Alzira e amigas, Ubatuba
Jean e Alzira começaram a namorar em fins de 1954 ou começo de 1955. Minha avó não gostou, mas não se opôs abertamente, achou que não duraria. Meu avô, para surpresa (e desgosto, com certeza) de minha mãe, aceitou abertamente o jovem suíço, sem fazer qualquer tipo de oposição. Com o relacionamento se tornando sério, ela percebia que nem tudo era perfeito com ele. Havia rigidez, havia tiques, havia um pão-durismo assustador, especialmente para alguém como ela, que vinha de família quatrocentona de origem rural, em que as mesas eram sempre fartas e as visitas sempre instadas a comer mais, mesmo quando não havia muito a oferecer.
É conhecida na família a história de meu tataravô Francisco Rodrigues Barbosa, o Coronel Chico Peroba, líder político do PRP em Itatiba nos primeiros anos da República, que mantinha a porta da frente de casa sempre aberta e a mesa sempre posta, para que cada um que passasse pudesse entrar para comer, prosear, pedir. Peroba, embora não fosse pobre, tinha mais presença física (de onde, aliás, vinha seu apelido) e prestígio do que dinheiro, não tendo sido jamais um dos maiores fazendeiros da região.
Aos poucos, consequência natural das coisas, o namoro de Jean e Alzira virou noivado. Sempre houve dúvida, contudo e, num desses momentos de questionamento, em meados de 1956, Jean decidiu passar uma temporada em Mato Grosso, empregando-se por um ano numa comissão de mapeamento e medição de um trecho de cerca de quinhentos quilômetros do rio Pardo, um afluente do Paraná, para um possível projeto de hidrovias comerciais. Enquanto Jean se afundava, literalmente quase morrendo na correnteza e no mato, Alzira teve um ano inteiro para se desvencilhar. Mas não o fez. Na volta dele, marcaram o casamento. Por alguma razão inexplicável ela, que não queria ir em frente, ia. Conforme a data fatídica se aproximava, e o casamento ganhava contornos de realidade, ela ia se desesperando. No mínimo, seriam muitas mudanças ao mesmo tempo. Recém formada, ela passaria a trabalhar de verdade, como advogada. Viveria em Ubatuba, que ela frequentava desde adolescente (pois Brenno havia primeiro alugado e depois construído uma casa de praia, e que sempre fora também um dos destinos preferidos para as expedições de acampamento com os amigos franceses do consulado). Mas uma coisa era passar férias e feriados, outra bem diferente era morar num lugar quase selvagem, cheio de cobras, sem vida social, distante pelo menos seis horas de São Paulo, muito longe dos confortos de um lar burguês paulistano. Deixaria de ser filha rebelde e mimada e seria esposa. Esposa, e aí as coisas ficavam bem mais complicadas, de um jovem suíço que era, para os mais otimistas, excêntrico. E para os pessimistas, era maluco mesmo.
Alguns dias antes do casamento, ela teve um arroubo de lucidez e coragem e finalmente decidiu cancelar tudo. Foi falar com Brenno, se abrir, dizer que errara, que precisava consertar as coisas enquanto havia tempo, que o casamento seria um grande, um enorme erro. Mas a reação dele foi a pior possível. Ficou bravo, disse que aquilo não era brincadeira, que era um passo fundamental da vida adulta que ela já havia iniciado, que desistir seria imaturo e irresponsável. E que, finalmente, se algo desse errado, ela sempre poderia contar com ele. O modo como Brenno reagiu foi completamente inesperado por ela, que esperava justamente o oposto. Anos mais tarde, ela julgou compreender o que se passara. Brenno decidira se separar de minha avó e oficializar a relação que tinha com uma amante, e estava apenas esperando pelo casamento para fazer isso. Um casamento adiado ou cancelado atrapalharia seus planos. Não sei se esse foi o motivo real para a reação dele, mas o fato é que, intimidada, minha mãe decidiu ir em frente. Na véspera, uma sensação de desespero e desamparo, e constantes ataques de choro. No dia do casamento, ela teve outro arroubo de desistência: planejou cair da escada de casa, quebrar o pé e cancelar tudo. De novo, desistiu de desistir e foi em frente.
Foi, pelo que contam, um belo casamento. O ano era 1957, a igreja de São José, no Jardim Europa, signo dos bons casamentos das boas famílias. A família do noivo, de suíços recém chegados ao Brasil, não colocou ali mais do que umas vinte pessoas e devia estar se sentindo completamente perdida. Mas a família e os amigos das famílas de Brenno e Cleonice eram suficientes para lotar a festa. Brenno estava no auge de seu prestígio. Numa época em que o universo judiciário ainda gozava de enorme respeitabilidade no país dos bacharéis, ele acabara de se aposentar do Tribunal de Alçada de São Paulo como o mais jovem desembargador e presidente que a casa já tivera, e suas decisões eram referência e jurisprudência. Abrira junto ao fórum da João Mendes uma banca de advocacia, seu antigo sonho, e já tinha filas de clientes à porta.
Aos poucos, consequência natural das coisas, o namoro de Jean e Alzira virou noivado. Sempre houve dúvida, contudo e, num desses momentos de questionamento, em meados de 1956, Jean decidiu passar uma temporada em Mato Grosso, empregando-se por um ano numa comissão de mapeamento e medição de um trecho de cerca de quinhentos quilômetros do rio Pardo, um afluente do Paraná, para um possível projeto de hidrovias comerciais. Enquanto Jean se afundava, literalmente quase morrendo na correnteza e no mato, Alzira teve um ano inteiro para se desvencilhar. Mas não o fez. Na volta dele, marcaram o casamento. Por alguma razão inexplicável ela, que não queria ir em frente, ia. Conforme a data fatídica se aproximava, e o casamento ganhava contornos de realidade, ela ia se desesperando. No mínimo, seriam muitas mudanças ao mesmo tempo. Recém formada, ela passaria a trabalhar de verdade, como advogada. Viveria em Ubatuba, que ela frequentava desde adolescente (pois Brenno havia primeiro alugado e depois construído uma casa de praia, e que sempre fora também um dos destinos preferidos para as expedições de acampamento com os amigos franceses do consulado). Mas uma coisa era passar férias e feriados, outra bem diferente era morar num lugar quase selvagem, cheio de cobras, sem vida social, distante pelo menos seis horas de São Paulo, muito longe dos confortos de um lar burguês paulistano. Deixaria de ser filha rebelde e mimada e seria esposa. Esposa, e aí as coisas ficavam bem mais complicadas, de um jovem suíço que era, para os mais otimistas, excêntrico. E para os pessimistas, era maluco mesmo.
Alguns dias antes do casamento, ela teve um arroubo de lucidez e coragem e finalmente decidiu cancelar tudo. Foi falar com Brenno, se abrir, dizer que errara, que precisava consertar as coisas enquanto havia tempo, que o casamento seria um grande, um enorme erro. Mas a reação dele foi a pior possível. Ficou bravo, disse que aquilo não era brincadeira, que era um passo fundamental da vida adulta que ela já havia iniciado, que desistir seria imaturo e irresponsável. E que, finalmente, se algo desse errado, ela sempre poderia contar com ele. O modo como Brenno reagiu foi completamente inesperado por ela, que esperava justamente o oposto. Anos mais tarde, ela julgou compreender o que se passara. Brenno decidira se separar de minha avó e oficializar a relação que tinha com uma amante, e estava apenas esperando pelo casamento para fazer isso. Um casamento adiado ou cancelado atrapalharia seus planos. Não sei se esse foi o motivo real para a reação dele, mas o fato é que, intimidada, minha mãe decidiu ir em frente. Na véspera, uma sensação de desespero e desamparo, e constantes ataques de choro. No dia do casamento, ela teve outro arroubo de desistência: planejou cair da escada de casa, quebrar o pé e cancelar tudo. De novo, desistiu de desistir e foi em frente.
Foi, pelo que contam, um belo casamento. O ano era 1957, a igreja de São José, no Jardim Europa, signo dos bons casamentos das boas famílias. A família do noivo, de suíços recém chegados ao Brasil, não colocou ali mais do que umas vinte pessoas e devia estar se sentindo completamente perdida. Mas a família e os amigos das famílas de Brenno e Cleonice eram suficientes para lotar a festa. Brenno estava no auge de seu prestígio. Numa época em que o universo judiciário ainda gozava de enorme respeitabilidade no país dos bacharéis, ele acabara de se aposentar do Tribunal de Alçada de São Paulo como o mais jovem desembargador e presidente que a casa já tivera, e suas decisões eram referência e jurisprudência. Abrira junto ao fórum da João Mendes uma banca de advocacia, seu antigo sonho, e já tinha filas de clientes à porta.
Praia do Itaguá, óleo de Jacques Aubert, meu avô, 1962
E sim, apesar dos pesares, Ubatuba era um paraíso e, nos primeiros anos, uma festa. Paraíso porque este pedaço de litoral recortado com dezenas de praias dos mais variados formatos, onde a mata vai até a beira de uma mar com infinitos tons de cor, do azul ao cinza, do verde ao lilás, estava inacreditavelmente preservado, por que o acesso por terra era exclusivamente via Taubaté, por uma estrada muito precária, e a imbecilidade desematatória e condominial ainda não tomara conta de tudo. A ocupação turística estava praticamente restrita ao centro urbano, com um ligeiro boom de construções na vizinha praia do Perequê-Açú e na extremidade direita do Centro, depois do Campo de Aviação, hoje rua Guarani; área onde, alguns anos antes, Brenno construíra, de frente para o mar da baía do Itaguá, sua casa de praia. O resto eram praias desertas, ou quase, ocupadas quase que exclusivamente por uns poucos caiçaras, com acesso apenas por mar ou por picadas em meio à mata. Praias hoje lotadas, como Tenório, Praia Grande, Lázaro, Enseada, Itamambuca, Dura, Tabatinga, pareciam, aos que lá chegavam, com o que os portugueses haviam visto quatro séculos
Ubatuba era uma festa porque, antecipando o que gerações posteriores fariam em lugares como Saquarema, Trancoso, Visconde de Mauá, São Tomé das Letras e Gonçalves, Jean e Alzira lotavam a casa, em feriados e fins de semana, de amigos paulistanos loucos por um programa alternativo. Tinha gente dormindo em redes, em sleeping bags, amontoados pelos cantos. Era fim dos anos cinquenta e ainda não circulava a maconha, mas havia caipirinha de limão ou pinga pura mesmo, havia violão e gaita de boca, havia discos de Mozart, jazz, bossa nova, Dorival Caimmy. Por lá passavam pessoas como o futuro dramaturgo Naum Alves de Souza, o cineasta iniciante Luis Sérgio Person, o jornalista e folclorista Luis Ernesto Kawall, a futura jurista Ada Pellegrini, a ex-freira e futura artista plástica Sara de Britto. Iam para lá a irmã bem jovem de minha mãe, tia Stelinha, os também mais jovens meio-irmãos de meu pai, Marc, Nina e Heléne; os primos do interior, Paulo Roberto, Alexandre, Maria do Carmo, Luis Fernando, Luis Horácio. Primos da capital, como Tritão. Os amigos europeus. As amigas brasileiras do tempo da escola. Minha avó ia sempre, e gastava tudo o que podia para abastecer o lar selvagem da filha.
A casa era inicialmente apenas um quarto, um banheiro e uma sala que servia, se fosse o caso, como garagem para carros, na extremidade oeste de um grande terreno de dois mil e quinhentos metros quadrados que ela havia comprado, barato como tudo em Ubatuba, do Janguinho, um caiçara que viveu os últimos anos de vida da venda, pedaço por pedaço, das amplas áreas, entre o Itaguá e o Tenório, que haviam sido de sua família. O terreno, que originalmente não tinha muitas árvores, foi sendo preenchido com alguns abacateiros, laranjeiras, mexeriqueiras, jambeiros, palmeiras, uma lixia e outras árvores das quais não lembro o nome, e acabou comportando até um pequeno galinheiro. Uma das brincadeiras da minha infância era pegar o ovo quase chocado, descascá-lo e fazer o pintinho nascer na mão. Tive mais tarde uma galinha de estimação nascida assim, chamada Titinha, que mataram e comeram, escondidas de mim (Iosa e Rosely), quando eu estava em São Paulo, dizendo que ela tinha fugido. A verdade sobre este crime só foi confessada a mim muitos anos depois. No futuro, a parte original da casa passaria a ser chamada simplesmente de “Garagem”, mesmo que ali, depois dos primeiros anos, jamais um carro tenha sido guardado. Logo foi construído um cômodo único, batizado como “rancho”, no meio do terreno, com paredes de bambu, caibros de troncos de palmeira, telhas coloniais arrumadas em alguma demolição. O rancho imediatamente passou a ser o ponto central dos encontros, e das conversas filosóficas, teológicas, políticas, musicais, praianas. E para aumentar ainda mais o exotismo do lugar, minha mãe ainda arrumou, meio sem querer, uma jaguatirica, a qual, passado o stress herdado da situação de maus tratos em que vivera antes, confinada numa gaiola no Sertão da Quina, passara a conviver (quase) pacificamente com as pessoas por ali.
A casa era inicialmente apenas um quarto, um banheiro e uma sala que servia, se fosse o caso, como garagem para carros, na extremidade oeste de um grande terreno de dois mil e quinhentos metros quadrados que ela havia comprado, barato como tudo em Ubatuba, do Janguinho, um caiçara que viveu os últimos anos de vida da venda, pedaço por pedaço, das amplas áreas, entre o Itaguá e o Tenório, que haviam sido de sua família. O terreno, que originalmente não tinha muitas árvores, foi sendo preenchido com alguns abacateiros, laranjeiras, mexeriqueiras, jambeiros, palmeiras, uma lixia e outras árvores das quais não lembro o nome, e acabou comportando até um pequeno galinheiro. Uma das brincadeiras da minha infância era pegar o ovo quase chocado, descascá-lo e fazer o pintinho nascer na mão. Tive mais tarde uma galinha de estimação nascida assim, chamada Titinha, que mataram e comeram, escondidas de mim (Iosa e Rosely), quando eu estava em São Paulo, dizendo que ela tinha fugido. A verdade sobre este crime só foi confessada a mim muitos anos depois. No futuro, a parte original da casa passaria a ser chamada simplesmente de “Garagem”, mesmo que ali, depois dos primeiros anos, jamais um carro tenha sido guardado. Logo foi construído um cômodo único, batizado como “rancho”, no meio do terreno, com paredes de bambu, caibros de troncos de palmeira, telhas coloniais arrumadas em alguma demolição. O rancho imediatamente passou a ser o ponto central dos encontros, e das conversas filosóficas, teológicas, políticas, musicais, praianas. E para aumentar ainda mais o exotismo do lugar, minha mãe ainda arrumou, meio sem querer, uma jaguatirica, a qual, passado o stress herdado da situação de maus tratos em que vivera antes, confinada numa gaiola no Sertão da Quina, passara a conviver (quase) pacificamente com as pessoas por ali.
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