação. Esse mesmo evangelizador aprendeu o tupi para fazer rezar nessa língua seus “conquistados”. A antiga forma literária do catolicismo medieval revigorada na renascença é moldada à situação colonial. Anchieta precisou mudar um código em função de seus destinatários, a nova freguesia demandava uma linguagem própria, entretanto, nisso concordamos com Bosi, Anchieta inventa um imaginário sincrético, uma mistura do discurso católico e a língua tupi, forjando figuras míticas como Karaibebé, profetas que voam, nos quais os nativos identificavam os profetas da Terra sem mal, ou Tupansy, mãe de Tupã, para falar de um atributo de Nossa Senhora. Há neste exercício uma fusão da cultura – reflexa e a cultura – criação que aparece muito clara no poema anteriormente descrito (Bosi, 1995:131).



Portanto, é necessário conhecer em profundidade, o dinamismo peculiar à missão jesuítica no Brasil com todas as suas exigências de fidelidade aos valores gerados na Península durante a Contra – Reforma. A cruz e a espada se unificaram para a disputa do bem comum: o corpo e a alma indígena. A narrativa de José de Anchieta evidencia às vezes o contraste agudo entre a colonização como pré – ação e o apostolado que, no início para ele constituía uma necessidade. Tratava-se de dois projetos diferentes, cujas conciliações foram sempre temporárias e diplomáticas como é o caso da Paz de Iperoig, mas o dinamismo interno levou a um confronto aberto de interesses, onde o único perdedor foi o índio.



A piedade católica do século XVI, século da Contra – Reforma explorou de modo intenso a imaginação material do céu e do inferno como vimos no Poema à Virgem Maria mediadora da alma de José de Anchieta, tocado incondicionalmente nessa viagem mística. Como já mencionamos, Anchieta e todos os jesuítas de sua época eram discípulos de Inácio de Loyola, o fundador da Companhia de Jesus, cujos Exercícios espirituais induzem a alma do praticante a visões metodicamente aterradoras do Além, assim como a preparam para sentir arroubos de contrição e adoração (Bosi, op. cit: 84).



Os processos de sublimação sofridos por Anchieta em Iperoig são diferentes dos rituais Tamoio. Os espíritos dos ancestrais Tupinambá que habitam a selva e as praias baixam na tribo que os invoca, inspirando visões violentas e a perda da identidade anterior, a cada ritual antropofágico havia uma re-nomeação dos seus participantes. O itinerário cristão e ortodoxo de Anchieta busca a chamada visão beatífica onde a contemplação é uma experiência de provação no deserto da solidão, uma conquista propiciada pela ascese das potencias afetivas e imaginárias da alma.



Em um outro close up da história, ainda se tratando da Paz de Iperoig, Antônio Torres reproduz um diálogo entre Anchieta e Nóbrega cativos, referente ao destino de suas vidas no meio dos Tamoio. Este último aceitando as condições impostas pelos índios como um modo de protelar a ação de ambas as partes. Neste dilatamento das negociações, Pindabuçu chegou disposto a matar os padres aos quais atirou, estes fugiram pelo aviso de outros índios e se refugiaram em uma igreja de palha. Com o tacape na mão, o líder enfrentou o olhar de Anchieta que o tocando nos ombros lhe falou das tradições da tribo, de suas glórias no combate, da nobreza dos seus gestos ante o perigo, pois o religioso reconhecia a braveza dos Tamoio, mas a missão dele e de Nóbrega era a pacificação, rogar o perdão da Confederação dos portugueses. Assim, o embaixador da paz consegue com tom manso que Pindabuçu cedesse ao apelo de Anchieta.



Anchieta aguarda por uma nova assembléia e Aimberé retorna para sua aldeia em Uruçumirim, pois sua filha Potira tinha acabado de dar à luz um neto para ele. Aimberé aproveitou a proximidade com os franceses para consultá-los sobre a proposta dos padres. Munido de diversas informações, Aimberé parte à frente de 40 canoas repletas de índios para a nova assembléia e com alguns franceses inseridos na vida tribal.



Nessa nova assembléia voltam a surgir divergências. Araraí, da tribo dos guaianases, cuja aldeia ficava no planalto de Piratininga, perto do colégio dos jesuítas era completamente a favor da continuidade da guerra, por razões já mencionadas nestes relatos: a perda de seu filho Jogoanharo, orgulho de sua velhice morto pelo seu irmão Tibiriçá, aliado incondicional dos portugueses. Outros chefes também tinham motivos para recusar a proposta de paz, mas queriam viver com a garantia de ser respeitados na sua terra. A dificuldade maior era acreditar na palavra dos brancos. Assim, a assembléia não foi fácil. Nóbrega e Anchieta ouviram as queixas costumeiras a respeito dos portugueses e seu afã de dominação. Anchieta alçou a voz no meio da assembléia e com persuasiva retórica falou da necessidade de paz, em nome de Deus e todo o Conselho da Confederação dos Tamoio o ouviu, com o máximo de respeito. O enunciado do jesuíta era que os Tamoio eram “os verdadeiros donos da terra” e que os portugueses ao faltarem com a lei de Deus – a palavra empenhada no Tratado - seriam punidos, mas o desafio de todos era trabalhar como irmãos, sem ódio, colaborando uns com os outros. Os portugueses poderiam construir escolas, ajudá-los com os doentes, ensiná-los no cultivo e no cuidado dos animais domésticos, a usar métodos mais racionais de cultivo de cana de açúcar e outras plantas que melhorariam as condições de vida das aldeias.

PROXIMO CAPITULO, NO DIA 8 DE AGOSTO 2011, com a publicação do 41 º Capitulo
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