quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A PAZ DE IPEROIG - A história do 1 º Tratado de Paz das Américas realizado em Ubatuba


O TEXTO QUE VOCÊ IRÁ LER AS EGUIR FOI EXTRAIDO NA INTEGRA DO LIVRO " UBATUBA, ESPAÇO, MEMÓRIA E CULTURA ", EDITADO EM 2005, ESCRITO POR JORGE OTAVIO FONSECA E  JUAN DROUGUETT
Trata-se de um documentário sobre a história da cidade de Ubatuba -SP, desde sua pré história até 2005, o livro retrata de forma fiel a história de ubatuba e neste caso a PAZ DE IPEROIG, também conhecida como CONFEDERAÇÃO DOS TAMOIO...

A PAZ DE IPEROIG – Logo no início deste capítulo, fizemos referência à intervenção jesuíta no processo de colonização portuguesa. Os padres haviam chegado de barco a Iperoig, em companhia de José Adorno. Na chegada foram rodeados “de canoas” e deram de cara com Coaquira e Pindabuçu. Encabeçando a expedição, ergue-se Anchieta que foi, em seguida, reconhecido junto com Nóbrega pelos chefes índios. A imagem destes dois jesuítas inspirava para eles respeito e consideração. Nessa ocasião, as palavras de Anchieta foram revestidas em um discurso afável, dizendo que ambos sacerdotes não partilhavam dos mesmos sentimentos dos portugueses que matavam e escravizavam os índios, os lembrou daquilo que ele já tinha feito em favor das aldeias: educar crianças, tratar doentes, consolar velhos e defender os fracos contra os opressores (Torres, 2000:65).



Coaquira hospedou os embaixadores da paz, oferecendo hospitalidade na Aldeia de Iperoig que seria o sitio de tais negociações e assim foram convocados os cinco chefes da Confederação: Cunhambebe, Aimberé, Pindabuçu, Coaquira e Araraí. Destes cinco chefes Tupinambá, Aimberé era considerado por Anchieta o mais cruel de todos, o sucessor de Cunhambebe que havia morrido por causa das epidemias trazidas pelos europeus e que dizimaram grande parte dos índios. No lugar do líder, outro Cunhambebe, provavelmente filho deste grande guerreiro que anteriormente liderou a Confederação.

Aimberé tinha razões de sobra para não confiar nos portugueses, pois estes o tinham aprisionado na fazenda de Brás Cuba junto com seu pai, também a sua mulher Iguaçu na toma do Forte Coligny foi feita escrava. Tudo isto se agravava uma vez que Anchieta traiu um segredo de confissão ao revelar o plano de ataque dos Tamoio a Piratininga, plano confesso por Tibiriçá, o cacique aliado dos portugueses, sogro de João Ramalho, grande proprietário de terras e pioneiro no tráfego de escravos no Brasil.

João Ramalho era um homem lendário, possivelmente náufrago e degradado; audacioso, aventureiro que controlava o litoral e o planalto paulista, situando-se acima dos poderes temporais estabelecidos pela Coroa. Possuía um harém de mulheres, entre as quais estava Bartira, sua predileta, filha de Tibiriçá. Tinha muitos filhos, considerados “mamelucos”. Para os jesuítas esta situação irregular de João Ramalho resultava motivo de ex-comunhão, até ele consentir posteriormente o casamento oficial. João Ramalho inaugurou um novo sistema de escambo com os europeus, no qual a madeira tão prezada, o pau – Brasil foi substituído pelo escravo – indígena. Ramalho escravizou guaianases, carijós e tupiniquim. Por esta razão, transformou-se desde seus inícios em alvo da Confederação.

Os relatos de cronistas contam que certo dia, Tibiriçá recebeu a visita de um emissário dos Tamoio, seu sobrinho Jogoanharo, filho de Araraí seu irmão, que trazia noticias de Aimberé, desejoso de contar com ele na luta da Confederação. Aimberé queria de volta Tibiriçá a seu antigo povo, e assim superar o conflito entre Tupinambá e Tupiniquim. Tibiriçá sentiu-se honrado com o convite, no entanto, questionava sobre o tempo do ataque que seria no prazo de três luas, pedindo um adiamento a seu sobrinho. Este último fala da impossibilidade da postergação, até porque ele era apenas um emissário da notícia, mas volta confiado na adesão para dar a boa nova ao povo Tamoio.

