Lá por 1960 ir de São Paulo para Ubatuba levava umas 12 horas. A partir de Paraibuna, a estrada era de terra, inclusive a descida da serra. Em compensação, as praias eram lindas, limpas e muitas delas completamente desertas. Eu devia ter uns treze ou quatorze anos e tinha descido com a família. Na época já mexia no piano, tocava uns standards americanos que aprendia com o primeiro professor de música popular que aparecera em São Paulo, o húngaro Paul Urbach. As músicas americanas eram uma grande descoberta, um som muito diferente do que predominava no rádio e na incipiente televisão da época: Wilma Bentivegna, Cauby Peixoto e a eterna "Conceição", meu primeiro ( e ainda ) ídolo Luiz Gonzaga, o Rei do Baião.
Mas estava eu lá em Ubatuba, e um dia uma garôta amiga da família pegou um violão e, ao invés do inevitável "peixe quer mar, ave voar", começou a tocar umas novidades que me deixaram completamente extasiado. Eram duas músicas: Meditação e Chega de Saudade. A pobrezinha teve que passar horas ensinando acordes para um pentelhinho que nunca tinha tocado violão na vida. Ainda lembro como doíam os dedos por causas das "pestanas" no violão.
De volta para casa, fui correndo tentar passar para o piano aqueles acordes, ver que notas eram. E depois, enfrentar o grande problema de como repetir no piano aquele balanço que era tão fácil no violão. Não dava pra fazer tudo com a mão esquerda, e ao mesmo tempo tocar a melodia na direita. Até hoje continuo tentando.
Poucos dias depois da volta, acidentalmente liguei a TV no canal 5, TV Paulista ( os tempos eram melhores, a Globo ainda não existia ), e dei de cara com um sujeito meio sem graça, meio tímido, tocando piano lindamente mas cantando meio mal. Só que a música era Meditação, aquela maravilha. Conforme o programa ia andando, fui percebendo que o sujeito era o Tom, e que aquilo era um programa semanal que só ia ter bossa-nova. Era inacreditável !
É claro que o programa não foi nenhum sucesso de audiência, e ficou pouco tempo no ar, mas teve pelo menos um telespectador fiel. Ouvi pela primeira vez o Desafinado, que logo depois começou a tocar um pouco no rádio. Lembro claramente da participação do João Gilberto, elevando à estratosfera o violãozinho de Ubatuba. Lembro também de uma cantora maravilhosa, acho que era a Silvinha Telles.
Naquela época era impensável ter em casa mais do que um aparelho de TV, e tive que enfrentar algumas barras para continuar vendo o programa. O pessoal de casa metia o pau naqueles cantorzinhos michos. Bom mesmo era o Nelson Gonçalves, a Angela Maria - aquilo é que era voz.
Mas o tempo foi passando, e tive a felicidade de ser adolescente no Brasil do Juscelino e da bossa-nova. Garota de Ipanema, em versão instrumental com o Zimbo Trio, era primeiro lugar de parada de sucessos. Tinha show todo dia, sempre lotado, e fantásticas reuniões de música - e o sucesso da reunião só era absoluto quando alguém apresentava uma composição inédita do Tom. Participei de um monte de shows em colégios, junto com outros estudantes que se iniciavam na música: Chico Buarque, Toquinho, Taiguara, a Tuca que nos deixou tão cedo, e o perpetrador desta internetização, Luiz Roberto. O parâmetro absoluto: Tom Jobim.
Assim como me lembro claramente daquela tarde em Ubatuba, lembro também de uma noite muitos anos depois, acho que em 1975, numa casa alugada na represa de Guarapiranga, ouvindo pela primeira vez o disco Ellis e Tom. Ouvi o disco várias vezes, chorando sem parar, dominado por uma mistura de saudade com revolta pela porcarização da música e da cultura do Brasil.
Senti a mesma coisa com a notícia da morte tão inesperada do Tom. Foi como uma bofetada na cara, para fazer a gente cair na real, para que a gente se dê conta de que o negócio agora é cada um tratar de se dar bem, afinal a globalização está aí, e as praias de Ubatuba estão imundas e loteadas, sem previsão a curto prazo de que alguém volte a se emocionar ouvindo Chega de Saudade.
TEXTO DE : Nelson Ayres é pianista, arranjador e regente titular da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de S. Paulo.
FONTE : http://www.jobim.com.br/colab/ayres/ayres.html
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