Quando Anchieta estava à beira da praia, a maré, para não lhe molhar os pés, deixava de encher
NA IMENSA brancura da praia a mancha negra do vulto de Anchieta.
Em Iperoígue, ao cair da tarde. O mar rasgado não tem fim.
É um dia de céu azul, de nuvens rendadas pelo céu, de brisas
doces e de gaivotas brancas. A praia, como uma toalha estendida
ao sol, é tão alva e tão alva, que a gente pensa ter sido com espuma
do mar que Deus formou a areia.
A maré vazou há tanto tempo que já deve ser hora de começar a encher.
Nem uma ubá(1> cabocla baloiça nas ondas. Nem uma buzina tamoia soa nos ares.
Nada. Tudo tranqüilo
como se a natureza estivesse aproveitando aquela tranqüilidade para dormir.
Somente lá em cima, no arvoredo, como que a embalar o sono da natureza
Na areia úmida Anchieta vai vagarosamente escrevendo com o bastão.
Ao pisar naquela terra viera-lhe à cabeça a idéia de compor um poema dedicado à Virgem Maria. E eram os primeiros versos desse poema que agora escrevia na areia.
Já fazia muitas semanas que ele estava ali em Ipe-roígue, no meio dos índios
selvagens. Viera de São Vicente acompanhando o padre Manuel da Nóbrega.
Tinham vindo pedir paz aos índios,. tinham vindo pedir aos chefes tamoios que
desistissem da guerra que eles de novo preparavam contra os portugueses.
Se havia no mundo guerra justa havia de ser aquela dos selvagens contra os
civilizados. Era a indignação do povo livre contra o povo que o queria
escravizar. Os portugueses todos os dias arrasavam aldeias para reduzir
os indígenas ao cativeiro. A explosão de revolta tinha que dar-se e deu-se
com o ataque de Piratininga.
Era em Piratininga que viviam os mais ferozes escra-vizadores dos filhos da selva.
E um dia, quando ninguém espera, a vila é atacada brutalmente.
Não é apenas uma aldeia ou uma tribo a atacá-la, é todo o povo
caboclo que sofre a destruição dos escraviza-dores: os tamoios, os guaianás,
os tupiniquins, os carijós.
— a cantiga das cigarras.
O choque é tremendo. Afinal, ajudada por Tibiriçá, a vila consegue vencer
os atacantes.
Mas a derrota, em vez de desanimar os indígenas, os irritou ainda mais.
Das matas de Piratininga às praias do Rio de Janeiro, ouviu-se a
voz da inúbia guerreira convidando todas as tribos caboclas para a vingança.
Aimberé, Grão-Palmeira, Cunhambebe, Coaquira, Pa-ranaguaçu,
enfim todos os grandes caciques das selvas, formaram os seus exércitos.
Muito, muito mais de cem mil homens já estavam preparados para atacar
os portugueses. Seria o arrasamento. Em S. Vicente, em Piratininga,
em toda parte onde houvesse sombra de europeu, não ficaria pedra sobre pedra.
Não seria apenas o arrasamento de uma, de duas, ou mais vilãs, seria a extinção
do domínio português no Brasil.
Era preciso pedir paz aos índios. Pedir, como, se deles ninguém podia
ao menos aproximar-se?!
Havia alguém que tivesse coragem de ir falar em paz a algum dos chefes?
Havia. Havia Nóbrega, o superior dos jesuítas. Iria a Iperoígue entender-se
com Grão-Palmeira e Coaquira, os dois caciques mais velhos e mais cordatos.
E foi a ele, Anchieta, que o superior dos jesuítas escolhera para o acompanhar
a Iperoígue.
Tinham sido tremendos os primeiros dias que os dois passaram entre os
selvagens. A vida de ambos andou por um triz nas mãos daquela gente.
Mas Nóbrega, com a sua bondade, estava pouco a pouco acalmando
os ódios. Havia duas semanas que andava nas aldeias distantes
convencendo os chefes indígenas de que deviam desistir da guerra.
Ele, Anchieta, ficara ali em Iperoígue, acalmando também a raiva dos caciques.
As horas eram-lhe amargas. Todos os dias os índios lhe faziam ameaças de morte.
Felizmente Deus lhe dava a inspiração do poema dedicado à Virgem Maria.
Felizmente, porque a febre daquela inspiração punha a sua alma inteiramente esquecida do mundo.
*
Naquela tarde tranqüila, de céu azul, de gaivotas brancas, Anchieta começava
a escrever o poema. Como não houvesse papel, escrevia na areia e guardava os versos
na memória,
■
As estrofes surgiam-lhe inteiras, cantantes, musicais, iluminadas.
Transfigurado, ele ia escrevendo, escrevendo. E5 à proporção
que escrevia, pouco a pouco, sem dar por isso, aproximava-se
cada vez mais do mar.
Versos, versos, dezenas, centenas de versos lhe brotavam na cabeça.
A tarde desmanchava-se em ouro. O mar dourava-se à luz da tarde.
Soprava agora um vento mais vivo. As vagas não eram mais o
veludo macio de horas antes; agora cresciam crespas, nervosas,
avolumadas. Sentia-se que era a maré que estava enchendo.
Em breve o alvíssimo lençol da praia desapareceria coberto pelas
águas verdes.
Mas o que então se passa é um acontecimento prodigioso, tão
prodigioso que, lá em cima, na ribanceira, onde se erguem as ocas tamoias,
os índios ficam boquiabertos.
E que é que se passa? Isto.
Umas atrás das outras, as ondas da maré que enche, vêm rolando e
correndo para a praia. Mas Anchieta está à beira d’água absorto,
escrevendo. E, ao vê-lo, as ondas param, como se não quisessem
perturbá-lo.
Outras vagas, em seguida, vêm chegando e, ao ver as companheiras
paradas, param também. O vento começa a soprar fortemente.
Ondas, ondas às dezenas, às centenas, aos milhares,
vêm correndo. E todas param ali, umas cavalgando as outras
fervendo, espumando, na inquietação de avançar e de espraiar-se.
E vai crescendo o volume líquido e vai-se formando a
montanha d’água. O mar inteiro ruge como enjaulado.
Lá em cima, na ribanceira, os índios, surpreendidos por
aquele acontecimento nunca visto, gritam alarmados para Anchieta:
— Sai, abaré("), sai!
Ele não ouve, A sua alma está fora da terra, no mundo
luminoso da inspiração.
Mais e mais ondas, sempre mais grossas, mais altas.
E a montanha d’água a crescer, a subir, a ferver, a espumar.
— Sai, abaré, sai!
"Uma pedra, atirada da ribanceira, cai-lhe junto aos pés.
Anchieta desperta. A muralha líquida que lhe ruge à frente,
mete-lhe medo.
Corre, afasta-se, sobe a ladeira da aldeia.
E quando ele chega lá em cima todo aquele colosso
de ondas desaba estrepitosamente. Num segundo,
a toalha infinita da praia fica coberta de água verde
e de espumas brancas.
A natureza de novo se tranqüiliza.
O sol derrama no poente uma chuva de ouro.
Todas as nuvens do céu estão douradas.
Estão douradas as próprias gaivotas brancas.
FONTE :
Nenhum comentário:
Postar um comentário