segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

LA VEM ESTORIA OU HISTORIA... Manhas e artimanhas do cacique Cunhambebe

Cunhambebe



Depois que eu decidi contar neste jornal o que é, como surgiu e o que deve ser feito com a “maldição de Cunhambebe” que inferniza Ubatuba há mais de três séculos, fui procurado por muitas pessoas interessadas em maiores detalhes sobre o veterano cacique. Pouco pude acrescentar ao que eu já havia dito, mas para espanto meu, aconteceu uma coisa extraordinária. 


O próprio Cunhambebe apareceu em minha casa anteontem durante a madrugada. Como moro na avenida do Cruzeiro, disse-me que é por ali que passa seus dias, organizando todos os movimentos para ver permanentemente cumprida sua conhecida maldição, e depois que eu a revelei resolveu se apresentar, quis me conhecer e se dar a conhecer. 
Realmente a história tem razão, é um tipo grandalhão, de fala mansa e gago. Me pareceu um sujeito alegre e gozador apesar do aspecto sombrio, dos olhos terríveis e duros e da enorme cicatriz que vai de um lado a outro do peito. Contou que observa quem chega, quem sai e o que fazem na cidade, aí então vai desfazendo as iniciativas, pondo pedras no caminho e trabalhando há séculos para irritar e prejudicar os descendentes, amigos e convidados daqueles portugueses que humilharam seu povo. 

Disse-me que anda meio cansado desse assunto mas, como foi ele que lançou a maldição, ficou eternamente comprometido com sua perfeita realização. Outros caciques o ajudaram nos primeiros duzentos e cinqüenta anos, porém acharam que já era demais e se foram. Ele, teimoso e determinado como sempre, se mantém ligado em tudo que acontece. Comentou que a cidade cresceu muito ultimamente, com muita gente que veio de fora sendo também vítimas de sua maldição, mas que era isso mesmo que ele queria. Quanto mais gente, mais problemas e pior os governantes, foi o que ele disse.

Conversa vai, conversa vem convidei-o a dar uma volta para que me mostrasse como agia para que as coisas não dessem certo por aqui. Levou-me para o alto do morro do Matarazzo que ele chamou de Curuçá-mirim dizendo que de lá, onde estava antigamente sua aldeia, podia avistar toda a baía e a cidade, acompanhando os passos das pessoas e o que faziam. Disse que ficava por lá porque se sentia bem naquele terreno velho conhecido, e que sua condição de cacique secular o permitia estar em todos os lugares e ver tudo ao mesmo tempo. 

Contou que a primeira coisa que fazia era retirar das pessoas sua capacidade de reclamar e de cooperar, introduzindo em seu lugar o sentimento de inveja e a prática da futrica. Só isso, disse ele, era suficiente para paralisar tudo porque as pessoas se destruíam sozinhas. Deu como exemplo o seguinte: qualquer um que começasse a se destacar em algum trabalho comunitário seria logo chamado de candidato a prefeito para que despertasse naqueles que pretendiam candidatar-se, a preocupação com o futuro concorrente. Aí então trabalhavam contra ele. O pessoal da administração pública, vereadores e chefes partidários passavam-lhe toda espécie de rasteira, negando-se ainda a atendê-lo em seus pedidos em favor do bairro para destruí-lo perante a população, só porque achavam que chegaram antes na fila dos candidatos a prefeito. Como a população já tinha sido privada da capacidade de reclamar e cooperar, viravam as costas para o sujeito, acreditando nas futricas que lançavam contra ele, negando-lhe qualquer apoio. Assim era mais um que se ia e tudo ficava na mesma. 

Outra artimanha do velho cacique, contada em meio a enormes gargalhadas, era a cegueira seletiva que aplicava nas pessoas. Produzia uma cegueira no cidadão que o impedia de ver só o que ele, cacique, não queria que a pessoa visse. Por exemplo, os policiais encarregados de manter a ordem para criar um clima favorável aos turistas que deveriam trazer dinheiro para a cidade, ficavam cegos em relação ao montão de mendigos que perseguem as pessoas atrás de uns trocados, ou cegos quanto aos motoristas de cidades do interior que ligam um som altíssimo nos seus automóveis toda noite nas principais ruas da cidade, embolando as calçadas e xingando as pessoas que estiverem a passeio ou em suas casas que, aborrecidos e ofendidos vão-se embora achando que a cidade não oferece segurança. Os policiais são bem intencionados, mas o cacique se diverte criando neles a cegueira seletiva porque isso reforça os efeitos da sua maldição sobre a cidade. 
Também se diverte muito com o golpe da cegueira aplicado na privatização do espaço público, isto é, o que é de todos fica sendo apenas de um, com a concordância e prejuízo de todos, e todos riem. Funciona assim : vêm uns caras e montam um quiosque no meio da calçada ou na beira da praia, de preferência em algum lugar bonito e tranqüilo. A seguir, enchem a sua volta de mesas e cadeiras, metem um som barulhento durante a noite toda até a madrugada. Ninguém vê o abuso, mas o pessoal da cidade, os moradores do lugar, todos se aborrecem. Sua paz vira um inferno mas todos toleram porque dizem que a zorra é para alegrar os turistas. E é aí que o cacique se diverte mais. Diz que conseguiu pôr na cabeça das pessoas que aquela zorra atrai turistas, e ninguém percebeu que é justamente o contrário, espanta os visitantes. 

Assim, os próprios chefes da cidade afugentam aqueles que tem dinheiro e gostariam de gasta-lo em Ubatuba, ficando por aqui, rebolando “quinem doidos nos quiosques”, como disse o velho morubixaba, apenas as pessoas que andam de Kombi 79, Opala 68 e Brasília qualquer ano. Esses não tem dinheiro nenhum mas como são muito numerosos, enganam as pessoas da cidade que, sem saber que estão afetadas pelo golpe da cegueira, dizem que o futuro vai ser bom porque a cidade está cheia. Cheios ficaram aqueles que viraram as costas para Ubatuba e foram gastar seu rico dinheirinho noutras cidades do litoral, menos bonitas mas mais organizadas e inteligentes, arrematou às gargalhadas o gigante Cunhambebe. 

Nesse momento, como o sol já estava querendo aparecer no horizonte do mar do Itaguá, lançando uns raios de fogo contra as nuvens ainda escuras da noite e fazendo as águas da baía parecerem uma enorme planície negra, o cacique, voltando-se para mim com um olhar sério e cansado, disse que estava na hora de caminhar sozinho por aquela superfície em direção ao astro rei. 

E foi-se. Ainda vi seu enorme vulto andando contra o vermelho da alvorada quando parou, virou a cabeça em direção à praia e gritou, “qualquer noite voltarei para contar mais uns truques que faço com alguns chefes desse vilarejo, para que aceitem umas galinhas e um pouco de peixe com farinha para mudar as leis e desorganizar tudo, e ainda assim continuando a ser respeitados e tratados como pessoas importantes”. Ouvi uma enorme gargalhada e o perdi de vista.”


TEXTO DE  :

Renato Nunes
25/03/2005

www.maranduba.com.br





Nenhum comentário: