terça-feira, 17 de agosto de 2010

FALA CAIÇARA......OS BONS SELVAGENS.....Por André Caramuru Aubert




Ubatuba, fim da decada de 50

Naqueles dias a doutora Alzira Helena, advogada e com um idealismo ainda um pouco adolescente, defendia os caiçaras contra a incipiente, mas inexorável, ocupação das praias por paulistanos ambiciosos e com visão de futuro. O pagamento vinha, em geral, em peixe, banana, farinha de mandioca. E as causas em geral eram postas a perder pelos próprios clientes, saídos de uma sociedade pré-monetária e fascinados por qualquer coisa que o dinheiro pudesse comprar. Assim, posses valiosas de praias como Itamambuca, Toninhas, Tenório, Dura, Fortaleza, eram trocadas por bicicletas, rádios de pilha ou, no melhor dos mundos, por uma casinha no centro. 



Mas para defender os nativos havia o otimismo irredutível dos jovens que acreditavam que a educação mudaria o mundo, que a verdade traria a justiça. O convívio cotidiano com os caiçaras abriu uma perspectiva completamente nova para minha mãe. Ela, romanticamente e sem quaisquer filtros, incorporou a ideia do bom selvagem, de Rousseau, e caiçaras virou sinônimo de “bom”, e paulistano e outros forasteiros, de “mau”. Os caiçaras ganharam, para ela, o status de sociedade vivendo em harmonia com a natureza, sem grandes desejos materiais, capazes de sobreviver em equilibrio ecológico, sem devastar, e com uma organização social essencialmente democrática e horizontalizada. A realidade, porém, teimava em se sobrepor à ideologia. A cultura caiçara não resistia ao dinheiro novo; era machista e patriarcal; vivia sob constante escassez alimentar, mesmo diante da abundância de peixes e com uma terra razoavelmente fértil, capaz de produzir mandioca, banana, milho, feijão; com amplas áreas que permitiam a criação de galinhas, porcos e outros animais de pequeno porte; com, em último caso, a caça abundante e na época liberada de pequenos animais comestíveis, como gambás, tatus, capivaras e guaiamuns; a fácil coleta de ostras, mariscos, conchas de sapinhauê (vôngole), ouriços do mar e algas, estes dois últimos, aliás, completamente excluídos do cardápio local.

A verdade é que a cultura caiçara não era assim tão tradicional e sólida. O litoral entre o norte de Santos e o sul do Rio de Janeiro, incluindo as cidades de São Sebastião, Ilha Bela, Ubatuba, Paraty e Angra dos Reis, onde viviam sua vida “natural” os caiçaras, foi região rica e desenvolvida até perto do fim da monarquia brasileira, entrando em declínio quando a escravidão foi abolida e o vale do Paraíba cafeeiro, seu gêmeo siamês cultural e econômico, entrou em rápido declínio. Grandes fazendas à beira mar foram abandonadas, as cidades viraram quase fantasmas, famílias inteiras foram tentar a sorte no Oeste Paulista, em Minas, nas capitais de São Paulo ou Rio. Os caiçaras eram descendentes de ex-escravos, colonos ou pequenos proprietários que foram deixados para trás ou não tiveram ânimo para partir. Alguns ficaram para tomar conta das fazendas, “até que as coisas melhorem”, e como as coisas não melhorassem, e os donos não voltassem, acabram por desenvolver uma forma de vida de subsistência, caçando, pescando e plantando mandioca, terminando por obter, em muitos casos, o usucapião de praias e terras. Ora, como o êxodo dos fazendeiros começou por volta de 1870 mas só foi intenso a partir dos últimos anos do século XIX, em 1950 a “cultura caiçara” não tinha mais do que sessenta ou setenta anos. Sob um outro recorte do tempo, no máximo três gerações. Ou seja, um caiçara qualquer, rústico e sábio, que fosse então bem velhinho, encontrado por minha mãe, meu pai ou seus amigos em uma praia selvagem qualquer, teria ele próprio, ou seu pai, no passado, trabalhado, livre ou escravo, numa próspera fazenda de cana ou café, ou numa firma de comércio.

Rancho de canoas em Ubatuba,  porJean Aubert, 1956
Rancho de canoas em Ubatuba, por Jean Aubert, 1956

Os nativos seriam as grandes vítimas da rápida marcha do terceiro ciclo de desenvolvimento do litoral, o turístico. Mas apenas em parte a culpa do atropelamento pode ser atribuído aos invasores. Os caiçaras, que tinham outra cultura mas não chegavam a ser índios arredios falantes de uma língua estranha, tiveram tempo e oportunidades para obter vantagens no processo, mas, salvo exceções, não o fizeram. Para Alzira, Jean e seus amigos, porém, eles eram a representação física e atualizada do bom selvagem, puros, ainda não conspurcados pelos vícios da civilização, quase tupinambás, e precisavam ser salvos e preservados da invasão que estava começando. Ilusão romântica, é claro, mas aquela época ainda comportava isso. Como muitas mentes otimistas das décadas de 50 e 60, Jean, Alzira e seus amigos não hesitariam em modificar a realidade se esta não se adaptasse àquilo em que acreditavam. Alguns daquela geração levariam esse tipo de visão de mundo bem longe e acabariam por pegar em armas. Não era o caso do grupo que se encontrava em Ubatuba, na casa de meus pais, em feriados e fins de semana. Eles salvariam os caiçaras, apenas. E por intermédio das, acreditavam, poderosas ferramentas do Direito e da Educação.
“Ainda não me convenci de que posso contar a você tudo o que foi aquele pesadelo, vou pensar, não acho que eu deva"
Os dias de festa na praia, porém, não durariam para sempre. O dinheiro, sempre ele, foi provavelmente o primeiro a produzir atritos. O trabalho de advogada de caiçara não rendia dinheiro quase algum, e Jean, à parte pintar e construir coisas com as mãos (por exemplo, e não foi pouca coisa, a parte nova da casa, na extremidade do terreno oposta à Garagem), nada fazia que rendesse dinheiro. Chegou a trabalhar no posto de saúde, mas os ganhos eram mínimos. Então, como não ganhasse, decidiu poupar. Passou a esconder mantimento das visitas, incluindo aquele eventualmente levado pelas próprias visitas, mesmo minha avó. Os tiques dele se manifestavam mais e a tensão crescia. Ele era autocentrado, moralista e emocionalmente travado. Traços que sugerem ainda uma habilidade sexual, na melhor das hipóteses, sofrível. E tem mais coisa, aí, eu sei, que eu não sei. Interrogo minha mãe mas ela se esquiva, desvia, não fala: “Ainda não me convenci de que posso contar a você tudo o que foi aquele pesadelo, vou pensar, não acho que eu deva...” Ela teima em tentar preservar, para mim, de um modo maternal e ingênuo, a memória de meu pai.


Nenhum comentário: