terça-feira, 17 de agosto de 2010

FALA CAIÇARA : André Caramuru Aubert : " Operação Ubatuba "

Longe de casa as coisas também estavam mudando. Embora o golpe de 1964, então ainda chamado de “Revolução”, não tenha tido efeitos imediatos em Ubatuba, teve em Alzira, Jean e no grupo de pessoas que com eles conviviam. Ciccillo Matarazzo, o magnata da Bienal, era outro que adorava Ubatuba, e resolveu, nessa época, “consertar” a cidade. Conseguiu eleger-se prefeito em 1964, e convidou minha mãe para assumir a Secretaria da Educação. Ciccillo, é claro, empregaria seu habitual estilo administrativo, educado, polido, mas objetivo e moderno. Dessa forma, não é de admirar que logo surgissem conflitos com a pré-histórica elite local da cidade, a mesma que, ao longo dos últimos cem anos, nada de útil havia conseguido fazer para reverter a decadência do município. 







Sem qualquer visão estratégica, abrangente ou de longo prazo, esta elite estava concentrada em ganhar o máximo de dinheiro no menor espaço de tempo, e construía os alicerces da Ubatuba de hoje, com nenhum planejamento urbano, turismo de baixa qualidade, enormes problemas sociais e meio ambiente degradado. Ciccillo, ingenuamente, pensava que o futuro poderia ser diferente, acreditando que os tacanhos locais o receberiam de braços abertos. Depois de duas tentativas de impeachement e antes de terminar o mandato, o velho mecenas das artes viu sua paciência esgotada e renunciou. Antes disso tudo acontecer, contudo, uma das coisas que ele fez foi apoiar a nova secretária de educação em seus esforços para melhorar a trágica qualidade do ensino municipal. Não é preciso dizer que, do mesmo modo que a câmara dos vereadores, a intelligentsia educacional também se revoltou e tentou, tanto quanto pôde, boicotar os projetos. Um deles, porém, passaria por fora das escolas e, pelo menos como experiência (pois não teve continuidade) foi bem sucedido. Foi a chamada “Operação Ubatuba”.


Ciccillo Matarazzo
Ciccillo Matarazzo
A “operação” se tratou, em resumo, de um esforço para alfabetização de adultos em larga escala. De um ponto de vista pedagógico, a escolha da metodologia era óbvia: o método Paulo Freire, que representava a vanguarda mundial em educação de adultos e utilizava recursos audiovisuais, remetendo sempre ao universo concreto dos alunos. Assim, ao invés de “ave, ovo, uva”, eles usariam “remo, tijolo, sapé”. O problema é que o projeto começou a ser elaborado em fins de 1964, quando quem mandava no Brasil já eram os militares, e Paulo Freire, já então devidamente exilado, era visto como o grande arquiteto de uma educação subversiva, comunista, maoista, cubana, soviética... E um projeto daquelas dimensões, em uma cidade pobre, e com comunidades distantes umas das outras, e estradas precárias, como Ubatuba, não poderia ser realizado sem o apoio de uma instituição como o ... Exército Brasileiro. Ou seja, eles esperavam que o Exército não só não proibisse, como tomasse parte ativa na coisa. O que eles fizeram, então, foi chamar o método de “audiovisual”, tirando o nome de Paulo Freire da história.

Entrou então na história o Ewaldo Dantas, que acabaria, alguns anos depois, se tornando o segundo marido de minha mãe e meu padrasto. Jornalista, na época já veterano, que trabalhara muitos anos com Assis Chateaubriand nos Diários Associados, Ewaldo, que  estava então na Folha, descobriu o projeto, planejou escrever várias matérias sobre ele, acabou se envolvendo mais e, como tinha acesso ao general Amaury Kruel, comandante da 2ª Região Militar, marcou uma reunião para pedir apoio. “Mas como é esse método?” perguntou o general. “É audiovisual”, respondeu Ewaldo. “Ah, então tá”. E o apoio, que incluía helicópteros, foi conseguido. Também o secretário de Estado de Educação, Ataliba Leonel, endossou o projeto, acreditando que ele poderia ser um “piloto” a ser reproduzido em muitos outros lugares. Outra iniciativa foi buscar estudantes da USP, já que com os professores de Ubatuba não dava para contar. Com uma chamada publicada na Folha, logo havia mais de 400 alunos inscritos, para perto de 100 vagas (entre os uspianos do projeto estava Celso Beisiegel, futuro diretor da Faculdade de Educação e pró-reitor de graduação da USP). A ACM de São Paulo cedeu o espaço para as provas de seleção e, em suma, o projeto andava.

Canoas caiçaras, Ubatuba, guache de Jean Aubert
Canoas caiçaras, Ubatuba, guache de Jean Aubert
Quando já estava tudo bastante adiantado, o Comandante do II exército mandou chamar Ewaldo às pressas. “Sabe o projeto lá, a Operação Ubatuba?” “Sim?” “Tivemos uma denúncia, a afirmação de que a inspiração é comunista, e que a a tal dra. Alzira é comunista. Procede?” “De forma alguma, General. Ela é totalmente anticomunista, o projeto não tem nada de comunista, o projeto é audiovisual e de incentivo ao espírito cívico da população praiana”. “O sr. tem certeza? Porque a denúncia é quente. E se for procedente, teremos que suspender a Operação e tomar as medidas necessárias contra os envolvidos.” “Tenho, General. O sr. pode ficar sossegado.” Sim, a denúncia era quente. Foi feita por um sujeito chamado Fischer, um suíço reacionário como poucos, ligado a Henning Boilesen, e que se envolveria diretamente, pouco tempo depois, com a Oban, a Operação Bandeirantes, o esforço extra-oficial de extermínio da esquerda do governo militar que antecedeu o DOI-CODI. Pois este Fischer era amigo próximo de meu pai (eram colegas de escotismo) e ouviu, deste, que a ex-mulher era comunista. Talvez meu pai, em seu estilo “se fazer de vítima e fofocar,” tenha argumentado ter sido este um dos motivos da separação, algo que ele sabia, iria provocar compreensão e apoio por parte do amigo linha dura.




FONTE : http://revistatrip.uol.com.br/blogs/caramuru/2009/12

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