Anchieta percebe que logo após este acontecimento, Tibiriçá não estava em paz consigo, angustiado, o velho cacique Tupiniquim, procura o jesuíta que o induz à confissão. O plano dos Tamoio foi um segredo de confessionário violado por José de Anchieta, em uma tentativa de salvar o exercício de seu apostolado, politicamente engajado. Assim, Anchieta orienta o líder Tupiniquim a voltar a sua posição original em favor dos interesses religiosos e políticos da Coroa, que ele representava, e conta para João Ramalho quando o ataque aconteceria, a idéia era preparar os portugueses para o ataque. Dessa batalha, os Tamoio saíram vitoriosos, mas com muito ódio de Tibiriçá que terminou matando seu próprio sobrinho Jogoanharo.

Por estas e outras razões, Aimberé não confiava nos padres intercessores da paz, que deveria ser selada na aldeia de Iperoig. Anchieta sabia que o líder da Confederação estava à par do seu jogo e temia a fúria daqueles chefes índios que os haviam deixado em cativeiro.

A primeira assembléia da Confederação foi tumultuada, as queixas contra os portugueses eram: atrocidades, traições, incêndios, intrigas e capturas de índios tratados a ferro de escravos. A voz de Aimberé fez se ouvir em toda a aldeia de Iperoig: “A libertação de todos os Tamoio escravizados e a entrega dos caciques que se haviam unido com os inimigos”. Os jesuítas não aceitaram a proposta e Aimberé os ameaçou com o seu “tacape”. Segurado pelo braço, o grande chefe Aimberé, tumultuou a sessão que encerrou sem nenhum acordo de paz. Nóbrega propõem uma nova assembléia, mas os índios encontravam-se divididos: uns queriam a paz, outros a continuidade da guerra que começaria com a morte dos padres.

Enquanto esperava pelo desfecho de sua missão, Anchieta escreveu nas areias da praia de Iperoig, o célebre poema à Virgem Maria, segundo conta a lenda1. Sentimentos e superstições, costumes e perfis indígenas são descritos em figuras e episódios nas Cartas de Iperuig, sob a forma de poema laudatório da Virgem - De Beata Virgine Dei Mater Maria, composição de 5.902 versos ou 2.950 e um dístico. A respeito da natureza desse poema, se foram efetivamente escritos na areia da praia, nos parece algo de menor importância, o relevante sim é a caracterização das circunstancia em que este foi concebido. O ritmo bárbaro da atmosfera do poema é um elemento de luta da inteligência e da fé sobre o instinto, transparecendo muitas vezes a angústia do conflito que motivava a narrativa do evangelizador.

O isolamento de Anchieta em Iperoig fez com que este prometesse à Virgem Maria, compor o poema de sua vida, com o fim de vencer as tentações da carne. Papel, tinta e pena, foram ministradas por José Adorno. Mas, nos momentos do cativeiro, o ambiente era tenso e inóspito para o religioso atormentado com os fantasmas da guerra2.

Celso Vieira descreve que Anchieta sem buril concebeu no ermo, idealizando em versos latinos e elegíacos esse poema à Virgem para sobreviver ao instante genésico e fugaz do cativeiro, o apóstolo só contava, portanto, com a sua memória afetiva comprometida com os exercícios espirituais de sua Ordem. A lenda diz que não tinha mais do que a areia molhada pelas ondas, batidas pelo vento para escrever. Preferimos pensar que se trata de uma composição realizada com o tempo, nesse clima de cativeiro e que talvez as praias de Iperoig tivessem servido de esboço para esses rascunhos idealizados no retiro espiritual em que Anchieta se encontrava.

Junto do mar, um dia – conta Vieira -, ele traçou na fimbra espumante e arenosa o verso inicial do poema: “Eloquar? Na silean, sanctissima Mater Jesu?” Falar ou emudecer? Anchieta oscilava entre a ação ritual e a mística da fé que inspirava seu canto.

Tu mihi cum chara sis única Prole voluptas,
Tu desiderium cordis, amorque mei.

Desta forma, o jesuíta desdobra os motivos do primeiro canto que passaremos analisar, de acordo com o contexto no qual Anchieta está inserido: um cativeiro onde as lutas entre corpo e espírito, configuram a saga do desejo.

O primeiro canto leva o nome: De conceptione Virginis Mariae. A concepção de Maria antecede a modelagem da criação. É interessante mencionar aqui que o espírito mariano da maioria dos espanhóis encontra na figura feminina de Maria uma tabua de salvação3. Enaltecida pelo espírito cristão da Idade Média, nas famosas Cantigas a Nossa Senhora de Gonzalo de Berceo, Anchieta tenta reconstruir o espaço na sua frente, confiando no caráter medianeiro de Maria que do outro lado do mar tinha sido enaltecida pelos peregrinos que sabiam do sofrimento e da solidão da experiência mística. “Não espanadavam ainda os mares nem desciam as águas fluviais pelas vertentes”, sobre o chão replica o religioso “não havia o borboletear das fontes nem a grandeza das moles altíssimas” e já fora concebida a inteligência eterna – o Verbo, predestinado seu ventre a redimir o pecado original.

