quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Padre José de Anchieta – Por Viriato Corrêa


Quando Anchieta estava à bei­ra da praia, a maré, para não lhe molhar os pés, deixava de encher




              NA IMENSA brancura da praia a mancha negra do vulto de Anchieta.

Em Iperoígue, ao cair da tarde. O mar rasgado não tem fim. 
É um dia de céu azul, de nuvens rendadas pelo céu, de brisas 
doces e de gaivotas bran­cas. A praia, como uma toalha estendida 
ao sol, é tão alva e tão alva, que a gente pensa ter sido com espuma 
do mar que Deus formou a areia.
A maré vazou há tanto tempo que já deve ser hora de começar a encher.
Nem uma ubá(1> cabocla baloiça nas ondas. Nem uma buzina tamoia soa nos ares.
 Nada. Tudo tranqüilo 


como se a natureza estivesse aproveitando aquela tranqüilidade para dormir.
Somente lá em cima, no arvoredo, como que a embalar o sono da natureza
Na areia úmida Anchieta vai vagarosamente escre­vendo com o bastão.
Ao pisar naquela terra viera-lhe à cabeça a idéia de compor um poema dedicado à Virgem Maria. E eram os primeiros versos desse poema que agora escrevia na areia.
Já fazia muitas semanas que ele estava ali em Ipe-roígue, no meio dos índios
 selvagens. Viera de São Vicente acompanhando o padre Manuel da Nóbrega. 
Tinham vin­do pedir paz aos índios,. tinham vindo pedir aos chefes tamoios que
 desistissem da guerra que eles de novo pre­paravam contra os portugueses.
Se havia no mundo guerra justa havia de ser aquela dos selvagens contra os 
civilizados. Era a indignação do povo livre contra o povo que o queria 
escravizar. Os por­tugueses todos os dias arrasavam aldeias para reduzir
 os indígenas ao cativeiro. A explosão de revolta tinha que dar-se e deu-se
 com o ataque de Piratininga.
Era em Piratininga que viviam os mais ferozes escra-vizadores dos filhos da selva. 
E um dia, quando ninguém espera, a vila é atacada brutalmente.
Não é apenas uma aldeia ou uma tribo a atacá-la, é todo o povo 
caboclo que sofre a destruição dos escraviza-dores: os tamoios, os guaianás,
 os tupiniquins, os carijós.

 — a cantiga das cigarras.
O choque é tremendo. Afinal, ajudada por Tibiriçá, a vila consegue vencer 
os atacantes.
Mas a derrota, em vez de desanimar os indígenas, os irritou ainda mais. 
 Das matas de Piratininga às praias do Rio de Janeiro, ouviu-se a 
voz da inúbia guerreira convi­dando todas as tribos caboclas para a vingança.
Aimberé, Grão-Palmeira, Cunhambebe, Coaquira, Pa-ranaguaçu, 
enfim todos os grandes caciques das selvas, for­maram os seus exércitos. 
Muito, muito mais de cem mil homens já estavam preparados para atacar
 os portugueses. Seria o arrasamento. Em S. Vicente, em Piratininga, 
em toda parte onde houvesse sombra de europeu, não ficaria pedra sobre pedra.
Não seria apenas o arrasamento de uma, de duas, ou mais vilãs, seria a extinção
 do domínio português no Brasil.
Era preciso pedir paz aos índios. Pedir, como, se deles ninguém podia
 ao menos aproximar-se?!
Havia alguém que tivesse coragem de ir falar em paz a algum dos chefes?
 Havia. Havia Nóbrega, o superior dos jesuítas. Iria a Iperoígue entender-se
 com Grão-Pal­meira e Coaquira, os dois caciques mais velhos e mais cordatos.
E foi a ele, Anchieta, que o superior dos jesuítas esco­lhera para o acompanhar
 a Iperoígue.
Tinham sido tremendos os primeiros dias que os dois passaram entre os 
selvagens. A vida de ambos andou por um triz nas mãos daquela gente.
Mas Nóbrega, com a sua bondade, estava pouco a pouco acalmando 
os ódios. Havia duas semanas que anda­va nas aldeias distantes
 convencendo os chefes indígenas de que deviam desistir da guerra.
Ele, Anchieta, ficara ali em Iperoígue, acalmando tam­bém a raiva dos caciques.


As horas eram-lhe amargas. Todos os dias os índios lhe faziam ameaças de morte.
Felizmente Deus lhe dava a inspiração do poema dedi­cado à Virgem Maria. 
Felizmente, porque a febre daquela inspiração punha a sua alma inteiramente esquecida do mundo.
*
Naquela tarde tranqüila, de céu azul, de gaivotas brancas, Anchieta começava 
a escrever o poema. Como não houvesse papel, escrevia na areia e guardava os versos
na memória,
As estrofes surgiam-lhe inteiras, cantantes, musicais, iluminadas. 
Transfigurado, ele ia escrevendo, escrevendo. E5 à proporção
 que escrevia, pouco a pouco, sem dar por isso, aproximava-se 
cada vez mais do mar.
Versos, versos, dezenas, centenas de versos lhe bro­tavam na cabeça.
A tarde desmanchava-se em ouro. O mar dourava-se à luz da tarde.
Soprava agora um vento mais vivo. As vagas não eram mais o 
veludo macio de horas antes; agora cresciam cres­pas, nervosas,
 avolumadas. Sentia-se que era a maré que estava enchendo. 
Em breve o alvíssimo lençol da praia desapareceria coberto pelas
 águas verdes.
Mas o que então se passa é um acontecimento prodi­gioso, tão 
prodigioso que, lá em cima, na ribanceira, onde se erguem as ocas tamoias,
 os índios ficam boquiabertos.

E que é que se passa? Isto.
Umas atrás das outras, as ondas da maré que enche, vêm rolando e
 correndo para a praia. Mas Anchieta está à beira d’água absorto,
 escrevendo. E, ao vê-lo, as ondas param, como se não quisessem 
perturbá-lo.
Outras vagas, em seguida, vêm chegando e, ao ver as companheiras
 paradas, param também.  O vento começa a soprar fortemente.
   Ondas, ondas às dezenas, às centenas, aos milhares,
 vêm correndo.  E todas param ali, umas ca­valgando as outras
 fervendo, espumando, na inquietação de avançar e de espraiar-se.
   E vai crescendo o volume líquido e vai-se formando a
 montanha d’água. O mar inteiro ruge como enjaulado.
 Lá em cima, na ribanceira, os índios, surpreendidos por 
aquele acontecimento nunca visto, gritam alarmados para Anchieta:
— Sai, abaré("), sai!
Ele não ouve, A sua alma está fora da terra, no mundo
 luminoso da inspiração.
Mais e mais ondas, sempre mais grossas, mais altas.
 E a montanha d’água a crescer, a subir, a ferver, a espumar.
— Sai, abaré, sai!
"Uma pedra, atirada da ribanceira, cai-lhe junto aos pés. 
Anchieta desperta. A muralha líquida que lhe ruge à fren­te, 
mete-lhe medo.
Corre, afasta-se, sobe a ladeira da aldeia.


E quando ele chega lá em cima todo aquele colosso 
de ondas desaba estrepitosamente. Num segundo, 
a toalha infinita da praia fica coberta de água verde 
e de espumas brancas.
A natureza de novo se tranqüiliza.
O sol derrama no poente uma chuva de ouro.
Todas as nuvens do céu estão douradas.

Estão douradas as próprias gaivotas brancas.
FONTE :  

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