O cativo alemão , sempre amparado pela Providência divina, segundo suas próprias palavras, atendeu a este mesmo selvagem que o ameaçava quando precisou de sua ajuda para se curar de fortes dores nos olhos. Novamente, Hans prometeu ajudá-lo, com condição que este parasse de ameaçá-lo. O Alkindar acatou seu pedido e alguns dias depois estava curado. Isso fortaleceu ainda mais a idéia dos selvagens a respeito da relação do alemão com seu Deus que intervinha todo o tempo a seu favor.
Os portugueses costumavam comercializar com os Tupinambá, apesar da rivalidade e inimizade. Trocavam facas e foices pela farinha de mandioca que usavam para alimentar seus escravos negros que mantinham nas plantações de cana-de-açúcar. A maioria das vezes a comercialização acontecia num navio português que ancorava próximo da praia, até onde os índios chegavam de canoa. Dois selvagens subiam para efetivar a troca de mercadorias enquanto eram observados à distância por outros selvagens com intuito de garantir a negociação. Mas, em numerosas ocasiões os selvagens reagiam insatisfeitos lançando flechas contra àqueles injustos comerciantes.
Já haviam passado cinco meses da permanência de Hans Staden entre os selvagens. Uma navegação de portugueses vinda de São Vicente aportou próximo da aldeia de Ubatuba, Angra dos Reis. Um tiro de canhão chamou a atenção dos selvagens que correram à praia, pois, achavam que se tratava de um navio trazendo mercadorias. Os portugueses perguntaram logo pelo alemão, se ainda este estava vivo, dizendo que queriam vê-lo. Tinham uma grande caixa, cheia de mercadorias mandada pelo “irmão” de Hans Staden, que também se encontrava a bordo do recém chegado navio1. Era, na verdade um francês, um velho camarada do alemão chamado Claude Mirande.
Os selvagens voltaram à aldeia, disseram ao alemão que seu irmão estava no navio e que queria vê-lo. Hans Staden fez os selvagens acreditarem que aquele francês era efetivamente seu irmão convencendo-os que o levassem até ele. Uma vez a bordo, Hans Staden conversou com um dos portugueses e lhe solicitou que o tratasse como francês. Um outro tripulante do navio de nome Juan Sánchez, conhecido do alemão, contou que tinham viajado com o propósito de achá-lo. O capitão Braz Cubas tinha ordenado que descobrissem se ele ainda estava vivo e o levassem de volta, mesmo que fosse preciso capturar alguns selvagens para depois negociá-lo numa troca.
Hans Staden pediu encarecidamente a seus camaradas algumas mercadorias para negociar a sua estabilidade entre os nativos que em seguida foram a buscá-las no navio. Quando percebeu que iam proibi-lo de continuar conversando com os portugueses, avisou-os de um possível ataque no mês de agosto em Bertioga. Os portugueses disseram que também os selvagens, Tupiniquim, iriam atacá-los. O alemão lamentou ainda não ser, desta vez, libertado e pediu a Deus que o ajudasse a sair deste conflito de interesses no qual ele se tinha transformado em um astuto mediador.
Voltando à aldeia o alemão disse aos Tupinambá que foi o seu irmão que havia dado os presentes e que voltaria a sua terra natal afim de trazer mais mercadorias para eles e também para buscá-lo. O alemão, para agradar os índios menciona que em conversa com seu irmão, lhe disse que eles eram pessoas ordeiras e o tratavam bem, por isso, deveria compensá-los com tais mercadorias em forma de gratidão. Daí em diante os selvagens o trataram melhor e com respeito. Desta forma os nativos passaram a considerar o alemão como um a mais entre eles, integrando-o nos afazeres do dia-dia, levando à floresta para caçar, e para o exercício da pesca.
Mais uma vez, Hans Staden estava prestes a presenciar um ritual de antropofagia naquela aldeia. Desta forma, a morte do indivíduo que viraria carne assada, serviria para que se reforçasse a ligação poderosa do alemão com Deus, uma vez que este episódio deixa de manifesto a clarividência do cativo alemão a respeito dos fenômenos humanos naturais que afetavam à aldeia.
A história da vítima do ritual antropofágico é de um índio Carijó servo dos portugueses, que fugiu destes para encontrar abrigo entre os Tupinambá. Há três anos de sua permanência na aldeia, este mesmo Carijó afirmou ter visto Hans Staden entre os portugueses e começou acusá-lo de disparar com arma de fogo contra os Tupinambá, em expedições guerreiras. Além do mais, responsabilizou-o pela morte de um dos chefes desta tribo, instigando os indígenas a matá-lo por ser inimigo dos mesmos. Era improvável este fato, pois se o Carijó estava há três anos com os Tupinambá e o alemão contava apenas um ano de sua chegada em São Vicente, como poderia tudo isto ser verdade? Mas no sexto mês da permanência de Hans Staden entre os selvagens, o servo Carijó caiu muito doente. Foi pedido ao alemão que o curasse através da intercessão de seu Deus, e assim voltasse a ter saúde para poder caçar na selva. O alemão tentou por alguns dias curá-lo e quando os selvagens o indagaram sobre a saúde do escravo, este respondeu que de nada adiantaria, pois já nada mais podia fazer pelo Carijó. Os nativos então acharam que deveriam sacrificá-lo em banquete antes que morresse fruto da doença que o afetava e assim o fizeram.
No ritual, o chefe Guaratinga com mais dois selvagens proferiu-lhe um golpe certeiro na cabeça com tanta força que fez com que os miolos voassem longe. Os selvagens demonstravam a viva voz vontade de devorá-lo. Hans os advertiu dizendo que não seria bom comê-lo, pois este estava doente e podia contaminá-los. Ficaram parados e assustados sem saber o que fazer quando um homem se aproximou ordenando que as mulheres fizessem uma fogueira para assar o corpo. Decapitou o indivíduo jogando fora a cabeça e logo assaram o corpo fazendo com que a pele se desprendesse, o cortaram em vários pedaços iguais e assim o dividiram entre eles.
A morte deste indivíduo serviu para reforçar a idéia que Hans tinha uma ligação forte com seu Deus, e que este falecera em decorrência da fúria divina pelo testemunho falso que levantara contra o alemão que proferia em alto e bom som: “... Meu Deus agirá dessa forma com todas as pessoas más que me causaram ou causarão sofrimento!”. Isso levou a muitos dos selvagens a ficarem temerosos de Hans Staden.
Estava chegando a época em que os Tupinambá iriam guerrear contra os seus grandes inimigos, os Tupiniquim e os portugueses. Hans Staden queria tentar uma fuga, pois achava que o deixariam na aldeia junto às mulheres. Nesse meio tempo, houve noticias de um navio francês que teria atracado em um porto a oito milhas de Ubatuba, no Rio de Janeiro, chamado pelos selvagens de Niterói. Neste porto, também os portugueses faziam o carregamento, negociavam pau-brasil , outras várias especiarias, como pimenta, além se macacos e papagaios. Era o momento propício para pensar na fuga.
1 A palavra irmão entre aspas faz referência na verdade a um velho camarada francês de Hans Staden. Cabe salientar aqui que germano, isto é, alemão, também se traduz como irmão no sentido mais literal e cristão do termo.
Confira a sequencia ( 34 ª PARTE ) deste ESPECIAL, visitando este blog no dia 06 de junho .... Da pagina 186 (inteira) até a pagina 192.....
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