Perfeita e dileta, como um antídoto ao veneno da serpente, prometida nas manchas edémicas, turvadas pelo crime de Eva. Com o dragão sob os pés, dulcis amica Dei, ela paria acima dos coros angelicais. O fruto bendito é anunciado pela boca dos profetas nos céus. Anchieta fecha esse primeiro canto anunciando Maria, a mulher mais forte que o homem.

Maria nasce no segundo canto após a noite milenar. Um novo sol se levanta, raiando a estrela virgem. O fulgor nominal da senhora ressoa neste poema anchietano em forma de ladainha, seguindo a ordem alfabética das composições abecedárias do Sedulius no qual faremos algumas adaptações para seu melhor entendimento:

Arbor, sublime árvore cujas raízes bebem humildemente do solo, os galhos frutificando em estrelas. Baculus, frágil bordão nos quais se amparam os homens incertos e aflitos. Collis, alta colina que verte o doce perfume nas trevas. Doctus, maravilhosa correnteza de águas provenientes da fonte divina. Effigies, verdadeiro espelho onde o próprio Deus se reflete. Fulmen, a fulgurância do raio na tormenta que aniquila os crimes tártaros. Gemma, metal precioso no qual se desvanece a pompa metálica do ouro e do bronze. Hydria, urna estelar das Hyades cristãs, vaso de leite e óleo, aroma e graça. Jaculum, o antigo jáculo ou venábulo, ferindo suavemente os corações para sarar profundas chagas4. Luna, sagrado e imutável plenilúnio dando ao ocaso dos seus contempladores a impressão de alegria solar. Maré, mar profundo, amplidão sem areia de gigantescas e infinitas da vida, refugio dos bons e dos maus. Navis, a nave que socorre os náufragos arrojados e levados à praias remotas. Ober, óbice colocado no santuário com o fim de evitar a devastação dos touros indômitos, no limiar do templo às heresias e demônios, Portus, sereno ao qual vier se achegar o poeta, navegador exausto, sacudido pela fúria do vento e guiado pela mão da Virgem – reminiscência católica dos temporais brasileiros. Quadriga Dei, impetuosa quadriga de Deus, arrebatada pela justiça em tropel ressoante, a esmagar os inimigos da fé. Rosa, imarcescível no estio e no inverno, rosa a nascer de espinhos, mas não deles ornada. Speculum, Signum, Sydus, Stimulus, Salus... Tegem, primeiro tecido cobrindo o pudor de Adão, o rubor de Eva, a nudez lamentável do corpo ou da alma. Virga, açoite das macerações eclesiásticas, vara desnuda e flexível com que se retalham e sob a qual se retorcem os penitentes.

Este atormentado canto de Anchieta fala da fé em Maria, na qual encontra o sentido para sua angustia, a entrega incondicional de sua alma ao poder mediador da imagem divinizada na sua prece. Vieira comenta a favor do jesuíta que vencendo o terror da morte e as tentações da carne compunha, esvoaçava-lhe aos ombros, nesse instante, uma ave multicolor. Dístico após dístico, até a gloriosa assunção da Virgem, Anchieta metrifica o poema no meio dos bárbaros Tamoio.
1 A produção literária de José de Anchieta é copiosa e constante no Brasil, observa-se nela o espírito e a sensibilidade do evangelizador, precursor da tradição escrita da época colonial. O testemunho de Anchieta sobre seu contato com os Tupinambá – Tamoio vá desde descrições de festas na aldeia às pregações onde ele foi o principal orador. O material bibliográfico é disperso e as fontes podem ser encontradas nos Arquivos da Companhia de Jesus. A variedade epistolar, de modo geral, e o Poema à Virgem Maria, em particular, podem ser encontradas nas Obras Completas de Anchieta (1990), que compreende textos, além de trabalhos didáticos: cartas, cantos, mistérios, sermões, poemas religiosos, heróicos e biografias escritas sobre a natureza ou a formação do Brasil colonial.

2 As tentações da carne adquirem neste episódio, uma conotação que vai além do sexual, isto é, referem-se aos aspectos humanos do religioso, também relacionados com a ira e o desejo de aniquilação do outro por meio de uma ação transgressiva incompatível com o exercício de sua causa, nesse momento mediadora. Mas, essa sempre foi uma das fases de um “retiro espiritual”, vencer as tentações que a imediatez do corpo apresentava.
3 Vale aqui lembrar que José de Anchieta é originário das Ilhas Canárias na Espanha –“canarinho”.
4 Benábulo é uma adaptação de bem-aventurado e jáculo de lançar, arremessar.


