DO AUTOR DESTE BLOG : A matéria abaixo mostra uma passagem com Hans Staden, durante sua estada , como prisioneiro na Aldeia de Ubatuba (Angra dos Reis), ele relata o momento de um ritual Tupinambá, o ato de puro e sagrado canibalismo...
.....Alguns dias depois, quiseram comer um prisioneiro numa aldeia chamada Ticoaripe, a cerca de seis milhas de Ubatuba. Da minha própria aldeia acorreram vários e me levaram junto. Fomos num barco. O escravo que queriam comer pertencia à tribo dos Maracajás.
Como é costume deles quando querem comer um homem, preparam uma bebida de raízes que chamam de cauim. Somente depois da festa da bebida é que o matam.
Quando finalmente o momento chegou, fui na noite anterior ao festim falar com o escravo e disse-lhe: "Então você está preparado para morrer". Ele riu e respondeu: "Sim, estou com todo o equipamento, apenas a muçurana não é bastante longa. Em casa temos melhores". Eles chamam de muçurana uma corda de algodão algo mais espessa que um dedo, com a qual os prisioneiros são amarrados, e sua corda era cerca de seis braças curta demais. Ele fala como se estivesse indo a uma quermesse.
Como é costume deles quando querem comer um homem, preparam uma bebida de raízes que chamam de cauim. Somente depois da festa da bebida é que o matam.
Quando finalmente o momento chegou, fui na noite anterior ao festim falar com o escravo e disse-lhe: "Então você está preparado para morrer". Ele riu e respondeu: "Sim, estou com todo o equipamento, apenas a muçurana não é bastante longa. Em casa temos melhores". Eles chamam de muçurana uma corda de algodão algo mais espessa que um dedo, com a qual os prisioneiros são amarrados, e sua corda era cerca de seis braças curta demais. Ele fala como se estivesse indo a uma quermesse.
Eu tinha comigo um livro em português que os selvagens acharam num navio conquistado com a ajuda dos franceses e deram para mim. Eu li um pouco desse livro quando deixei o prisioneiro, e fiquei com pena dele. Por isso fui de novo encontrá-lo e falei outra vez com ele, pois os Maracajás estão entre os amigos dos portugueses: "Eu também sou prisioneiro, igual a você, e não vim porque quero comer um pedaço de você, e sim porque meus senhores me trouxeram". Ao que ele resopndeu que sabia muito bem que nós não comíamos carne humana. Continuei dizendo-lhe que devia consolar-se, pois eles comeriam apenas a sua carne, mas que seu espírito iria para um outro lugar, para onde também vão os nossos espíritos, e que lá havia muita alegria.
Ele perguntou, então, se isso era verdade. Eu disse que sim, e ele retrucou que jamais tinha visto Deus. Terminei dizendo que ele veria Deus na outra vida e afastei-me, uma vez que a conversa estava encerrada.
Na noite seguinte, bateu um forte vento soprando tão poderosamente que arrancou pedaços da cobertura da casa. O que fez os selvagens ficarem zangados comigo. Disseram em sua língua: "Aipó mair angaipaba ybytu guasu omou". O que vem a ser: "o homem mau, o santo, agora faz com que o vento chegue, pois durante o dia olhou na 'pele do trovão'". Assim chamavam o meu livro. Eu teria chamado o mau tempo porque o escravo era amigo nosso e dos portugueses e assim eu talvez quisesse impedir a festa. Então roguei a Deus e disse para mim mesmo: "Senhor, tu que me protegeste até agora, continua a proteger-me". Isso porque sussurravam muito a meu respeito.
Quando amanheceu, o tempo estava bom. Bebiam e estavam muito contentes. Então fui ao encontro do escravo e disse-lhe: "O forte vento era Deus. Ele quer te levar até a presença Dele." Ele foi comido no segundo dia depois desse.
À parte o fato de que o sujeito rezar pra Deus para que outro se rale em seu lugar me parece bem pouco cristão, o trecho acima faz parte de um dos documentos mais valiosos disponíveis sobre a origem do Brasil. Está no livro publicado na Europa no século 16 pelo alemão Hans Staden (1525 – 1579). um dos sujeitos mais azarados de sua época, mas que ao fim se revelou um grande sortudo. Mercenário contratado como artilheiro, ele esteve no Brasil em 1550 a bordo de um navio espanhol – razão pela qual foi preso pelo governador-geral Tomé de Souza. No meio de um bando de portugueses, Staden naufragou no litoral sul foi capturado pelos índios tamoios, tribo inimiga dos tupiniquins e dos portugueses. Staden era guarda-arcabuzeiro de um forte português, foi confundido ele próprio com um "peró", como os índios chamavam os portugueses. Ou seja: a situação complicou pro lado dele, levado para uma aldeia indígena em Ubatuba e mantido entre os indígenas, como escravo, por sete anos, nos quais esteve sempre sob a ameaça de ser devorado pelos índios. O antropólogo Darcy Ribeiro defende, a propósito, no seu estudo O povo brasileiro, que a salvação de Staden não teve nada a ver com interferência divina, como ele próprio achava e vocês viram aí no trecho acima. O fato é que o alemão chorava e esperneava demais, e por isso não foi comido, já que o ritual antropofágico era realizado também para que o valor e a coragem do inimigo fossem absorvidos pela ingestão da carne.
Salvo de ser devorado e de volta à Europa, Staden publicou em 1557 este relato sobre sua experiência entre os canibais, com o longo título de A história verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres humanos, situada no Novo Mundo da América, desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas terras de Hessen até os dois últimos anos, visto que Hans Staden, de Homberg, em Hesen, a conheceu por experiência própria, e que agora traz a público com essa impressão. Como conta Eduardo "Peninha" Bueno na apresentação:
"sabe-se que História Verídica teve nada menos que dez reedições em cinco anos, sendo rapidamente traduzida para o holandês (1558), para o latim (1559) e para o flamengo (1560), como para o inglês e o francês. Até o século XVII, já se contavam mais de 70 edições da obra. O livro, no entanto, não foi escrito pelo próprio Staden, que, embora não fosse analfabeto de pai e mãe, com certeza era pouco letrado. O texto é obra de um certo doutor Dryander, alemão estudioso de 'matemática e cosmografia' e autor do prefácio original, no qual, aliás, confirma que de fato 'reviu, corrigiu e, quando necessário, aperfeiçoou' o original"
O livro está sendo relançado agora, com tradução direta de Angel Bojadsen e o já mencionado prefácio de Eduardo Bueno, na cada vez mais monumental coleção pocket da L&PM (184 páginas, R$ 12). É a segunda reedição da obra em menos de uma década. Já em 2000, mesma época de estréia do filme Hans Staden, de Luiz Alberto Pereira, o livro ganhou uma edição traduzida por Pedro Sussekind para a Dantes Editora. E há uma versão ainda disponível da editora Martin Claret, mas não tenho informações sobre a qualidade do texto e a tradução. Para complementar, apenas, termino este post com um trecho do texto escrito para a Zero Hora em abril de 2000, por ocasião da edição da Dantes, e assinado pela jornalista Cris Gutkoski, a responsável na época pela área de livros:
Em tempos de Internet, tem textos que duram 30 minutos. Num ponto do caso Monica Lewinsky, que abalou a Casa Branca em 1998, toda a cobertura online sumiu da tela porque tinha notícia mais importante: o presidente infiel estava bombardeando o Sudão. Rápido assim. Mesmo na boa literatura obras são esquecidas em menos de um século. Pois o relato do aventureiro alemão Hans Staden reeditado agora completa 443 anos desde a primeira publicação e, pela clareza do estilo e diversidade do conteúdo - geografia, história, antropologia, oceanografia etc. - persiste como valiosa fonte de conhecimento sobre os primeiros habitantes do Brasil, com os quais o autor conviveu de 1548 a 1555.
Hans Staden sobreviveu ao naufrágio de um navio espanhol no litoral sul e, quando servia como guarda de um forte português, foi capturado pelos índios tupinambás. Escapou por muito pouco de ser esquartejado e comido. Grande parte de A Verdadeira História dos Selvagens, Nus e Ferozes Devoradores de Homens reconstitui as longas negociações para que os índios desistissem da idéia de trucidar a quem eles tomavam por um inimigo português. Cristão fervoroso - o próprio livro é mais um agradecimento a Deus por ter escapado vivo do que uma estréia mundial na grande reportagem - , Staden ameaçava os índios com a ira divina, que podia destruir plantações com chuva em excesso, ao mesmo tempo em que tentava se passar por francês. O paladar dos tupinambás era mais sensível às carnes portuguesas dos primeiros desbravadores – os verdadeiros inimigos.
Hans Staden sobreviveu ao naufrágio de um navio espanhol no litoral sul e, quando servia como guarda de um forte português, foi capturado pelos índios tupinambás. Escapou por muito pouco de ser esquartejado e comido. Grande parte de A Verdadeira História dos Selvagens, Nus e Ferozes Devoradores de Homens reconstitui as longas negociações para que os índios desistissem da idéia de trucidar a quem eles tomavam por um inimigo português. Cristão fervoroso - o próprio livro é mais um agradecimento a Deus por ter escapado vivo do que uma estréia mundial na grande reportagem - , Staden ameaçava os índios com a ira divina, que podia destruir plantações com chuva em excesso, ao mesmo tempo em que tentava se passar por francês. O paladar dos tupinambás era mais sensível às carnes portuguesas dos primeiros desbravadores – os verdadeiros inimigos.
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