Os diálogos do anjo e da Virgem, o misterioso noivado espiritual, o advento do fruto inigualável, a oferenda simbólica dos magos, a purificação, a fuga para Egito, o regresso da Sagrada Família para Israel, Jesus no templo, a dor suprema do calvário, o gozo da ressurreição, o transporte de Maria à bem-aventurança constituem a ação poética em uma reedição da lenda cristã.

No meio desses cânticos aparecem os anátemas a Calvino, deflagrações do ódio religioso contra aqueles que negam a virgindade excelsa de Maria. O austero Calvino, teólogo e humanista, cuja sobriedade foi tão rígida quanto sua doutrina, é crivado pela poesia de Anchieta neste Poema, trata-o de ébrio, um satírico calvo e tonto que saísse dos banhos das ninfas para a Escola de Genebra. Na cólera, José de Anchieta explode de intolerância com seu inimigo execrando-o ao exílio, á tortura, à morte pelo fogo. A época da conquista é a era dos rancores da Inquisição e dos autos de fé entre os católicos europeus, principalmente dos espanhóis que vêem na Península um cenário de uma guerra religiosa de intolerância.

Os conflitos, entre católicos e calvinistas, são esclarecidos nos versos sobre a intemperança e a concupiscência de Calvino que aparecem no Poema à Virgem Maria composto pelo jesuíta José de Anchieta:

Calvino: trocaste a Glória de Cristo pela insânia de Baceho e é esse o nome de tua linguagem, o teu amor. Calvino: mudaste a pureza de Maria na impudicícia de Vênus, e é por essa que vives, e nessa é que tens a tua mestra, a tua lei, a tua deusa. São esses os ídolos próprios do nome e da mente de tal criatura...” Porque o nome te revela os costumes: para tal vida, tais obras. Calvino: tens o nome do cal e do vinho, o duplo nome da vida que levas (Vieira, 1929:130).

A cólera de Anchieta passa e retoma a laudatória a Maria, alfabeticamente ordenando: Laudes, Virginis ordine alphabetico, emanando dos colóquios e das súplicas. Enfim, transparecem no epílogo minúcias, delicadezas e arte: em primeiro lugar, a dedicatória ao poema – Dedicatio operis; depois, as imaculadas forças marianas; por último, a breve Recomendatio de Anchieta à Virgem Maria que lhe convertera os pensamentos voluptuosos em ritmos sacros:

Hás preces fundo tibi, Virgo Mater.
Quae cares naevo speciosa tota,
Ut mihi intacto tribuas pudicam
Corporae mentem
Amem. (Vieira, op. cit: 132).

Este longo poema é posteriormente depurado e reescrito por José de Anchieta com apuro beneditino, desde o ofertório à dedicatória, no colégio de São Vicente. Este ato dá ao jesuíta – segundo Vieira – a vulnerabilidade aos golpes da contradição no processo da conquista. A poesia de José de Anchieta imersa na devoção católica corre o risco de ser lida como um todo homogêneo, afirma Alfredo Bosi, no livro Dialética da Colonização (1995), tal afirmação nos parece crucial para entender a transposição para o Novo Mundo de padrões de comportamento e de linguagem que trouxeram como conseqüência a atitude representada na poesia de Anchieta que repete o modelo europeu clássico do latim no seu poema à Virgem Maria, sendo refém dos Tamoio nas praias de Iperoig, o missionário sente a necessidade de purificação. Esse mesmo evangelizador aprendeu o tupi para fazer rezar nessa língua seus “conquistados”. A antiga forma literária do catolicismo medieval revigorada na renascença é moldada à situação colonial. Anchieta precisou mudar um código em função de seus destinatários, a nova freguesia demandava uma linguagem própria, entretanto, nisso concordamos com Bosi, Anchieta inventa um imaginário sincrético, uma mistura do discurso católico e a língua tupi, forjando figuras míticas como Karaibebé, profetas que voam, nos quais os nativos identificavam os profetas da Terra sem mal, ou Tupansy, mãe de Tupã, para falar de um atributo de Nossa Senhora. Há neste exercício uma fusão da cultura – reflexa e a cultura – criação que aparece muito clara no poema anteriormente descrito (Bosi, 1995:131).

Portanto, é necessário conhecer em profundidade, o dinamismo peculiar à missão jesuítica no Brasil com todas as suas exigências de fidelidade aos valores gerados na Península durante a Contra – Reforma. A cruz e a espada se unificaram para a disputa do bem comum: o corpo e a alma indígena. A narrativa de José de Anchieta evidencia às vezes o contraste agudo entre a colonização como pré – ação e o apostolado que, no início para ele constituía uma necessidade. Tratava-se de dois projetos diferentes, cujas conciliações foram sempre temporárias e diplomáticas como é o caso da Paz de Iperoig, mas o dinamismo interno levou a um confronto aberto de interesses, onde o único perdedor foi o índio.






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